A decisão do governo anunciada, ontem dia 28 de Dezembro, de passar o país do estado de alerta para o estado de contingência veio relembrar a todos que a crise pandémica continua.
Se a euforia normal neste período do ano tinha feito esquecer essa dura realidade ou se a diminuição progressiva de casos nos últimos meses tinha desenvolvido alguma complacência no uso de máscaras, na higienização das mãos e no distanciamento social, o rápido crescimento de casos de covid-19 na última semana constituiu um acordar brusco. Não é que se estivesse a ignorar o que se estava a passar na Europa, na América e em outras partes do mundo, mas aparentemente para a generalidade das pessoas, já cansadas de tantas restrições, convinha pensar que era tudo muito longe.
Não tendo o país ainda desenvolvido capacidade para sequenciar o vírus e melhorar a sua vigilância epidemiológica com informação em tempo útil, as incertezas quanto ao “quando” e ao “como” reagir tendem a aumentar ficando às vezes a dúvida se se está a precipitar nas medidas duras de contenção ou se já são tardias. De qualquer forma, com a chamada à realidade e com a evidência de que a variante Ómicron é muito mais contagiosa ainda que menos agressiva, resta é ajustar-se aos novos constrangimentos e manter viva a esperança de que talvez no próximo ano a pandemia ceda e a covid-19 se torne uma doença quase comum como a gripe. O ano 2021 iniciou-se sob a ameaça da variante Delta que se revelou muito contagiosa e bastante letal em toda a parte e também em Cabo Verde. Hoje, a Ómicron está a substitui-la como variante predominante e num quadro em que há um número crescente de pessoas vacinadas. Se se conseguir diminuir as probabilidades de surgimento de variantes com um esforço global de vacinação talvez 2022 venha a se revelar o ano do fim da pandemia. É o que o mundo anseia e o que Cabo Verde precisa urgentemente.
Ninguém duvida que a resposta à crise pandémica e às suas consequências, em particular na vida económica e social, tem custado imenso ao país. Vê-se designadamente na perda de rendimentos das pessoas, na estagnação de sectores-chave da economia, na perda de receitas fiscais e consequente deficit orçamental e no aumento explosivo da dívida pública. Também é facto que, se as incertezas quanto à evolução da pandemia e quanto ao impacto que poderá ter na vida das pessoas e na economia continuarem, os custos nos próximos tempos serão cada vez mais difíceis de suportar. A percepção nos primeiros meses do ano de 2021, em cima das eleições legislativas, das dificuldades que iriam ser encontradas na gestão da crise terá contribuído para se manter o mesmo governo da legislatura anterior na expectativa provavelmente de que a continuidade seria preferível à uma alternativa traduzida em medidas políticas potencialmente disruptivas de um outro partido. Opções similares foram feitas em várias outras democracias. Há, pois, um dever de corresponder às expectativas e cumprir.
Quem ganha nessas circunstâncias fica com a responsabilidade acrescida de manter a nação mobilizada e focada para ultrapassar as extraordinárias dificuldades da conjuntura actual. O país terá que confrontar as vulnerabilidades reveladas pela crise, reconhecer os limites do modelo de desenvolvimento seguido, corrigir as ineficiências e manter uma dinâmica criadora e inovadora para contornar obstáculos, aproveitar oportunidades e potenciar no máximo os seus recursos. Mais do que nunca a construção do futuro não deve ser prejudicada com divisões ideológicas que impedem qualquer debate construtivo sobre a realidade e os desafios que se colocam ao país. O foco em resultados tangíveis que trazem ganhos para todos deve substituir confrontos que só têm sentido no quadro de uma guerra cultural interminável que deixa o país exangue e sem capacidade de se mover para a frente.
Questões fundamentais como a da conectividade envolvendo os transportes aéreos e marítimos num país arquipélago e relativamente remoto devem merecer um tratamento ponderado e realista que não pode ficar por grandes gestos que depois se vem saber dos custos enormes que incorrem. O caso da TACV é paradigmático. Desperta paixões, cria expectativas exageradas e demasiadas vezes desemboca em frustrações enquanto a dívida associada aumenta. Nesta semana iniciaram voos para Lisboa que pouco tempo antes tinham sido previstos para o primeiro trimestre de 2022 no quadro da reestruturação da empresa. Augura-se o melhor para a iniciativa, mas infelizmente faz lembrar decisões anteriores complicadas e custosas, cujos últimos episódios foi a vinda do avião de Miami em Abril deste ano, uma tentativa de reinício de voos em Junho seguido de arresto do avião e finalmente a renacionalização da empresa.
As incertezas quanto à duração da crise pandémica, se termina no ano de 2022 ou se vai continuar ainda por mais algum tempo, põem urgência no tratamento das questões essenciais e obriga que se tenha uma maior preocupação com os custos particularmente quando se trata de ajuda externa. A resposta global à crise tem posto pressão sobre os recursos que são disponibilizados no quadro da cooperação internacional e em certos casos já se nota algum cansaço dos doadores, muitos deles também pressionados pela gestão doméstica da pandemia. Em Cabo Verde é notório a diminuição em 64,5% dos donativos até Setembro em termos homólogos, como assinala o BCV no seu último relatório económico. É verdade que Luxemburgo continua com financiamentos de vários milhões de dólares para projectos de desenvolvimento, mas notícias recentes de ajuda orçamental de Portugal de quantias como 100 mil euros anuais e de Espanha de 600 mil euros por três anos podem deixar transparecer uma tendência de decréscimo que não se pode ignorar.
É evidente que Cabo Verde deve procurar ir por outros caminhos que não o de ajuda. Como bastas vezes foi repetido, as crises não trazem só desafios, mas também oportunidades. Nas crises podem-se observar fragilidades e vulnerabilidades que não estariam tão expostas em situações normais. Também por causa de situações extremas que transversalmente a sociedade é obrigada a enfrentar há a possibilidade de mobilizar a solidariedade numa escala sem precedentes para combater desigualdades sociais, proporcionar igualdade de oportunidade e garantir a inclusão. Desperdiçá-las, não fazendo as reformas que noutra situação dificilmente poderiam ser feitas, é imperdoável. Vários países do mundo, entre os quais os Estado Unidos com o seu projecto de infra-estruturas e de apoios sociais de mais de dois trilhões de dólares, a Europa com o plano de muitos biliões de euros de financiamento inovador chamado de bazuca financeira, mas também a China e outros países grandes e pequenos estão-se a preparar para o mundo que vai sair da crise. Um pequeno e frágil país como Cabo Verde tem que também fazer algo construtivo da experiência e dificuldade vividas com a pandemia. Para o ano de 2022 há que reunir coragem, visão e capacidade colectiva de diálogo para ganhar a crise.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1048 de 29 de Dezembro de 2021.
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