segunda-feira, maio 02, 2022

Com a desglobalização em curso passos falsos pagam-se mais caros

 

As reuniões de Abril das instituições de Bretton Woods ficaram marcadas pela más notícias que dominam a actual conjuntura mundial. A previsão do crescimento mundial foi revista em baixa em cerca de 1,3%. Espera-se inflação à volta dos 5,7% nos países desenvolvidos e 8,7% nos países em desenvolvimento e um maior risco de incumprimento no serviço da dívida pública de muitos países, em particular os menos desenvolvidos. Fala-se abertamente do fim da globalização pelo menos na forma como se tem até agora processado e que se caracteriza pela capacidade de bens, pessoas e capital se moverem livremente para onde são mais produtivos. Nesse sentido, a expectativa é que o futuro seja de um mundo bipolar ou multipolar e com maior enfase na regionalização. Também é previsível que, no que alguns já chamam de nova ordem mundial, para além do aumento das tensões globais, haja perdas de eficiência na circulação dos produtos com impacto geral nos preços de bens e serviços.

Para a Secretária do Tesouro dos Estados Unidos da América, Janet Yellen, num discurso proferido uma semana antes das reuniões do FMI e do Banco Mundial (13 de Abril), a emergência de uma nova ordem internacional é já uma realidade incontornável. Por causa da invasão da Ucrânia, as sanções aplicadas à Rússia irão transformá-la num país pária ficando também de fora dessa nova ordem os países cúmplices nas tentativas de contornar as medidas punitivas do mundo ocidental. Segundo Yellen, se com a globalização aconteceu muito do offshoring das empresas no processo de construção das cadeias globais de valor, e mais recentemente as tentações proteccionistas clamaram por onshoring para recuperar postos de trabalho e rendimentos perdidos, agora a questão deve ser posta numa nova perspectiva que é de friendly-shoring.

A preocupação já não é só eficiência, mas também resiliência e isso é um compromisso que se consegue criando cadeias de abastecimento e de valor, mas só com países que comungam dos mesmos princípios e valores e dão garantias num quadro de uma ordem que funciona com regras estabelecidas em matéria designadamente de concorrência, respeito pela propriedade intelectual e regime laboral. Janet Yellen foi clara na sua intervenção que não é de admitir no novo bloco económico países que com força de mercado em matérias-primas, tecnologias ou outros produtos abusem desse poder e criem constrangimentos aos outros para ganhar vantagens geopolíticas. Aparentemente no quadro dessa nova ordem a selecção de países para o chamado friendly-shoring vai ser mais rigoroso, não deixando muito espaço para países que ora pendem para um lado, ora para outro, muito no estilo da política dos países não-alinhados dos tempos da Guerra Fria.

A verdade é que agora o que está em jogo não são só questões ideológicas ou mesmo rivalidades dos blocos militares de outrora. Trata-se de segurança económica e também de enfrentar desafios da transição energética, de se ajustar a um mundo dominado pelo digital, preparar-se para futuras crises pandémicas e de cooperar na resposta global às alterações climáticas. Não dá para ter parceiros em cima do muro. Essa é uma das razões para a forte reacção negativa do Ocidente à abstenção na matéria de suspensão da Rússia da Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas. Dos 143 países que pouco tempo antes tinham condenado a invasão da Ucrânia só 93 concordaram em aprovar a resolução de suspensão. O facto é que a agressão da Rússia continua e ameaça alastrar-se ainda mais para assegurar o controlo do Leste e Sul da Ucrânia e possivelmente incluindo a Transnístria que é parte da Moldávia. E a situação perigosa que se desenha é de um conflito durável e mais alargado e com risco de envolver armas nucleares, possibilidade não excluída por muitos e que não deixa muito espaço para posições ambíguas que talvez antes eram possíveis.

Cabo Verde vai ter que encontrar o seu lugar nesta ordem emergente com características muito próprias e desafios ainda desconhecidos. No desenvolvimento de uma estratégia própria para se enquadrar no novo quadro mundial certamente que terá em perspectiva o seu ponto de partida. Cabo Verde é hoje uma democracia liberal e tem uma economia altamente integrada na economia do Ocidente, também democrático e liberal, para onde mais exporta, de onde mais importa e vem a quase totalidade do fluxo turístico e do investimento directo estrangeiro, de quem recebe a maior parte da ajuda externa e é a origem das remessas das suas comunidades emigradas. Actualmente, o país está ainda a sofrer o impacto de crises sucessivas, seca, covid-19 e guerra na Ucrânia que têm contribuído para o excesso da dívida pública, para alta de preços e para as dificuldades em fazer a retoma da economia. No meio de todas as incertezas presentes devia ser claro que não há espaço para posições equívocas quando democracias são ameaçadas. Também faz todo o sentido que se procure aproveitar as oportunidades que uma reconfiguração das cadeias de valor venha oferecer na lógica do friendly-shoring.

A parceria especial com a União Europeia tem merecido o consenso de todo os governos e certamente que haverá apoio generalizado para o seu reforço. Neste momento em que o processo de globalização sofre um recuo e possível reconfiguração em blocos económicos é de se servir da base extensa de interacção que já existe e da convergência de princípios e valores para se proceder numa ancoragem mais firme na zona económica em que efectivamente o país funciona. O foco nesse sentido não deve excluir a possibilidade de exploração de outras parcerias, mas sempre tendo em vista os constrangimentos existentes como bem apontou o secretário geral da Zona de Comércio Livre Continental Africana, ZCLCA, quando se referiu ao problema da conectividade das ilhas com as economias do continente. De facto, o comércio intercontinental é ainda menos que 20%, comparado com os mais 60% da Europa, 40% das Américas e 30% da Ásia. Sem um volume de comércio aceitável não há como sustentar tráfego marítimo e aéreo regular.

Qualquer estratégia para ser eficaz precisa fazer a devida ponderação das situações, ter sempre em mente os objectivos e saber a todo o momento quais as prioridades a atingir. Mais do que nunca, principalmente por causa dos grandes desafios que se colocam, esperam-se resultados e não exercícios do mais do mesmo em que governação efectiva é substituída por política de espectáculo. Eficiências exigidas nestes tempos de magros recursos conseguem-se evitando protagonismos excessivos e desencontrados que retiram consistência às políticas apresentadas, prejudicam a cooperação e mesmo a solidariedade entre os seus principais agentes e minam a confiança de quem quer ver coerência na governação. É preciso ter em atenção que no mundo polarizado de hoje passos falsos pagam-se mais caros e oportunidades perdidas não se repetem com facilidade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1065 de 27 de Abril de 2022.

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