Nas mensagens divulgadas no dia 9 de Maio o Presidente da República e o Primeiro-ministro saudaram o Dia da Europa, o dia que celebra a paz e a unidade do continente europeu, e manifestaram a vontade de Cabo Verde de reforçar e aprofundar as relações com a União Europeia.
Na sua mensagem, o PR para além de caracterizar a Europa como parceiro estratégico diz que “está em gestação uma nova ordem mundial e Cabo Verde deve saber reposicionar-se e, desde logo, reescrever a parceria especial com a União Europeia”. Acrescenta ainda que o país deve agir inteligentemente para dar à parceria especial novos contornos, no sentido do seu aprofundamento e adequação aos desafios emergentes na arena internacional, com profundos reflexos num pequeno estado insular como o nosso”.
As mensagens deixam passar alguma apreensão e urgência. Compreende-se que seja assim. O aniversário da Europa que também significativamente quase que coincide com o dia do fim da segunda guerra mundial, 8 de Maio, acontece num momento em que a paz foi quebrada no velho continente com a agressão russa à Ucrânia. Já se vê que a resposta unânime da Europa manifestando solidariedade com luta dos ucranianos na defesa da integridade territorial do seu país e impondo pesadas e abrangentes sanções à Rússia vai ser um ponto de viragem nas políticas europeias com consequências designadamente nas políticas de alargamento e de defesa.
Outras consequências já se estão a verificar nos extraordinários aumentos de energia, de bens alimentares e de vários outros produtos. A prazo, os efeitos da inflação, o impacto da dívida pública e os efeitos dos estrangulamentos nas cadeias de abastecimento vão conjugar para diminuir os rendimentos das pessoas e baixar as taxas de crescimento económico. Em maior dificuldade ficarão os países em desenvolvimento a braços com a manutenção do ritmo da retoma pós-pandémica num ambiente movediço de rearranjo das relações económicas. Num tal contexto confiança e previsibilidade nas cadeias globais de valor e de abastecimento ganham importância fulcral. Crucial será poder prever os contornos dessa nova ordem mundial e saber como reposicionar-se tendo em conta que provavelmente o mundo tornar-se-á mais complexo, por que marcado por rivalidades geopolíticas e pela dinâmica de blocos económicos que obrigam a tomadas de partido e não deixam muito espaço para a ambiguidade e o equívoco nas relações internacionais.
Para Cabo Verde, o Banco Central (BCV), no relatório semestral de política monetária divulgado na semana passada, aponta riscos para a economia associados à escalada da guerra na Ucrânia e o apertar das sanções à Rússia. Neles o BCV inclui a escassez de matérias-primas e cortes na produção de sectores económicos dependentes desses produtos, as consequências de preços de importação muito mais altos e possíveis desabastecimentos e também as incertezas e a falta de confiança criadas que afectariam as decisões de consumo e de investimentos de empresas e pessoas. De acordo com o BCV, os riscos poderão agravar-se mais se a situação da covid-19 na China persistir, se a expectativa de inflação se mantiver e se houver o ressurgimento da pandemia com uma nova variante mais contagiosa e mais letal.
São alertas que deviam levar os actores políticos e a sociedade no seu conjunto a reflectir mais aprofundadamente sobre a conjuntura actual marcada ao nível nacional pela seca, pela pandemia e pela dívida pública e ao nível internacional pelas ondas sísmicas causadas pelos constrangimentos nas cadeias de abastecimento, pela inflação e pela guerra na Ucrânia e por tensões geopolíticas em vários pontos do globo. Até agora não se tem a impressão que foi dada a devida atenção a estas questões, pelo menos no que toca à mudanças de comportamento e de atitude. Continua-se a substituir discussões substantivas de políticas por exercícios de arremesso político e persiste-se com a prática da política-espectáculo e do eleitoralismo permanente. Não se apela suficientemente à solidariedade que os tempos exigem e que podia levar a mais contenção nos comportamentos e gastos, mais ponderação nas reivindicações e maior disponibilidade em encontrar vias e soluções para os múltiplos problemas que afligem o país.
Do BCV, para além dos alertas vêm as recomendações para reduzir o peso da dívida pública priorizando gastos essenciais e para avançar com reformas que resolvem problemas estruturais e aumentam o potencial da economia do país. Uma outra recomendação é que a perda de rendimento da economia seja compartilhada por trabalhadores e empresas para não se entrar numa espiral inflacionária que prejudicaria a todos. Aí, porém, as autoridades teriam que agir com um outro rigor na fiscalização económica para evitar a extracção de lucros excessivos pelas empresas num ambiente de aumento rápido de preços. Os trabalhadores, por seu lado, teriam que conter-se nas reivindicações salariais para se evitar pressão sobre os preços. Para conseguir isso talvez fosse necessário um pacto Estado, patronato e sindicatos para o crescimento e para o emprego. Implicaria provavelmente que os problemas do país e os desafios que se colocam na actual conjuntura fossem assumidos na sua plenitude por todos, ressalvando a diversidade dos pontos de vista e das estratégias a adoptar para os enfrentar. Também implicaria que o passado deixasse de ser objecto de nostalgia e motivo de ressentimento para se poder concentrar no presente e potenciar o que existe com vista à construção de um futuro inclusivo e sustentável.
Realismo e pragmatismo devem caracterizar as políticas de Cabo Verde neste momento particularmente desafiador em que o país, a sair da crise pós-pandémica, enfrenta uma conjuntura internacional de incertezas. Considerando que cerca de 80% das importações e exportações do país é com a Europa e que também daí vem o grosso da ajuda externa, das remessas dos emigrantes e do investimento externo e se situa o ponto de origem do fluxo do turismo que contribui para 25% da economia nacional, faz todo o sentido que seja o principal foco da atenção estratégica do país. Aumentar o potencial do país é fundamental assim como é de suma importância estar atento às mudanças e saber ajustar-se com vantagens.
O aprofundamento da parceria especial com a União Europeia que o PR incentiva no actual momento de viragem da União Europeia tem particular urgência neste momento em se está a sinalizar que a comunhão de valores e princípios democráticos e liberais é fundamental para a solidariedade entre as democracias e vai ganhar mais peso nas relações económicas futuras que se querem mais resilientes. Os tempos recentes da pandemia demonstraram como foi importante para Cabo Verde a solidariedade do Ocidente nas vacinas e na ajuda bilateral e multilateral para que o pior da crise fosse ultrapassado. O futuro próximo está cheio de incertezas e desafios importantes colocados, seja pela ameaça ainda presente do coronavírus e dos constrangimentos no abastecimento, seja pelas alterações climáticas e pela transição energética que para serem ultrapassados exigem que se reforce e se aprofunde a cooperação com outros países, em particular com aqueles com quem se partilham valores e se tem o maior nível de integração económica. Há que ser pertinente e inteligente para ser bem-sucedido.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1067 de 11 de Maio de 2022.
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