segunda-feira, maio 30, 2022

Por um jogo de soma positiva

 

Há um ano atrás tomava posse o novo governo saído das eleições legislativas de 18 de Abril. O país encontrava-se então em meio do surto da variante Delta do Sars-CoV-2, mas já se descortinava algum alívio das graves restrições de 2020 em resposta à pandemia que conduziram à contracção de 14,8% da economia nacional.

No discurso do primeiro-ministro apontava-se como prioridades sociais o emprego, a eliminação da pobreza extrema e a redução da pobreza absoluta e como prioridades económicas o crescimento, o alívio da dívida e a diversificação da economia. Com o desenvolvimento de vacinas e início de vacinação em grande escala, particularmente nos países emissores de turistas, perspectivava-se já um início da retoma que infelizmente não veio a se concretizar na dimensão esperada. Incertezas várias vieram baralhar tudo.

Primeiro surgiu a nova variante Ómicron altamente contagiosa e logo de seguida as tensões geopolíticas na Europa que depois desembocaram na invasão da Ucrânia pela Rússia. Reapareceram as restrições de viagem e os constrangimentos nas várias cadeias de abastecimento tornaram-se piores. O crescimento económico do ano 2021 ficou pelos 7% e as previsões para 2022 já de per si menos optimistas de 2021 sofreram uma quebra para um intervalo (3,5-4,5%) como aliás aconteceu ao nível global e também na generalidade dos países, de acordo com os dados de Abril do FMI/Banco Mundial.

Onde aparentemente não se notou mudança significativa foi nas políticas de antes da pandemia, que a todo o vapor se dá continuidade sem atender à conjuntura, e no tipo de confronto político que degrada o discurso e leva ao imobilismo mesmo perante problemas sérios e urgentes como a segurança. Também sem grandes alterações continuou a abordagem feita a questões essenciais do país que mexem com o futuro e a credibilidade das instituições. Opta-se em geral por varrer os problemas para debaixo do tapete. O próprio governo continua impávido com a mesma estrutura e o mesmo número de membros de há um ano atrás, salvo o reajuste devido a um pedido de demissão, não obstante as mudanças de conjuntura que obrigam a melhorar drasticamente a eficiência na utilização dos meios e recursos e a enviar sinais de contenção e solidariedade para a sociedade.

O facto de até agora não se puder prever como e quando se verá o fim do conflito na Ucrânia só tem aumentado as incertezas em relação ao futuro. No curto prazo já se percebe que todos são afectados pelos aumentos extraordinários dos preços em particular dos bens alimentares e energéticos. E que a verificar-se escassez de produtos em particular dos alimentares as consequências poderão ser desastrosas. Em face de tudo isto o mais natural é que houvesse uma disposição e uma motivação para fazer mudanças seja de comportamento, de políticas e de práticas. Paradoxalmente não é o que tem acontecido. Não se notaram as alterações na atitude das pessoas, instituições e países no sentido de mais cooperação e solidariedade que muitos esperavam ver por causa da pandemia e de outras ameaças como alterações climáticas. Em vários países o paradoxo é motivo de reflexão. Num país com as vulnerabilidades que Cabo Verde apresenta, compreender o que está por detrás do fenómeno é vital.

O mundo está a mudar rapidamente e em direcção difícel de prever. Há uma guerra em andamento que não se sabe como vai terminar ou como impedir que se alastre e sofra uma escalada para algo muito pior. Está-se a procurar isolar politica, económica e financeiramente um país, novas alianças militares tendem a formar-se e ordens económicas distintas podem vir a emergir. As disrupções ou convulsões que vão se processando enquanto o planeta procura outros equilíbrios afectam todos os países e em particular os mais pequenos, insulares, sem recursos naturais e sem economia diversificada. Num tal ambiente optar pelo imobilismo, por continuar a fazer o “mais do mesmo” e por transformar a política numa guerra de posições e num jogo de soma zero é o pior que se pode imaginar. Mas é precisamente por esses caminhos que se tem insistido em ir não obstante a seca, a pandemia, a recessão brutal de 2020, e a guerra na Ucrània e o seu impacto na inflação e na provável escassez de produtos básicos.

Viu-se recentemente a propósito da concessão dos aeroportos à Vinci. As forças políticas e a sociedade podem não discutir outros problemas cruciais do país como a educação, saúde, habitação e segurança, mas quando se trata da implementação de políticas económicas que incluem privatizações todas as paixões vêm à tona. Nessas circunstâncias fica-se com a impressão que não é propriamente a opção de política que se contesta. De facto, aproveita-se do assunto em questão para se renovar a divisão entre os que se assumem como “construtores” das infraestruturas nacionais os que são acusados de “vendedores” desses mesmos bens.

É claro que os supostos vendedores replicam que de facto o país na maior parte dos casos herdou elefantes brancos e dívida pública pesada contraída para os construir. Acrescentam ainda que uma solução possível para se conseguir dar utilidade a algumas dessas infraestruturas, criar riqueza nacional e conseguir receitas para pagar a dívida passa por atrair investimento externo através da venda ou concessão que traga capital, tecnologia, knowhow e mercado para os bens e serviços do país. O problema é quando a concretização desses propósitos falha estrondosamente como aconteceu com a CVA e os islandeses e cria-se o ambiente perfeito para se reproduzir a narrativa dos “vendedores da terra”. Com as paixões acirradas não há como reflectir sobre o que falhou, aprender com os erros e procurar posicionar-se melhor nas iniciativas futuras.

A pandemia e a perda do mercado externo que levou à maior recessão histórica de Cabo Verde e ao desemprego em massa de milhares de pessoas deviam ter sido instrumental para se compreender que Cabo Verde para prosperar terá que atrair investimento externo e mobilizar procura externa para os seus bens e serviços, ou seja, exportar. Todos os países, grandes e pequenos precisam de capital, tecnologia e mercados. Para os quase minúsculos e sem possibilidade de ter economias de escala como Cabo Verde não devia existir qualquer dúvida a esse respeito. Estranhamente, ou talvez não, aqui acredita-se que afinal se pode viver da ajuda externa ou que talvez o país seja “too small to fail”, demasiado pequeno para falir. É só ouvir e ver todos os dias na rádio e na televisão o entusiasmo e as demonstrações de autossatisfação com que são anunciados os milhões a serem investidos no âmbito da cooperação bilateral, multilateral e de instituições financeiras diversas.

Curiosamente, os objectos desses financiamentos sejam eles quais forem, em geral não são alvo das guerras de posições dos actores políticos apesar de em muitas áreas estabelecerem a agenda do país forçando opções de política que não passaram pelo crivo parlamentar. A política assim compartimentalizada permite que se vá avançando “a empurrar com a barriga” sem perturbar interesses instalados ao mesmo tempo que se reserva espaços de combate para luta pura pelo poder, sacrificando no processo o debate construtivo para a consecução do interesse nacional. Se em tempos normais os custos dessa postura dos actores políticos mesmo não sendo imediatamente visíveis acabam por pesar, afectando a credibilidade e eficácia das instituições e minando a confiança das pessoas, em tempos de transformações rápidas, como actualmente, podem ser um fardo terrível e ter efeitos desastrosos. No arrancar de mais um ano de governação, e com o mundo à beira de mudanças profundas, exige-se uma outra atitude e um patriotismo constitucional que não permita que a política se limite aos termos de um jogo de soma zero.

Humberto Cardoso 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1069 de 25 de Maio de 2022.

segunda-feira, maio 23, 2022

Ano e mandato atípicos

 

Amanhã, 19 de Maio, a Assembleia Nacional que resultou das eleições de 18 de Abril de 2021 completa o primeiro ano de mandato. Nesse dia com a inauguração de uma nova legislatura e logo depois com um novo governo cumpria-se o segundo acto do ciclo eleitoral que tinha arrancado em Outubro com as eleições autárquicas e que iria terminar seis meses depois com as presidenciais.

As eleições tinham assegurado uma maioria absoluta ao MpD que, apesar de menos folgada do que na legislatura anterior, era suficiente para garantir a estabilidade da governação do país. Augurava-se então que, não obstante os problemas sem precedentes criados pela pandemia, num certo sentido e por algum tempo o exercício do mandato seria mais tranquilo, porque menos pressionado por eleições próximas. Infelizmente não é o que se veio a verificar e as razões não têm a ver somente com o aparecimento da variante Ómicron e seu impacto na retoma da economia e com os efeitos de tensões geopolíticas que depois levaram à guerra na Ucrânia.

Logo na sessão inicial e no processo de eleição do presidente e dos outros membros da Mesa da Assembleia Nacional ficou evidente para toda a gente que afinal a maioria saída das eleições não estava tão sólida como seria de esperar. A não aprovação do primeiro candidato a vice-presidente apresentado pelo grupo parlamentar maioritário deixou claro as fracturas internas no seu seio. Semanas depois, na discussão da moção de confiança ao governo era palpável o desconforto perante a possibilidade de não se ter a maioria absoluta necessária para a aprovar. O apoio explícito dos deputados da UCID à moção logo no início da sessão parlamentar ajudou a dissipar as dúvidas, mas a fragilidade da maioria ficou exposta e dificilmente seria recuperada. Aliás, incidentes posteriores como por exemplo na aprovação do Orçamento do Estado vieram demostrar que feridas internas não tinham sido saradas.

Com isso o espaço político que a relegitimação do poder nas urnas teria criado para o governo e a sua maioria e que lhes deveria permitir mais iniciativa, influência e capacidade de congregar vontades rapidamente se esvaziou. Cedeu lugar ao ambiente de crispação e de guerrilha política que existia antes das eleições, como se, para a minoria, a maioria que saiu das urnas não se concretizou. Já para as pessoas que se engajaram de uma forma ou outra nas eleições a crispação renovada foi mais um motivo de frustração porque é como se o seu voto não tivesse servido nem para mudar a postura dos actores políticos. Alguns deles continuavam a comportar-se como se não tivessem ganho e outros como se não tivessem perdido.

A realização das eleições presidenciais seis meses depois não foi muito propício a que se diminuísse o grau de crispação política que logo após as legislativas tinha voltado a instalar-se. Pelo contrário as fracturas reveladas da maioria constituíram incentivo para transformar as eleições presidenciais em mais um embate partidário. A vitória do candidato presidencial originário de quadrantes políticos da oposição acabou por enfraquecer ainda mais a dimensão da vitória nas legislativas e com ela a imagem do governo. As aparentes fragilidades demonstradas na relação com o novo presidente da república também não ajudaram. Se se acrescentar a tudo isso a incapacidade ou falta de vontade em reforçar a unidade e melhorar a prestação da maioria parlamentar e também de ajustar a estrutura governativa às exigências de um mundo a braços com desafios múltiplos, não é de estranhar que o maior partido da oposição mesmo à distância de vários anos das próximas eleições esteja a sinalizar para a sociedade que se prepara para regressar ao poder.

Como na generalidade dos países também em Cabo Verde a crise da democracia é fundamentalmente uma crise de representação e o seu epicentro é o parlamento. Com discursos antipartido e antielitistas quer-se fazer as pessoas acreditar que não são escutadas, nem os seus interesses tidos em consideração e que a solução é seguir cegamente líderes que primam pela autenticidade e ligação às pessoas. Após as eleições legislativas de 2016 a crise claramente que se aprofundou com o populismo e com o pessoalismo na política a dominar na actuação dos partidos. O fenómeno não apenas cabo-verdiano como se vê na eleição de Trump nos EUA, de Bolsonaro no Brasil e da ascensão de populistas na Itália, Hungria, Espanha e outros países europeus. A verdade é que com tudo isso a qualidade do trabalho parlamentar caiu muito comparativamente, dando mais argumentos aos costumeiros inimigos da democracia e do pluralismo. A par disso oferece-se oportunidade de questionar a utilidade do parlamento e de, a exemplo do que se passa nos países com líderes populistas, descredibilizar as instituições tomando como alvos preferenciais o parlamento, o sistema judicial e os médias.

De alguma forma algo mais consciente do desgaste provocado nas instituições e nos partidos políticos já se nota nas tentativas de inflectir o sentido das tendências actuais. No Paicv, na sequência da derrota nas legislativas, elegeu-se um novo líder com um claro mandato para reunir tendências, gerações e experiências para melhor se apresentar como alternativa credível nas eleições de 2026. No MpD, a revelar problemas internos por resolver, há, com o partido no governo, um caso possivelmente inédito, exceptuando nos sistemas parlamentares do tipo inglês, de uma possível disputa da liderança a meio do mandato. Combater as derivas populistas no interior dos partidos, porém não é suficiente. Há que fazer o parlamento exercer as suas competências em particular em relação a outros órgãos de soberania como foi o caso de reavaliação do veto do presidente da república e de eleição no tempo certo de órgãos externos da assembleia nacional para não se estar na situação de ter órgãos com mandatos terminados há quase um ano.

A credibilização do parlamento passa por se ultrapassar a imagem de crispação política existente e mostrar que é possível o exercício do contraditório sem que isso conduza ao bloqueio e à impossibilidade de negociar, construir consensos e firmar acordos em boa fé. Isso é essencial para a estabilidade governativa do país e para se ter de facto uma real fiscalização dos actos da governação. Também é importante para mostrar que ao funcionar com discurso aberto e com contraditório, dados transparentes e com foco no interesse público esta-se a evitar que verdades alternativas, teorias de conspiração e outras distorções da realidade ganhem proeminência na sociedade. Nesse aspecto foi uma falha lamentável na sessão da semana deixar passar a oportunidade de reparar imediatamente o chamado “erro material” detectado no código penal que deixou alguns crimes de corrupção passiva e activa e tráfico de influência com prazos de prescrição baixos. De acordo com a declaração de voto do Paicv a vontade unanimemente expressa do legislador na plenária e em sede da comissão especializada era precisamente no sentido contrário e para elevar para prazos máximos a prescrição desses crimes.

A iniciar um segundo ano de mandato é de toda a importância que a Assembleia Nacional assuma as suas funções como pilar fundamental do sistema de governo e contribua efectivamente para o cumprimento do princípio da separação e a interdependência dos órgãos de soberania. Enquanto órgão de soberania que representa todos os cidadãos na pluralidade das suas opiniões e na diversidade dos seus interesses deve agir decisivamente para se prosseguir com o jogo democrático, a única via para se encontrar soluções para os problemas de hoje e se construir o amanhã sem que a liberdade e a dignidade de todos sejam sacrificadas. O primeiro ano foi em certos aspectos algo atípico. Que o segundo que agora começa se reja pela normalidade democratica para que todos sejam ganhadores. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1068 de 18 de Maio de 2022.

segunda-feira, maio 16, 2022

Reescrever a parceria especial

 Nas mensagens divulgadas no dia 9 de Maio o Presidente da República e o Primeiro-ministro saudaram o Dia da Europa, o dia que celebra a paz e a unidade do continente europeu, e manifestaram a vontade de Cabo Verde de reforçar e aprofundar as relações com a União Europeia.

Na sua mensagem, o PR para além de caracterizar a Europa como parceiro estratégico diz que “está em gestação uma nova ordem mundial e Cabo Verde deve saber reposicionar-se e, desde logo, reescrever a parceria especial com a União Europeia”. Acrescenta ainda que o país deve agir inteligentemente para dar à parceria especial novos contornos, no sentido do seu aprofundamento e adequação aos desafios emergentes na arena internacional, com profundos reflexos num pequeno estado insular como o nosso”.

As mensagens deixam passar alguma apreensão e urgência. Compreende-se que seja assim. O aniversário da Europa que também significativamente quase que coincide com o dia do fim da segunda guerra mundial, 8 de Maio, acontece num momento em que a paz foi quebrada no velho continente com a agressão russa à Ucrânia. Já se vê que a resposta unânime da Europa manifestando solidariedade com luta dos ucranianos na defesa da integridade territorial do seu país e impondo pesadas e abrangentes sanções à Rússia vai ser um ponto de viragem nas políticas europeias com consequências designadamente nas políticas de alargamento e de defesa.

Outras consequências já se estão a verificar nos extraordinários aumentos de energia, de bens alimentares e de vários outros produtos. A prazo, os efeitos da inflação, o impacto da dívida pública e os efeitos dos estrangulamentos nas cadeias de abastecimento vão conjugar para diminuir os rendimentos das pessoas e baixar as taxas de crescimento económico. Em maior dificuldade ficarão os países em desenvolvimento a braços com a manutenção do ritmo da retoma pós-pandémica num ambiente movediço de rearranjo das relações económicas. Num tal contexto confiança e previsibilidade nas cadeias globais de valor e de abastecimento ganham importância fulcral. Crucial será poder prever os contornos dessa nova ordem mundial e saber como reposicionar-se tendo em conta que provavelmente o mundo tornar-se-á mais complexo, por que marcado por rivalidades geopolíticas e pela dinâmica de blocos económicos que obrigam a tomadas de partido e não deixam muito espaço para a ambiguidade e o equívoco nas relações internacionais.

Para Cabo Verde, o Banco Central (BCV), no relatório semestral de política monetária divulgado na semana passada, aponta riscos para a economia associados à escalada da guerra na Ucrânia e o apertar das sanções à Rússia. Neles o BCV inclui a escassez de matérias-primas e cortes na produção de sectores económicos dependentes desses produtos, as consequências de preços de importação muito mais altos e possíveis desabastecimentos e também as incertezas e a falta de confiança criadas que afectariam as decisões de consumo e de investimentos de empresas e pessoas. De acordo com o BCV, os riscos poderão agravar-se mais se a situação da covid-19 na China persistir, se a expectativa de inflação se mantiver e se houver o ressurgimento da pandemia com uma nova variante mais contagiosa e mais letal.

São alertas que deviam levar os actores políticos e a sociedade no seu conjunto a reflectir mais aprofundadamente sobre a conjuntura actual marcada ao nível nacional pela seca, pela pandemia e pela dívida pública e ao nível internacional pelas ondas sísmicas causadas pelos constrangimentos nas cadeias de abastecimento, pela inflação e pela guerra na Ucrânia e por tensões geopolíticas em vários pontos do globo. Até agora não se tem a impressão que foi dada a devida atenção a estas questões, pelo menos no que toca à mudanças de comportamento e de atitude. Continua-se a substituir discussões substantivas de políticas por exercícios de arremesso político e persiste-se com a prática da política-espectáculo e do eleitoralismo permanente. Não se apela suficientemente à solidariedade que os tempos exigem e que podia levar a mais contenção nos comportamentos e gastos, mais ponderação nas reivindicações e maior disponibilidade em encontrar vias e soluções para os múltiplos problemas que afligem o país.

Do BCV, para além dos alertas vêm as recomendações para reduzir o peso da dívida pública priorizando gastos essenciais e para avançar com reformas que resolvem problemas estruturais e aumentam o potencial da economia do país. Uma outra recomendação é que a perda de rendimento da economia seja compartilhada por trabalhadores e empresas para não se entrar numa espiral inflacionária que prejudicaria a todos. Aí, porém, as autoridades teriam que agir com um outro rigor na fiscalização económica para evitar a extracção de lucros excessivos pelas empresas num ambiente de aumento rápido de preços. Os trabalhadores, por seu lado, teriam que conter-se nas reivindicações salariais para se evitar pressão sobre os preços. Para conseguir isso talvez fosse necessário um pacto Estado, patronato e sindicatos para o crescimento e para o emprego. Implicaria provavelmente que os problemas do país e os desafios que se colocam na actual conjuntura fossem assumidos na sua plenitude por todos, ressalvando a diversidade dos pontos de vista e das estratégias a adoptar para os enfrentar. Também implicaria que o passado deixasse de ser objecto de nostalgia e motivo de ressentimento para se poder concentrar no presente e potenciar o que existe com vista à construção de um futuro inclusivo e sustentável.

Realismo e pragmatismo devem caracterizar as políticas de Cabo Verde neste momento particularmente desafiador em que o país, a sair da crise pós-pandémica, enfrenta uma conjuntura internacional de incertezas. Considerando que cerca de 80% das importações e exportações do país é com a Europa e que também daí vem o grosso da ajuda externa, das remessas dos emigrantes e do investimento externo e se situa o ponto de origem do fluxo do turismo que contribui para 25% da economia nacional, faz todo o sentido que seja o principal foco da atenção estratégica do país. Aumentar o potencial do país é fundamental assim como é de suma importância estar atento às mudanças e saber ajustar-se com vantagens.

O aprofundamento da parceria especial com a União Europeia que o PR incentiva no actual momento de viragem da União Europeia tem particular urgência neste momento em se está a sinalizar que a comunhão de valores e princípios democráticos e liberais é fundamental para a solidariedade entre as democracias e vai ganhar mais peso nas relações económicas futuras que se querem mais resilientes. Os tempos recentes da pandemia demonstraram como foi importante para Cabo Verde a solidariedade do Ocidente nas vacinas e na ajuda bilateral e multilateral para que o pior da crise fosse ultrapassado. O futuro próximo está cheio de incertezas e desafios importantes colocados, seja pela ameaça ainda presente do coronavírus e dos constrangimentos no abastecimento, seja pelas alterações climáticas e pela transição energética que para serem ultrapassados exigem que se reforce e se aprofunde a cooperação com outros países, em particular com aqueles com quem se partilham valores e se tem o maior nível de integração económica. Há que ser pertinente e inteligente para ser bem-sucedido. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1067 de 11 de Maio de 2022.

segunda-feira, maio 09, 2022

Mais responsabilidade constitucional

 No debate parlamentar com o Primeiro-ministro sobre Segurança que teve lugar na semana passada aconteceu um acto inédito. O PM fez um requerimento à Mesa da Assembleia Nacional para obrigar os deputados do Paicv a entregar provas das denúncias de escutas telefónicas ilegais e uso indevido de videovigilância.

O próprio PM confessou que não sabe se o governo pode solicitar um requerimento ao parlamento. De facto, o artigo 114º não inclui fazer requerimentos no uso da palavra pelos membros do governo enquanto para os deputados está claramente estabelecido na alínea g) do artigo 111º. Por outro lado, consideram-se requerimentos só os pedidos respeitantes ao processo de apresentação, discussão e votação ou ao funcionamento da reunião (artigo 121º). Não parece que tenham cabimento na dinâmica de um debate em sede de fiscalização política do governo em que “a uma acusação política se responde com uma refutação política”. Mesmo assim foi-se avante com o requerimento, mas ninguém espera que tenha quaisquer efeitos práticos.

Exigir entrega de provas das denúncias só contribuiu para cortar a meio o debate e para o transformar em mais um exercício de arremesso político prejudicando ainda mais a imagem já desgastada do parlamento. É seguir pelo caminho da judicialização da política que de facto atenta contra a liberdade de expressão dos deputados como bem referem vários constitucionalistas e põe em perigo a eficácia do parlamento como órgão de soberania que fiscaliza a acção governativa. Ainda bem que existem as imunidades incluindo a irresponsabilidade civil, criminal e disciplinar do deputado em relação a tudo o que é dito na plenária da assembleia nacional para que os pesos e contrapesos funcionem na democracia e haja accountability, ou seja, a responsabilização e a prestação de contas por todos os actos praticados por quem tem o mandato, os recursos e os meios para governar. Tentar coartar isso é que pode configurar um ataque às instituições democráticas em particular àquela onde os cidadãos estão representados no seu pluralismo e na diversidade dos seus interesses.

De facto, dar vazão a queixas ou denúncias de cidadãos de eventual uso ilícito e ilegal de escutas telefónicas ou outros meios de vigilância electrónica no quadro de um debate parlamentar com o PM não devia ser visto como ataque a serviços ou departamentos do Estado como a polícia e serviços de informação que estão sob a direcção ou superintendência do governo da república. Em causa estão direitos fundamentais dos cidadãos para cuja defesa todos os órgãos de soberania numa democracia liberal e constitucional têm especial obrigação de activamente contribuir. E a verdade é que possibilidades de abuso desses meios na investigação criminal e no âmbito da recolha de informações por razões de segurança existem sempre mesmo nas democracias mais maduras e com sistemas de controlo judicial e outros dos mais estritos.

São conhecidos casos que de tempos em tempos vêm a público na América e na Europa de atropelos diversos e que depois levam a inquéritos, revisão dos procedimentos e aprimoramento dos mecanismos de controlo. Recentemente foi revelado o caso de escuta dos telemóveis de ministros em Espanha e um pouco antes de um caso similar de escuta de personalidades da Catalunha que já tinha sido alvo de denúncias da oposição e dos separatistas catalães. No caso de Cabo Verde, em que a democracia é menos madura e em que se está praticamente no início da criação de uma cultura institucional respeitadora dos direitos, é fundamental que da parte do governo haja uma preocupação e uma disposição por fazer os serviços sob sua responsabilidade, cumprir o legalmente estabelecido e estar atento a todas insuficiências, omissões e uso ilícito dos meios disponibilizados. Para além das auditorias que por iniciativa própria deve promover, queixas e denúncias dos cidadãos devem ser investigadas como forma também de avaliar o sistema, tendo sempre em conta que do Estado se espera em primeiro lugar que garanta a segurança, a liberdade e a privacidade de cada cidadão.

Tomar denúncias no parlamento como ataques a departamentos e serviços do estado em vez de aproveitar para esclarecer situações e procedimentos existentes e também de refutar acusações se as houver ou avançar com investigação quando se mostrar necessário retira o aspecto construtivo do que legitimamente se devia esperar do debate entre situação e oposição. Pelo contrário, tende-se a personalizar as críticas feitas e tomá-las como sendo dirigidas aos profissionais do sector, sejam eles polícias, professores, médicos e enfermeiros ou outras classes de funcionários públicos. Na sequência, o que se nota é que o debate degradar-se, passando as partes a competir para mostrar quem é o melhor a proteger essas classes de profissionais em salários, benefícios e meios disponibilizados como se tudo isso se tratasse de uma corrida eleitoral para assegurar votos. Evidentemente que num ambiente assim as razões para o debate perdem-se pelo caminho e as questões reais e urgentes de segurança, de qualidade do ensino, eficácia da justiça, e de resultados de políticas em vários outros sectores passam para o segundo plano.

Recorrentemente as mesmas matérias regressam para o debate e invariavelmente acontece o mesmo. Privilegia-se o apelo a sentimentos e a identidades artificiais, factos não são reconhecidos ou vistos em contexto e no fim o que prevalece é a “cor da camisola” deixando pouco espaço para compromissos e consensos. Infelizmente as alternâncias na governação e na oposição não se têm prestado para melhorar a situação com diminuição da crispação e o firmar de acordos tácitos que permitisse quebrar o círculo vicioso actual. Parece faltar o que alguns chamam de “responsabilidade constitucional” que leva a que se cumpram as regras do jogo democrático para que as virtualidades do pluralismo, da diversidade e do exercício do contraditório se conjugam para realizar o interesse colectivo. Mais forte tem sido a tentação pelo personalismo na política que depois acaba por se traduzir em falhas repetidas no funcionamento de órgãos de poder político ao nível central e local e em protagonismos desajustados de figuras públicas com responsabilidade.

O facto de nem as sucessivas crises, com o seu impacto dramático e até assustador criando muitas incertezas para o futuro, se mostrarem suficientes para mudar o estado de coisas na esfera pública, é realmente preocupante. Ainda não se consegue focar nos desafios que se colocam ao país mesmo quando a conjuntura é terrível e incerta. Também não há atitude de contenção como se pode ver pelos festivais com dinheiro público já anunciados, tornando difícil nutrir o espírito de solidariedade que os tempos actuais exigem. Paradoxalmente, como se nada tivesse acontecido – guerra, aumentos brutais de preços, endividamento rápido do país - parece reinar ainda o eleitoralismo mesmo sem eleições à vista, como se viu na última sessão do parlamento. Em consequência, não se deixa que mesmo os problemas mais candentes e urgentes de Cabo Verde sejam tratados com seriedade e sentido de responsabilidade. Todos, porém, devem reconhecer que a situação do país e do mundo não permite que isso continue. Urge uma mudança de rumo e de atitude.   

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1066 de 4 de Maio de 2022.

segunda-feira, maio 02, 2022

Com a desglobalização em curso passos falsos pagam-se mais caros

 

As reuniões de Abril das instituições de Bretton Woods ficaram marcadas pela más notícias que dominam a actual conjuntura mundial. A previsão do crescimento mundial foi revista em baixa em cerca de 1,3%. Espera-se inflação à volta dos 5,7% nos países desenvolvidos e 8,7% nos países em desenvolvimento e um maior risco de incumprimento no serviço da dívida pública de muitos países, em particular os menos desenvolvidos. Fala-se abertamente do fim da globalização pelo menos na forma como se tem até agora processado e que se caracteriza pela capacidade de bens, pessoas e capital se moverem livremente para onde são mais produtivos. Nesse sentido, a expectativa é que o futuro seja de um mundo bipolar ou multipolar e com maior enfase na regionalização. Também é previsível que, no que alguns já chamam de nova ordem mundial, para além do aumento das tensões globais, haja perdas de eficiência na circulação dos produtos com impacto geral nos preços de bens e serviços.

Para a Secretária do Tesouro dos Estados Unidos da América, Janet Yellen, num discurso proferido uma semana antes das reuniões do FMI e do Banco Mundial (13 de Abril), a emergência de uma nova ordem internacional é já uma realidade incontornável. Por causa da invasão da Ucrânia, as sanções aplicadas à Rússia irão transformá-la num país pária ficando também de fora dessa nova ordem os países cúmplices nas tentativas de contornar as medidas punitivas do mundo ocidental. Segundo Yellen, se com a globalização aconteceu muito do offshoring das empresas no processo de construção das cadeias globais de valor, e mais recentemente as tentações proteccionistas clamaram por onshoring para recuperar postos de trabalho e rendimentos perdidos, agora a questão deve ser posta numa nova perspectiva que é de friendly-shoring.

A preocupação já não é só eficiência, mas também resiliência e isso é um compromisso que se consegue criando cadeias de abastecimento e de valor, mas só com países que comungam dos mesmos princípios e valores e dão garantias num quadro de uma ordem que funciona com regras estabelecidas em matéria designadamente de concorrência, respeito pela propriedade intelectual e regime laboral. Janet Yellen foi clara na sua intervenção que não é de admitir no novo bloco económico países que com força de mercado em matérias-primas, tecnologias ou outros produtos abusem desse poder e criem constrangimentos aos outros para ganhar vantagens geopolíticas. Aparentemente no quadro dessa nova ordem a selecção de países para o chamado friendly-shoring vai ser mais rigoroso, não deixando muito espaço para países que ora pendem para um lado, ora para outro, muito no estilo da política dos países não-alinhados dos tempos da Guerra Fria.

A verdade é que agora o que está em jogo não são só questões ideológicas ou mesmo rivalidades dos blocos militares de outrora. Trata-se de segurança económica e também de enfrentar desafios da transição energética, de se ajustar a um mundo dominado pelo digital, preparar-se para futuras crises pandémicas e de cooperar na resposta global às alterações climáticas. Não dá para ter parceiros em cima do muro. Essa é uma das razões para a forte reacção negativa do Ocidente à abstenção na matéria de suspensão da Rússia da Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas. Dos 143 países que pouco tempo antes tinham condenado a invasão da Ucrânia só 93 concordaram em aprovar a resolução de suspensão. O facto é que a agressão da Rússia continua e ameaça alastrar-se ainda mais para assegurar o controlo do Leste e Sul da Ucrânia e possivelmente incluindo a Transnístria que é parte da Moldávia. E a situação perigosa que se desenha é de um conflito durável e mais alargado e com risco de envolver armas nucleares, possibilidade não excluída por muitos e que não deixa muito espaço para posições ambíguas que talvez antes eram possíveis.

Cabo Verde vai ter que encontrar o seu lugar nesta ordem emergente com características muito próprias e desafios ainda desconhecidos. No desenvolvimento de uma estratégia própria para se enquadrar no novo quadro mundial certamente que terá em perspectiva o seu ponto de partida. Cabo Verde é hoje uma democracia liberal e tem uma economia altamente integrada na economia do Ocidente, também democrático e liberal, para onde mais exporta, de onde mais importa e vem a quase totalidade do fluxo turístico e do investimento directo estrangeiro, de quem recebe a maior parte da ajuda externa e é a origem das remessas das suas comunidades emigradas. Actualmente, o país está ainda a sofrer o impacto de crises sucessivas, seca, covid-19 e guerra na Ucrânia que têm contribuído para o excesso da dívida pública, para alta de preços e para as dificuldades em fazer a retoma da economia. No meio de todas as incertezas presentes devia ser claro que não há espaço para posições equívocas quando democracias são ameaçadas. Também faz todo o sentido que se procure aproveitar as oportunidades que uma reconfiguração das cadeias de valor venha oferecer na lógica do friendly-shoring.

A parceria especial com a União Europeia tem merecido o consenso de todo os governos e certamente que haverá apoio generalizado para o seu reforço. Neste momento em que o processo de globalização sofre um recuo e possível reconfiguração em blocos económicos é de se servir da base extensa de interacção que já existe e da convergência de princípios e valores para se proceder numa ancoragem mais firme na zona económica em que efectivamente o país funciona. O foco nesse sentido não deve excluir a possibilidade de exploração de outras parcerias, mas sempre tendo em vista os constrangimentos existentes como bem apontou o secretário geral da Zona de Comércio Livre Continental Africana, ZCLCA, quando se referiu ao problema da conectividade das ilhas com as economias do continente. De facto, o comércio intercontinental é ainda menos que 20%, comparado com os mais 60% da Europa, 40% das Américas e 30% da Ásia. Sem um volume de comércio aceitável não há como sustentar tráfego marítimo e aéreo regular.

Qualquer estratégia para ser eficaz precisa fazer a devida ponderação das situações, ter sempre em mente os objectivos e saber a todo o momento quais as prioridades a atingir. Mais do que nunca, principalmente por causa dos grandes desafios que se colocam, esperam-se resultados e não exercícios do mais do mesmo em que governação efectiva é substituída por política de espectáculo. Eficiências exigidas nestes tempos de magros recursos conseguem-se evitando protagonismos excessivos e desencontrados que retiram consistência às políticas apresentadas, prejudicam a cooperação e mesmo a solidariedade entre os seus principais agentes e minam a confiança de quem quer ver coerência na governação. É preciso ter em atenção que no mundo polarizado de hoje passos falsos pagam-se mais caros e oportunidades perdidas não se repetem com facilidade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1065 de 27 de Abril de 2022.