sábado, setembro 25, 2021

Cumprir com humildade e maturidade

A menos de um mês das eleições presidenciais de 17 de Outubro o foco da discussão é a função constitucional do presidente da república e a disputa é à volta de quem projecta as melhores qualidades de carácter, de trajectória e de mundividência para o seu exercício. 

Para que o debate seja construtivo é fundamental que, de todos e em particular dos concorrentes, haja preocupação em elucidar a sociedade e os eleitores sobre a natureza do cargo, as suas competências e o seu papel no quadro constitucional de relacionamento com os outros órgãos de soberania. Infelizmente, nos tempos actuais não são poucos os que tomam a desinformação, a distorção dos factos e mesmo a hostilidade directa contra a Constituição como formas legítimas de fazer política. Não se pode é permitir que prevaleçam e que a prática de mobilizar paixões, ressentimentos e impulsos justiceiros para conquistar o poder se estabeleça. Momentos altos de reafirmação e renovação democráticas como são as próximas eleições presidenciais devem servir para aumentar a confiança na democracia e confirmar a importância central da liberdade.

No próximo dia 25 de Setembro celebra-se o 29º aniversário da entrada em vigor da Constituição de 1992 e da inauguração da II República com o içar da nova bandeira de Cabo Verde. Devia ser o Dia da Constituição, como acontece com datas similares nos Estados Unidos, Espanha, Timor- Leste e em várias outras democracias, um dia assinalado nas escolas e dedicado a conferências, palestras e eventualmente a actos oficiais. Em Cabo Verde quase que passa despercebido. E é estranho que isso aconteça quando se tem presente como o acto da adopção de uma constituição liberal e democrática foi transformativo para as pessoas e para o país. Reviver o momento devia ser parte de um ritual de renovação do consenso à volta dos seus princípios e valores e da confiança nas instituições democráticas por forma a evitar que dentro da democracia surjam forças para a minar, destoar ou mesmo destrui-la. O perigo é real como se pode constatar de situações calamitosas em alguns países democráticos protagonizadas por presidentes da república, governos, partidos e outros grupos de interesse que têm posto em causa a liberdade, os actos eleitorais e a independência dos tribunais. 

No essencial, o contrato implícito na Constituição é sobre quem escolhe os governantes, como o poder é exercido e quais os limites do Estado. Para quem nunca escolheu os seus governantes, mas sofreu com decisões tomadas em comités obscuros e sentiu-se completamente indefeso perante um Estado paranoico e sem freios em modo repressivo, ter uma real e operante Constituição é de facto um salto para uma outra condição, a de cidadão pleno. Não é à toa que em muitos países o Dia da Constituição é também o Dia da Cidadania. Também não é à toa que os inimigos da democracia procuram descredibilizá-la com ataques cirúrgicos dirigidos às instituições e aos procedimentos democráticos em particular ao parlamento, aos tribunais, aos média, aos partidos e ao pluralismo. A via mais perniciosa é a que se serve dos próprios procedimentos democráticos, socorre-se dos próprios titulares dos órgãos de soberania e recorre a exemplos de ineficácia das instituições para quebrar a confiança do cidadão no sistema democrático e convidá-lo a renunciar parte da sua liberdade em troca de mais segurança. 

Não é só a liberdade que fica em perigo com o falhanço da democracia. É também a possibilidade de um futuro de prosperidade numa base sustentável como se pode inferir da história dos últimos duzentos anos. A ordem democrática necessária para isso pressupõe cidadãos livres, pluralismo de ideias, descentralização de poderes e o primado da lei e só pode manter-se se privilegia a procura da verdade, se se atém aos factos e se revê na crença que a realidade é demasiado complexa para ser captada só por uma pessoa ou por um grupo específico. Regimes que não se suportam na liberdade criativa e no livre empreendedorismo e na inovação de meios, métodos e políticas podem até durante algum tempo dar sinais de prosperar e mesmo de brilhar com taxas altas de crescimento, mas a prazo não conseguem ultrapassar as democracias na produção e distribuição de riqueza e bem-estar. A história é clara em demonstrar que a rigidez política inevitavelmente conduz à estagnação económica. 

Manter a democracia funcional no seu todo para que as virtualidades da ordem que produz se revelem, implica que todos os poderes exerçam as suas competências no quadro da normalidade. Maiorias devem poder governar, mas devem ser limitadas nas suas opções pelos direitos dos cidadãos, pelos direitos das minorias e pelo quadro legal existente. Mandatos decididos em eleições livres e plurais devem ser limitados e a possibilidade de alternância deve sempre existir. Conflitos devem poder ser dirimidos por um poder judicial independente. O presidente da república, enquanto representativo da comunidade política, deve fazer cumprir as normas e procedimentos indispensáveis para o sistema político funcionar de forma equilibrada fazendo os ajustes necessários que forem ditados por factores internos ou externos, mas mantendo sempre a confiança no sistema.

É evidente que o exercício de um cargo com essas responsabilidades vitais para o funcionamento pleno e virtuoso do sistema é bastante exigente. Naturalmente que ninguém está excluído e tirando os condicionalismos impostos pela Constituição quanto ao limite mínimo de idade de 35 anos e ser cabo-verdiano de origem não é legítimo trazer outros, sejam eles de percurso político-partidário, da idade ou de experiência prévia. O cargo é suprapartidário e o seu exercício competente para certos segmentos do eleitorado pode depender do comprometimento com a vida pública já demonstrado pelo candidato em vários papéis entre os quais a vida político-partidária. Não ter pertencido a nenhum partido também não é desqualificador à partida. A possibilidade de participação dos partidos nas eleições presidenciais apoiando um ou outro candidato não deve ser visto como negativo sob pena de se entrar pelo caminho de restringir direitos políticos e participação política. Com o foco na personalidade do candidato e no que apresenta como seu projecto de presidência, os eleitores podem avaliar, sem serem desviados por razões espúrias, que perfil e que qualidades o país quer ver no seu próximo presidente da república.

A situação do país ainda apanhado pelas graves consequências da crise pandémica não está fácil e nem vai melhorar tão cedo. O governo já anunciou que o serviço da dívida pública vai aumentar, em 2022, em 9 milhões de contos em consequência de créditos conseguidos entre 2008-2016. A pergunta que se coloca é se os investimentos feitos estão a justificar-se em termos de custo/benefício. A persistência das vulnerabilidades do país a par com o acumulado da dívida pública que dificilmente poderá ser paga, clama por uma melhoria do sistema de prestação de contas e de responsabilização dos actos e políticas dos sucessivos governos. No mesmo sentido vão as últimas revelações públicas num comunicado da direcção geral do turismo e transportes que, só em leasing de aviões, supõe-se durante o ano de 2020 até Março de 2021, em que não houve voos regulares, a CVA contraiu uma dívida de 35,5 milhões de dólares junto da Loftleidir.

As eleições presidenciais constituem um bom momento para se ponderar essas e outras razões que exigem que as instituições funcionem e que haja mais “accountability’’ no exercício dos diferentes cargos da república. Também é fundamental que se fale a verdade ao país, que se procure saber as reais dificuldades existentes e haja vontade de mudar e não ficar por ilusionismos fazendo “mais do mesmo” mas anunciando mudanças para melhor. A crise da democracia será ultrapassada quando diminuir nas suas ineficiências e for capaz as suas virtualidades. Para isso, humildade e maturidade são qualidades imprescindíveis para se realizar com sucesso a tarefa primeira que é de cumprir e fazer cumprir a Constituição. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1034 de 22 de Setembro de 2021.


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