A propósito das controvérsias que sempre aparecem na chamada Semana da República entre os dias 13 e 20 de Janeiro, o Presidente da República, José Maria Neves, disse que “não temos cumprido uma grande promessa da democracia que é a educação para a cidadania”. Acrescenta ainda que “quem quer ser cidadão tem de procurar conhecer a história, sobretudo, a contemporânea do seu país”. A falha detectada pelo PR tem pelo menos duas causas mais visíveis.
A primeira é que o Estado não se esforça o suficiente para passar para as pessoas, para a sociedade e em particular para as novas gerações os princípios e valores universais a começar pelo respeito pela dignidade humana e o direito à liberdade, que estão plasmados na Constituição de 1992, nem a importância do pluralismo, do princípio da separação de poderes e da independência dos tribunais no funcionamento pleno da democracia. Em consequência, fica por desenvolver adequadamente a vontade de participação, autonomia de pensamento e acção, auto-responsabilidade e o espírito de pertença à comunidade que se espera de cidadãos plenos. Pelo contrário, põe-se demasiado ênfase em alegados actos libertadores e heróicos de indivíduos e grupos, revoltas e ressentimentos do passado e manifestações de um paternalismo “salvítico” que deixa todos gratos e dependentes do Estado e na condição de cidadãos menores.
A outra causa tem a ver com a disputa permanente no país entre a “história contada” e a “história vivida”, entre factos e mitos, entre a procura da verdade e as tentativas de mascarar a realidade fazendo apelo a sentimentos, a lealdades antigas e a demonização do outro. De facto, a única história que realmente se é permitido conhecer não é a que aconteceu nas ilhas, mas a que supostamente teria passado nas matas da Guiné e em Conakry. Uma história perpassada por narrativas carregadas de heroísmo, de generosidade e de boas intenções que depois com as independências e o poder conquistado não se viu correspondência com a realidade dos regimes implantados tanto na Guiné como em Cabo Verde. Os seus protagonistas surpreenderam toda a gente com a perda da liberdade, a arrogância de “melhores filhos” no exercício do poder e a visão curta de quem sempre que foi dado a escolher entre desenvolvimento das pessoas e do país e o seu regime político ditatorial invariavelmente optava pela manutenção do poder. A outra história, aquela vivida nas ilhas e que foi da ditadura, de oportunidades perdidas e de vidas amarfanhadas pela falta de liberdade, pela inibição de iniciativa individual e pela sujeição a ideologias simplistas e ultrapassadas, essa durou quinze anos, mas é como se não tivesse acontecido.
É uma história praticamente ignorada pelas instituições, pelas escolas, pela comunicação social pública e até pelos estudiosos e académicos. Só se estudam acontecimentos até à independência e depois da chamada abertura política em Fevereiro de 1990. São os momentos em que os “heróis” entram em cena, num caso para dar ao povo a independência e noutro para, em mais um acto de generosidade, oferecer liberdade e democracia. No meio fica um hiato que ninguém quer transpor com receio de ferir as susceptibilidades dos auto-indigitados “Comandantes” (ver decreto-lei nº 8/75 e decreto nº 18/80) que ocuparam os lugares-chave do poder durante a ditadura. Mesmo assim, nunca estão satisfeitos e todos os anos pelo 5 de Julho e pelo 20 de Janeiro repetem que a história da luta não é estudada suficientemente nas escolas e que os ensinamentos da Cabral não estão a ser seguidos. É uma pressão que vai continuar mesmo que hipoteticamente um número de pessoas próximo, dos 100% se submetesse à narrativa heróica, declarando “estar em paz com a história”.
Com esse tipo de pressão, feita com o beneplácito do Estado e das suas instituições, dificilmente vai-se ter o cidadão pleno que o PR diz que precisa conhecer a história contemporânea do seu país. Não se ajuda, porém, nesse conhecimento quando se procura transpor o hiato dos quinze anos, durante os quais a aplicação dos ensinamentos de Cabral pela organização por ele criado, o PAIGC, e por dirigentes por ele formados resultou em sucessivas tragédias na Guiné-Bissau e em um Cabo Verde sem liberdade e economicamente estagnado, e se propõe elegê-lo “como o símbolo maior dessa luta pela liberdade e dignidade da pessoa humana e pela igualdade”. Aí Pedro Pires tem mais razão ao apresentá-lo como personalidade que “deu tudo o que tinha a favor da libertação do país”. E é libertação porque liberdade e dignidade individual, que certamente não é reconhecida quando em vez de pessoas se vêem massas populares e se define a pertença à comunidade política com base em concepções do tipo o povo é quem está com o partido, são princípios e valores que só seriam conquistados 15 anos depois pelos homens e mulheres das ilhas.
Pelas reacções de diferentes personalidades durante a chamada Semana da República vê-se claramente que mais de trinta anos depois da instalação da democracia a “história contada” ainda se sobrepõe à “história vivida” mesmo quando colide frontalmente com os princípios e valores constitucionais. Instrumental nisso tudo tem sido precisamente as instituições do Estado e particularmente os órgãos de soberania. Resistências várias impediram durante 17 anos que o 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia, fosse comemorado pela Assembleia Nacional, a casa da pluralismo e a sede do contraditório na democracia. Agora já há quem queira comemorar o 20 de Janeiro com uma sessão especial da Assembleia Nacional quando se sabe pela experiência de outras democracias que comemorações da independência, da república e da memória, porque momentos de unidade e exaltação nacional, normalmente são presididas pelo presidente da república. A guerrilha continua como que para demonstrar o quanto a iniciativa da semana da república é um fiasco na tentativa de reconciliação à volta das datas históricas.
Nos últimos dias a colisão de narrativas históricas com a Constituição centrou-se sobre o que devem ser as comemorações do Dia das Forças Armadas (FA). O Governo na pessoa da Ministra da Defesa, em linha com os ditames da Constituição de 1992, realçou a função constitucional das forças armadas de assegurar a defesa nacional, a sua subordinação ao poder civil, o seu serviço à nação e o seu apartidarismo e neutralidade política. Os “comandantes” vieram à liça reivindicar a reposição da história das Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP) e o papel que teriam tido na sua origem.
O problema é que as FARP que sempre foram concebidas como braço armado do partido, como está explícito no texto da proclamação da Independência e confirmado pela voz autorizada de Aristides Pereira em 1985 ao dizer que “a acção política e ideológica constitui uma componente essencial no trabalho das forças de defesa” e ter-se referido ao facto de as FARP, serem integradas, não por militares, mas por militantes armados”, deixaram de existir com a entrada em vigor da Constituição a 25 de Setembro de 1992 dando lugar às FA. Não faz, portanto, qualquer sentido referir-se a papéis ou missões passadas que conflituam directamente com as funções constitucionais actuais.
Mesmo na questão do Dia das Forças Armadas nota-se a conveniência e o desejo de auto glorificação. Até 1987 o dia das FARP comemorava-se a 16 de Novembro em referência à origem das forças em 1964 na sequência do Congresso de Cassacá, assim como é ainda comemorado pelas FARP na Guiné-Bissau. O objectivo então era identificarem-se com a luta na Guiné. Em 1988, oito anos depois do golpe na Guiné e com o poder seguro em Cabo Verde acharam que podiam fazer das suas pessoas a referência do braço armado do partido. Com um simples decreto (decreto nº 5/88) criaram um novo Dia das FARP (15 de Janeiro de 1987). Agora acham que as FA não podem ter outra referência mais consentânea com a sua função actual. É mesmo patético.
É evidente que o país não deve continuar refém de uma narrativa que glorifica pessoas responsáveis por um regime ditatorial, que promove o culto de personalidade em plena democracia e que pode causar instabilidade institucional pelos seus persistentes conflitos com os princípios e valores constitucionalmente estabelecidos. Os titulares dos órgãos de soberania devem lembrar-se todos do seu juramento de respeitar e cumprir a Constituição da República. Estar ao serviço do povo e não de quais outros interesses é a via certa para a construção de uma vida de liberdade, paz e prosperidade para todos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1051 de 19 de Janeiro de 2022.
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