segunda-feira, maio 30, 2022

Por um jogo de soma positiva

 

Há um ano atrás tomava posse o novo governo saído das eleições legislativas de 18 de Abril. O país encontrava-se então em meio do surto da variante Delta do Sars-CoV-2, mas já se descortinava algum alívio das graves restrições de 2020 em resposta à pandemia que conduziram à contracção de 14,8% da economia nacional.

No discurso do primeiro-ministro apontava-se como prioridades sociais o emprego, a eliminação da pobreza extrema e a redução da pobreza absoluta e como prioridades económicas o crescimento, o alívio da dívida e a diversificação da economia. Com o desenvolvimento de vacinas e início de vacinação em grande escala, particularmente nos países emissores de turistas, perspectivava-se já um início da retoma que infelizmente não veio a se concretizar na dimensão esperada. Incertezas várias vieram baralhar tudo.

Primeiro surgiu a nova variante Ómicron altamente contagiosa e logo de seguida as tensões geopolíticas na Europa que depois desembocaram na invasão da Ucrânia pela Rússia. Reapareceram as restrições de viagem e os constrangimentos nas várias cadeias de abastecimento tornaram-se piores. O crescimento económico do ano 2021 ficou pelos 7% e as previsões para 2022 já de per si menos optimistas de 2021 sofreram uma quebra para um intervalo (3,5-4,5%) como aliás aconteceu ao nível global e também na generalidade dos países, de acordo com os dados de Abril do FMI/Banco Mundial.

Onde aparentemente não se notou mudança significativa foi nas políticas de antes da pandemia, que a todo o vapor se dá continuidade sem atender à conjuntura, e no tipo de confronto político que degrada o discurso e leva ao imobilismo mesmo perante problemas sérios e urgentes como a segurança. Também sem grandes alterações continuou a abordagem feita a questões essenciais do país que mexem com o futuro e a credibilidade das instituições. Opta-se em geral por varrer os problemas para debaixo do tapete. O próprio governo continua impávido com a mesma estrutura e o mesmo número de membros de há um ano atrás, salvo o reajuste devido a um pedido de demissão, não obstante as mudanças de conjuntura que obrigam a melhorar drasticamente a eficiência na utilização dos meios e recursos e a enviar sinais de contenção e solidariedade para a sociedade.

O facto de até agora não se puder prever como e quando se verá o fim do conflito na Ucrânia só tem aumentado as incertezas em relação ao futuro. No curto prazo já se percebe que todos são afectados pelos aumentos extraordinários dos preços em particular dos bens alimentares e energéticos. E que a verificar-se escassez de produtos em particular dos alimentares as consequências poderão ser desastrosas. Em face de tudo isto o mais natural é que houvesse uma disposição e uma motivação para fazer mudanças seja de comportamento, de políticas e de práticas. Paradoxalmente não é o que tem acontecido. Não se notaram as alterações na atitude das pessoas, instituições e países no sentido de mais cooperação e solidariedade que muitos esperavam ver por causa da pandemia e de outras ameaças como alterações climáticas. Em vários países o paradoxo é motivo de reflexão. Num país com as vulnerabilidades que Cabo Verde apresenta, compreender o que está por detrás do fenómeno é vital.

O mundo está a mudar rapidamente e em direcção difícel de prever. Há uma guerra em andamento que não se sabe como vai terminar ou como impedir que se alastre e sofra uma escalada para algo muito pior. Está-se a procurar isolar politica, económica e financeiramente um país, novas alianças militares tendem a formar-se e ordens económicas distintas podem vir a emergir. As disrupções ou convulsões que vão se processando enquanto o planeta procura outros equilíbrios afectam todos os países e em particular os mais pequenos, insulares, sem recursos naturais e sem economia diversificada. Num tal ambiente optar pelo imobilismo, por continuar a fazer o “mais do mesmo” e por transformar a política numa guerra de posições e num jogo de soma zero é o pior que se pode imaginar. Mas é precisamente por esses caminhos que se tem insistido em ir não obstante a seca, a pandemia, a recessão brutal de 2020, e a guerra na Ucrània e o seu impacto na inflação e na provável escassez de produtos básicos.

Viu-se recentemente a propósito da concessão dos aeroportos à Vinci. As forças políticas e a sociedade podem não discutir outros problemas cruciais do país como a educação, saúde, habitação e segurança, mas quando se trata da implementação de políticas económicas que incluem privatizações todas as paixões vêm à tona. Nessas circunstâncias fica-se com a impressão que não é propriamente a opção de política que se contesta. De facto, aproveita-se do assunto em questão para se renovar a divisão entre os que se assumem como “construtores” das infraestruturas nacionais os que são acusados de “vendedores” desses mesmos bens.

É claro que os supostos vendedores replicam que de facto o país na maior parte dos casos herdou elefantes brancos e dívida pública pesada contraída para os construir. Acrescentam ainda que uma solução possível para se conseguir dar utilidade a algumas dessas infraestruturas, criar riqueza nacional e conseguir receitas para pagar a dívida passa por atrair investimento externo através da venda ou concessão que traga capital, tecnologia, knowhow e mercado para os bens e serviços do país. O problema é quando a concretização desses propósitos falha estrondosamente como aconteceu com a CVA e os islandeses e cria-se o ambiente perfeito para se reproduzir a narrativa dos “vendedores da terra”. Com as paixões acirradas não há como reflectir sobre o que falhou, aprender com os erros e procurar posicionar-se melhor nas iniciativas futuras.

A pandemia e a perda do mercado externo que levou à maior recessão histórica de Cabo Verde e ao desemprego em massa de milhares de pessoas deviam ter sido instrumental para se compreender que Cabo Verde para prosperar terá que atrair investimento externo e mobilizar procura externa para os seus bens e serviços, ou seja, exportar. Todos os países, grandes e pequenos precisam de capital, tecnologia e mercados. Para os quase minúsculos e sem possibilidade de ter economias de escala como Cabo Verde não devia existir qualquer dúvida a esse respeito. Estranhamente, ou talvez não, aqui acredita-se que afinal se pode viver da ajuda externa ou que talvez o país seja “too small to fail”, demasiado pequeno para falir. É só ouvir e ver todos os dias na rádio e na televisão o entusiasmo e as demonstrações de autossatisfação com que são anunciados os milhões a serem investidos no âmbito da cooperação bilateral, multilateral e de instituições financeiras diversas.

Curiosamente, os objectos desses financiamentos sejam eles quais forem, em geral não são alvo das guerras de posições dos actores políticos apesar de em muitas áreas estabelecerem a agenda do país forçando opções de política que não passaram pelo crivo parlamentar. A política assim compartimentalizada permite que se vá avançando “a empurrar com a barriga” sem perturbar interesses instalados ao mesmo tempo que se reserva espaços de combate para luta pura pelo poder, sacrificando no processo o debate construtivo para a consecução do interesse nacional. Se em tempos normais os custos dessa postura dos actores políticos mesmo não sendo imediatamente visíveis acabam por pesar, afectando a credibilidade e eficácia das instituições e minando a confiança das pessoas, em tempos de transformações rápidas, como actualmente, podem ser um fardo terrível e ter efeitos desastrosos. No arrancar de mais um ano de governação, e com o mundo à beira de mudanças profundas, exige-se uma outra atitude e um patriotismo constitucional que não permita que a política se limite aos termos de um jogo de soma zero.

Humberto Cardoso 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1069 de 25 de Maio de 2022.

Sem comentários: