No dia 31 de Agosto, completaram-se 40 anos após os acontecimentos de 31 de Agosto de 1981 em Santo Antão.
Nesse dia memorável o embate entre a população e as autoridades foi violenta, resultando dos disparos feitos pela tropa presente na ilha um morto e dois feridos. Em disputa estava uma reforma agrária que iria colocar a terra “nas mãos de quem a trabalha” e permitir ao então regime de partido único consolidar o seu poder aliando-se a uma classe estratégica. Desde o início foi grande e abrangente a resistência de proprietários e camponeses às medidas preconizadas e não durou muito para que o regime, fiel à sua natureza, passasse à repressão pura e dura dos descontentes.
Na sequência do 31 de Agosto dezenas de pessoas foram presas e levadas para prisões militares em S.Vicente onde sofreram espancamentos, sevícias várias e tortura durante meses. Em Março de 1982, quase sete meses depois dos acontecimentos, 15 de entre eles foram julgados por um tribunal militar que os condenou a penas de 6 meses a 10 anos de prisão pelo crime de tentativa de alteração da Constituição por rebelião armada. A chamada contraofensiva política-ideológica não ficou por aí. Segundo o jornal governamental “Voz di Povo”, de 28 de Outubro de 1981, num curto espaço de tempo foram realizadas cento e cinquenta reuniões com mais de 6 mil participantes e os desordeiros foram julgados em tribunais populares com assistência massiva das populações. Imagine-se o impacto disso tudo sobre as pessoas. A curto prazo, nas eleições de 1985 o medo infligido terá contribuído para que fosse precisamente nos concelhos mais reprimidos de Santo Antão que o partido único conseguiu percentagem de votos (97%) superiores à média nacional de 94%. Poucos anos depois nas eleições livres de 13 de Janeiro de 1991 veio o acerto de contas e o já ex-partido único não conseguiu eleger um único deputado na ilha.
Em vários momentos e em todas as ilhas ao longo dos 15 anos da sua ditadura houve situações em que o regime teve a oportunidade de mostrar o seu verdadeiro rosto repressivo. Os mais notórios e traumáticos foram os casos de S.Vicente em 1997, da Brava em Setembro de 1979, da Praia em Novembro de 1980 e de S. Vicente em 1987. O 31 de Agosto em Santo Antão é o mais completo, porque até envolveu tribunal militar e penas prolongadas de prisão. O regime ainda hoje visto por alguns como tendo sido benevolente e até paternalista, na verdade escondia atrás da fachada um aparato jurídico institucional repressivo construído desde os primórdios da independência nacional onde constavam a lei do boato (nº 37/75) com penas de prisão de seis meses a um ano, a lei de prisão preventiva (nº 95/76) que permitia a prisão de qualquer pessoa por forças de segurança até cinco meses sem culpa formada, a obrigatoriedade de uma autorização de saída para viagem ao exterior, julgamento de civis em tribunais militares e até perda de nacionalidade por decisão do conselho de ministros. Como para provar que consubstanciavam o regime e eram parte integrante dele, essas leis repressivas só foram revogadas na sessão de Maio de 1990 da Assembleia Nacional Popular, três meses após a declaração da abertura política.
Como várias personalidades históricas já fizeram questão de notar: “Aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”. Lembrar, em 2021, os 40 anos do 31 de Agosto não é invocar um regime já morto para voltar a combatê-lo e quiçá tirar algum ganho político desse exercício. O que importa, de facto, é compreender o que acontece quando o respeito pela dignidade humana não é assumido como princípio básico de uma comunidade política e as liberdades são restringidas e submetidas a lógicas do poder. No dia 31 de Agosto e nos dias e meses que se seguiram as pessoas puderam presenciar e viver directamente com particular intensidade as consequências de não se ter liberdade de expressão, liberdade de reunião e manifestação e de estarem submetidos a um poder de um o Estado que não é limitado pelos direitos fundamentais dos cidadãos, em particular o direito à vida e à integridade física e moral e o direito à liberdade e segurança pessoal. Não estranha, pois, que, em parte como reacção ao que foi vivido, na Constituição de 1992 se tenha incluído um vasto catálogo de direitos dos cidadãos e estabelecido que os direitos fundamentais não podem ser restringidos ou limitados em sede da revisão constitucional por qualquer maioria. É para que a história não se repita.
Relembrar a data todos os anos serve fundamentalmente para reforçar a importância crucial de se garantir os direitos que então foram sonegados e de se manter sempre alerta para quaisquer derivas que visem enfraquecê-los sob que pretexto for. Podia ter sido a data escolhida para a celebração do dia nacional dos direitos humanos. O governo optou pelo 25 de Setembro, o dia da entrada em vigor da Constituição de 1992 que tem como seu princípio basilar o respeito pela dignidade humana e o reconhecimento da inviolabilidade e a inalienabilidade dos direitos humanos. Também foi uma boa escolha. Importa é que se aprofunde uma cultura de defesa dos direitos fundamentais junto das pessoas, da sociedade e das instituições do Estado. E é claro que para isso é fundamental que a história dos tempos, quando os direitos civis e políticos dos cidadãos não eram respeitados, seja contada e também conhecidas as consequências do seu atropelo por órgãos do Estado.
A conquista histórica e civilizacional dos direitos humanos fundamentais não deve ser tomada como garantida, nem muito menos como irreversível. Derivas iliberais são hoje comuns tanto nas mais antigas como nas novas democracias. Em todas elas encontram-se personalidades, grupos e mesmo partidos políticos que têm uma visão muita limitada dos direitos fundamentais e do Estado de Direito e que procuram sempre uma oportunidade para virar a opinião pública contra o que chamam de excessos garantísticos na Constituição e nas leis. Não poucas vezes alimentam e depois capitalizam o sentimento de insegurança da população para apoiar acções musculadas das polícias. Em simultâneo, viram as pessoas contra o poder judicial e a independência dos tribunais que é a última instância de defesa dos direitos dos cidadãos e do primado da lei.
Também há aqui em Cabo Verde várias vozes que aproveitam qualquer crescendo de insegurança para lembrar outros tempos em que com milícia, tropa, polícia e tribunais populares se vivia “tranquilamente”. Nestes dias de algum aumento da criminalidade no país e em particular na Cidade da Praia já estão outra vez a fazer-se ouvir. Recordar o 31 de Agosto, expõe a mentira nessa narrativa que é possível viver com segurança sem a garantia dos direitos fundamentais e com um Estado que põe os cidadãos a serem julgados por “tribunais cangurus”, sejam eles tribunais populares ou militares. Para fazer face aos problemas de insegurança, impõe-se, sim, que tanto o sistema policial como o poder judicial ajam com competência e celeridade e no respeito estrito pela Constituição e pelas leis. É preciso trabalhar para isso e responsabilizar a quem de direito pelos resultados. Mas a grande verdade do 31 de Agosto é que não há segurança sem liberdade.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1031 de 1 de Setembro de 2021.
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