segunda-feira, novembro 18, 2024

O mundo mudou

Os resultados das eleições americanas de 5 de Novembro apontam para mudanças nas regras do jogo a vários níveis nas relações internacionais. A eleição de Donald Trump para a presidência com maioria folgada juntamente com o controlo do Senado e da Câmara dos Representantes pelos republicanos vai-lhe conceder poder suficiente para pôr em prática as promessas mais disruptivas das políticas feitas durante a campanha eleitoral. Sem grande perspectiva de ver esse poder controlado pelo Supremo Tribunal de Justiça, considerando a sua composição com uma maioria confortável nomeada pelo próprio Trump e a sua aversão aos checks and balances do sistema político, aumenta a probabilidade de que o impacto dessas políticas seja profundo e abrangente.

Outrossim, a rapidez com que nos últimos dias Trump designou altos dirigentes para supervisionar essas políticas juntamente com o perfil radical deles dá ideia do seu forte comprometimento em fazer com que tais mudanças aconteçam.

Para além das consequências eventualmente complicadas na América, decorrentes dessa reorientação na política, tudo leva a crer que haverá um choque mais profundo e doloroso no resto do mundo. Assim, com o aumento drástico das tarifas para os produtos importados o mais provável é que haja um reflexo negativo nas relações comerciais globais e impacto directo na capacidade de exportação, no emprego e no crescimento económico de vários países espalhados pelo mundo. E ao pôr em prática as drásticas políticas contra a imigração aumentam as tensões nas fronteiras, a mão de obra pode escassear em sectores importantes da economia e os lucros das redes de tráfico humano tendem a tornar-se maiores.

Qualquer sinal de desengajamento com o mundo, seja no enfraquecimento da confiança na relação com os aliados na Europa, na Asia e noutros continentes, ou com outros parceiros em várias áreas de governança global, acarretará sérias consequências. As tensões geopolíticas poderão aumentar e a capacidade de resposta global a situações de crise, designadamente em saúde pública, instabilidade financeira ou desastres naturais, certamente diminuirá. Serão menores ainda as possibilidades de concertação na abordagem de problemas como fluxos migratórios intercontinentais, mudança climática e transição energética. Problemático, no mesmo sentido, poderá vir a revelar-se o papel futuro das instituições multilaterais, designadamente ONU, FMI, Banco Mundial e OMC, num mundo multipolar e com o bloco de países liberais efectivamente enfraquecido por divisões internas e desconfianças mútuas.

A realidade é que para o mundo inteiro a vitória de Donald Trump é um verdadeiro game changer. Não só lidera uma maioria significativa nos Estados Unidos ,que já mostrou querer mudar radicalmente o que até então se tinha como consensual em matéria da democracia liberal e constitucional, como também, com o seu exemplo, constitui um enorme incentivo em outras democracias para que movimentos similares de direita radical ou da extrema direita procurem formar maiorias absolutas para governar. Por outro lado com a preferência para o populismo e para a demagogia e para práticas políticas iliberais, que sacrificam os direitos fundamentes e descredibilizam o pluralismo e a separação de poderes, acaba, na verdade, por legitimar as autocracias e torná-las numa alternativa atractiva.

Curiosamente parece não afectar a forma como certas esquerdas, activistas e radicais identitários contrapõem às tácticas ultranacionalistas baseadas no medo e em preconceitos e ressentimentos. Mantêm as narrativas de sempre e a mesma perspectiva simplista que divide a sociedade em opressor e oprimido. Parece não lhes interessar que a reacção cada vez maioritária da sociedade como demonstrada pelo Trump esteja a encaminhar-se por vias que acabam por limitar os direitos fundamentais e por minar a democracia. Fica-se com a impressão que o niilismo que caracteriza os extremos se sobrepõe a tudo, mesmo às causas que clamam defender.

Para os países em desenvolvimento o mandato de Donald Trump, constitui um problema sério e um desafio enorme. Um problema porque entre outras coisas a imposição de tarifas e de outras políticas proteccionistas constituem um travão para o crescimento económico, aumentando as desigualdades intra e inter-países e diminuindo as possibilidades de investimento em novas tecnologias e de integração em cadeias de valor globais. Um desafio porque deve levar a uma urgente reflexão e acção estratégica e concertada para potenciar os recursos do país, combater as ineficiências e a corrupção e mobilizar a vontade da nação para enfrentar situações complicadas que surjam, sejam elas de causas naturais por razões de mudanças climáticas, ou derivadas de redução do mercado de exportação ou de fluxo turístico, ou induzidas pelo ambiente de tensão próprio de um mundo multipolar em emergência.

Para Cabo Verde com as fragilidades de um país arquipélago, população reduzida e recursos limitados uma mudança nas regras do jogo constitui um problema mais grave e um desafio maior. O novo ciclo eleitoral aproxima-se e, considerando a actual tendência nas democracias vê-se que os resultados não estão a favorecer o partido incumbente, o que pode levar eventualmente a alguma instabilidade governativa. Além disso, os efeitos já perceptíveis de alterações climáticas seja no regime das chuvas ou nas temperaturas elevadas devem servir de alerta para a ocorrência de fenómenos extremos (chuvas intensas, ondas de calor, secas, ventos fortes) frente aos quais o país não está suficientemente preparado. A emigração, por sua vez, poderá enfrentar mais obstáculos à medida que cresce o sentimento anti-imigrante e que novas medidas de controlo do fluxo migratório são implementadas nos países de destino.

O desafio que uma nova realidade mundial pode representar devia ser assumido por todos e, com esse ponto de partida, trabalhar com sentido de urgência e responsabilidade para fazer das diferenças de opinião uma fonte de inspiração e enfrentar as dificuldades nascentes com criatividade e acção vigorosa e no tempo certo. Fundamental seria mobilizar um esforço colectivo para combater as ineficiências, potenciar o capital humano e investir no capital social que se revela na confiança interpessoal, no civismo e na existência de instituições credíveis. Infelizmente a tendência é para a constituição de tribos políticas em que os extremos tendem a monopolizar a atenção, anulando o diálogo.

Sem debate e sem possibilidade de compromissos, porém , o país pode não ficar preparado para enfrentar um mundo em mudança acelerada. Há que parar por um instante e tentar perceber que se está a viver um desses momentos na história em que,de repente, o mundo muda. E lembrar que Mikhail Gorbatchev em 1989, num desses tais momentos históricos, já avisava: Os que se atrasam são punidos pela vida. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1198 de 13 de Novembro de 2024.

sexta-feira, novembro 08, 2024

Kamala ou Trump, joga-se o futuro nas eleições americanas

 Meses de apreensão geral no mundo sobre o futuro presidente dos Estados Unidos de América chegaram finalmente ao fim com a realização das eleições de 5 de Novembro. Uma sombra tinha descido sobre a América desde que ficou claro que Donald Trump seria o candidato republicano, não obstante todas as transgressões imagináveis entre as quais o incitamento à insurreição e fraude eleitoral, desvio de documentos secretos, crimes fiscais e assédio sexual. Nessas circunstâncias, aparentemente, só o presidente Biden que o derrotara antes estaria na posição de o vencer pela segunda vez, afastando o espectro de uma América errática, no suporte a instituições de governança global e de luta contra as mudanças climáticas e outros desafios planetários, sem engajamento firme com os aliados e a flirtar com autocracias.

A realidade dos efeitos da idade avançada sobre Biden ficou impossível de ignorar na sequência do debate falhado com Trump em Junho, abrindo caminho para o lançamento da candidatura de Kamala Harris sem o tempo e sem o escrutínio que, normalmente, pela via das primárias são escolhidos os candidatos ao cargo de presidente. Apesar dos percalços, a nova candidata rapidamente conseguiu o apoio das várias alas do partido democrático e soube galvanizar o país com uma campanha que rivalizou com a de Trump reflectida nas sondagens que sistematicamente ao longo dos meses a puseram em termos de intenção de voto a par ou ligeiramente acima do adversário. E o extraordinário é como, no confronto com um projecto político (Trump) que põe em causa a democracia constitucional de quase 250 anos, o eleitorado parece dividido a meio.

Trata-se de um verdadeiro aviso para todas as democracias. Aliás, a dinâmica de uma certa direita radical na generalidade das democracias no mundo inteiro deixa aperceber que o fenómeno na base da emergência de Trump está presente ou latente em diferentes democracias só que ainda não suficiente amadurecido, mas a crescer paulatinamente, eleição a eleição. Na América pode-se observar o desgaste da democracia provocado por anos de posicionamentos iliberais vindos de diferentes quadrantes políticos e de contestações à ordem constitucional vigente. Chega-se à situação actual do partido republicano, que em certos aspectos já não aparenta ser um partido político, mas uma organização política que cegamente serve um chefe, de ter uma fracção expressiva dos seus dirigentes de décadas a incentivar publicamente a votação no candidato do outro partido.

Na Europa e em outros países, pode-se não ter chegado a esse nível de captura dos partidos por um outsider, mas ninguém pode garantir que, com o tempo e a entrada em cena da figura certa, o mesmo fenómeno Trump não apareça com todas as consequências. O motor para a sua expansão tem sido fundamentalmente o medo, os preconceitos, o ressentimento e a xenofobia. São os sentimentos que se procura suscitar na população e no eleitorado para exprimir os problemas reais das pessoas e da sociedade e as suas expectativas em relação ao futuro. Com maior ou menor grau de sucesso essas tácticas tem surtido efeito e a tendência é de progressivo alargamento eleitoral, contribuindo para isso não só as redes sociais, mas também as posições de certa esquerda focada em políticas identitárias, por si próprias iliberais.

A consequência óbvia disso é a tribalização da sociedade, o enfraquecimento da coesão social necessária para se manter a ordem constitucional e a oportunidade aberta ao surgimento de demagogos. Na América provavelmente deu-se um passo mais além porque se acrescentou mais uma componente que é a impunidade dos actores políticos envolvidos. Donald Trump ao longo de anos, primeiro como candidato, depois como presidente e outra vez como candidato não reconhecendo a derrota, nunca mostrou limites nos insultos proferidos, nas mentiras espalhadas, nas ameaças feitas e nos actos praticados contra pessoas e instituições. Até agora ficou impune apesar dos “impeachments”, dos processos judiciais, das denúncias nos média e de todos terem conhecimento do que ele fez. Ele próprio os confirma. Com isso tem provado que, como disse em Janeiro de 2016, podia atirar em alguém em plena 5ª avenida de Nova Iorque e não perderia nenhum voto.

De facto, não tem perdido votos apesar da incoerência das suas propostas políticas, da falta de idoneidade para exercer o cargo de presidente como testemunhado por grande número dos antigos colaboradores e da sua insensibilidade, revelando narcisismo extremo, chamando soldados mortos em combate de tolos e perdedores. Pelo contrário, os apoiantes têm aumentado e o seguidismo do líder parece sobrepor-se à discussão de políticas para o país. Para eles o objectivo de conquista do poder prevalece sobre tudo, na lógica de que os fins justificam os meios.

A de facto tirania da minoria que os republicanos têm exercido e que lhes permitiu fazer a captura do Supremo Tribunal de Justiça generalizou uma forma de política que não se deixa limitar pelas regras do jogo democrático. Chegou-se ao ponto de pôr em causa a ordem constitucional mesmo na relação entre o poder civil e os militares, como testemunham altas patentes das forças armadas. Com tudo isso, terão ultrapassado de uma certa forma os limites, o que terá levado uma parte importante dos republicanos influentes a se distanciarem do partido. Uma outra consequência é que gerou uma grande movimentação das mulheres a favor dos direitos reprodutivos que tinham ficado em perigo com as decisões dos tribunais, provocando uma onda de suporte a Kamala Harris. A grande questão é se será suficiente para travar o avanço do que personalidades e académicos como Robert Paxton estão a chamar de fascismo em outras roupagens que se está a querer impor à América.

Noutros países existem também perigos similares de surgimento de demagogos que com impunidade consigam descredibilizar as instituições, mentir descaradamente e construir realidades alternativas de base partidária bloqueadoras de qualquer tipo de diálogo na arena pública. Para isso, muitas vezes recorrem a partidos já existentes e, passando uma imagem de outsider, de anti-elites e de anti-partido, movem-se para capturar as organizações partidárias e transformá-las nos seus instrumentos pessoais de conquista do poder. Apesar dos ataques cirúrgicos dirigidos aos média e ao poder judicial na generalidade dos casos, não há sinal que venham gozar do mesmo grau de impunidade que tanto tem intoxicado os apoiantes de Trump. De qualquer forma, há que estar alerta para o fenómeno que até aqui em Cabo Verde já se faz sentir e que certamente vai afectar as eleições autárquicas em particular na Cidade da Praia com possibilidades de derrame sobre as eleições seguintes para a legislatura de 2026.

A possível vitória de Donald Trump ou de Kamala Harris significaria desfechos opostos com impactos profundos.

Uma vitória de Trump colocaria o mundo numa montanha-russa de imprevisibilidade, com consequências difíceis de conter, incentivando movimentos populistas e fascistas noutras democracias e potencialmente intensificando o desengajamento global dos Estados Unidos. Isso poderia aumentar a pressão migratória em direcção à Europa e à América e o exacerbar de sentimentos anti-imigrantes, trazendo o risco de um retrocesso civilizacional onde os ideais de liberdade e democracia cedessem espaço à autocracia como solução aparente num mundo de crises inesperadas, instituições multilaterais frágeis e segurança coletiva precária.

Já uma vitória de Kamala Harris seria vista como um travão à deriva anti-sistémica e um reforço dos valores democráticos, permitindo enfrentar ameaças existenciais como alterações climáticas e abordando tensões geopolíticas e guerras em curso com esperança de se encontrar soluções. Também significaria que, não obstante a forte tendência para a polarização de opinião pública e para uma tribalização da acção política, há esperança que o equilíbrio poderá ser retomado, os compromissos negociados e que o sentido do bem comum se sobreponha ao individualismo extremo, à atomização social e à guetização em identidades cada vez mais diminutas e desconfiadas dos outros. Que renasça a esperança e a solidariedade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1197 de 06 de Novembro de 2024.

segunda-feira, novembro 04, 2024

Para uma boa integração não se deixar apanhar nas armadilhas

 

A trágica morte em Lisboa de um cabo-verdiano, Odair Moniz, num encontro com a polícia foi o rastilho para uma sucessão de acontecimentos violentos incluindo carros partidos, autocarros incendiados e pessoas feridas. Tais acções foram apresentadas como protesto pela actuação policial completamente desproporcional nos bairros da cidade usando meios letais. Seguiram-se outras manifestações que culminaram numa concentração no sábado passado a exigir justiça e políticas públicas dirigidas para retirar bairros da cintura urbana de Lisboa da situação de marginalização em que se encontram.

Como já se tornou habitual nessas circunstâncias, os poderes públicos apelaram à calma e prometeram investigação célere e justiça pronta ao mesmo tempo que se moveram para restaurar a ordem pública. Outros apelos para tranquilidade e para serenamente esperar pela realização da justiça vieram das autoridades cabo-verdianas e de personalidades e organizações comunitárias locais. Já os extremistas, tanto da direita como da esquerda entraram no jogo de costume de uns com frases bombásticas e outros com manifestações exuberantes de indignação e revezando mutuamente nesses papéis procurar levar os ânimos ao rubro.

Nas democracias, em geral, está-se a verificar a polarização progressiva da sociedade com o discurso político a se tornar cada vez mais extremo e com o espaço para a abordagem das questões públicas e do interesse comum, de uma forma mais equilibrada e compromissória, a ficar mais estreito. As comunidades imigrantes são o alvo fácil numa manobra política em que, de um lado, se joga com o receio de perder trabalho para os imigrantes, com o medo da criminalidade que supostamente aumenta devido à imigração e também com uma induzida suspeita de diluição cultural e alteração demográfica devido às crescentes entradas no país. Cola-se ainda a esses temores o ressentimento em relação aos supostos subsídios e benefícios que os imigrantes poderão receber do sistema de segurança social e as vantagens no acesso a estudos e oportunidades devido aos programas de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI).

De um outro lado, e em geral a partir da extrema esquerda, a manobra em relação aos imigrantes, enquanto minorias sujeitas a várias formas de discriminação, é de os mobilizar num quadro de uma luta mais abrangente contra o sistema político e socio-económico existente. Para isso, o foco vai para questões identitárias e raciais e recorre-se à vitimização sistemática. A experiência eleitoral dos últimos anos nas diferentes democracias tem mostrado que nessa disputa o medo e o ressentimento agitados pela extrema-direita vem ganhando votos e em vários países ou já são governo, ou já estão quase à porta. Curiosamente, o discurso e as tácticas da esquerda mantém-se na mesma linha. Fica a impressão que para certos activistas e sectores de opinião é mais importante agigantar a ameaça da direita radical para demonstrar o falhanço da ordem socio-económica existente do que, com diálogo e compromissos vários, criar a convergência de vontades conducente a uma maior e melhor integração das minorias e dos imigrantes.

E é realmente a integração que se procura quando se toma a decisão de emigrar. O que se pretende realmente é ser parte de uma ordem socio-económica que abre a oportunidade de avanço em termos de rendimento, mas também profissional e até académica. Algo que ele chegou à conclusão que não tem no seu próprio país, ou por má governação ou má gestão económica que não atrai suficiente investimento, não limita efectivamente a informalidade e os custos de contexto e não traz crescimento robusto. Noutros casos, há uma razão extra para emigrar por não estar instituído um Estado de direito democrático e não haver garantias de liberdade e segurança e correr-se o risco de ser vítima de violência do Estado.

É evidente que a última coisa a desejar seria reproduzir no país de destino as condições que se deixou para trás, ou seja, não ter segurança, nem uma economia funcional. Num certo sentido é o que parece acontecer com os excessos na afirmação identitária e o apego a hábitos e formas de estar que minam as possibilidades de tirar mais vantagem do ambiente socio-económico existente, e que, pelo contrário, tendem a provocar conflitos e rejeição da maioria. A ousadia e o querer vencer na vida que animaram o desejo de emigrar são minados pela tentação de vitimização. Tentação essa alimentada por agendas políticas e outras que podem ser legitimas no quadro dinâmico e plural onde surgiram, mas não constituem a motivação central de quem emigra e procura uma ordem institucional inclusiva onde pode participar, sentir-se seguro e beneficiar da riqueza produzida.

Cabo Verde, há mais de um século que tem comunidades emigradas em diferentes continentes. São em geral comunidades bem integradas particularmente nos Estados Unidos e na Europa e para isso deverá ter contribuído um certo sentido de cabo-verdianidade que lhes permitiu sem conflito lidar com outras culturas preservando a sua. A experiência acumulada nessas comunidades deve servir de referência para evitar os excessos actuais da política identitária e das guerras culturais e também para impedir a instrumentalização dos problemas ainda existentes por agendas espúrias que pouco têm a ver com o objectivo de procurar uma vida melhor e ser bem-sucedido no país de emigração. O contínuo reforço da identidade cabo-verdiana, em particular nas novas gerações, poderá ajudar a contornar armadilhas tendo na base uma deficiente compreensão da experiência histórico-cultural de Cabo Verde, que não se consegue reduzir aos modelos aplicáveis noutros sítios, chegando em alguns casos ao ponto de hostilidade.

É um facto que as migrações estão a aumentar em todo o mundo, especialmente o fluxo migratório dirigido para a Europa e os Estados Unidos. Claramente que essa pressão sobre esses países se transformou numa questão política sensível para a qual se tem de encontrar soluções adequadas para poder manter o fluxo. Em Cabo Verde, a emigração ganhou um outro ritmo nos últimos tempos e é fundamental para as pessoas e para o país que tenha as melhores probabilidades de sucesso com boa integração. Quando acontece algo de trágico como é o caso de Odair Moniz a consternação é geral e muito sentida. Relembra a todos os riscos envolvidos na emigração e a importância de solidariamente e em diálogo se fazer representar e participar na procura de soluções para os problemas da comunidade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1196 de 30 de Outubro de 2024.

segunda-feira, outubro 28, 2024

Humildade e ousadia, as qualidades de um estadista

 Com a constatação pelo Nobel da Economia Daron Acemoglu de que o “sucesso das sociedades depende da qualidade das instituições” ganha especial importância o respeito pelas normas e o cumprimento dos procedimentos democráticos como forma de as legitimar e de as manter credíveis. Há, de facto, um ethos e uma ética a ser exigidos para que efectivamente se considere estar a trabalhar para o bem comum e para a consecução do interesse público. Em particular dos actores políticos, espera-se que na sua actuação, tanto no processo de conquista do poder, como no cumprimento do mandato enquanto governo ou oposição procurem salvaguardar a ordem constitucional e a confiança dos cidadãos no sistema democrático como pressupostos básicos para um futuro de sucesso.

Infelizmente, vão no sentido contrário as actuais tendências de políticos a querer agir como celebridades, em demonstrações muitas vezes desabridas de narcisismo, e a fazer da política mais um espectáculo para suscitar emoções do que como processo para visionar, decidir e agir. Justifica-se essa opção como exigência dos tempos actuais. Diz-se que a atenção das pessoas é mínima, a atracção pelo que choca e entretém é maior e que se tende a confundir o quebrar das regras, dos costumes e da própria legalidade com demonstrações de autenticidade e de uma certa masculinidade. A verdade é que há quem ganhe eleições indo por esses caminhos e nota-se que cada vez mais partidos e personalidades deixam-se resvalar para esse tipo de mobilização política.

O problema é que tais práticas ao minar a confiança nas instituições limitam a própria eficácia das políticas a serem implementadas no âmbito do mandato recebido nas urnas. O mal-estar socio-económico que acaba por se instalar contribui para a polarização da sociedade que dificulta o diálogo e provoca a ascensão do discurso populista e demagógico. Cria-se com isso um círculo vicioso que pode levar à estagnação ou a crescimento económico insuficiente para erradicar a pobreza e atender as expectativas das pessoas. A directora do FMI, Kristalina Georgieva, num discurso nos encontros de 22 de Outubro das instituições de Bretton Woods chamou a atenção para a tendência expansionista dos orçamentos estatais de vários países motivada por esse tipo de discurso que aumenta a fatia do serviço da dívida no orçamento, retirando espaço fiscal para responder a crises futuras e para investir com vista a mais crescimento económico.

A grande dificuldade de hoje é encontrar partidos e personalidades com coragem e audácia para se recusarem a ir por esse caminho de reduzir a política a espectáculo e a culto pessoal do líder. E é assim porque nem sempre resulta para que quem opta por pôr o foco nas questões do país com visão, estratégia e reformas dirigidas para maior crescimento e emprego. Um exemplo é o que acontece nos Estados Unidos, onde depois dos anos de espectáculo e da personalização da política por Donald Trump, o presidente Biden optou pelo regresso a uma certa normalidade e por políticas inovadoras e ainda assim a sociedade continua altamente polarizada. O país devido às reformas poderá ter ultrapassado com sucesso a situação de policrise e ser considerado “a inveja do mundo”, segundo o último número da revista Economist (19 Out), mas o mal-estar continua e poderá pesar a favor de Trump nas eleições daqui a quinze dias. Não é por acaso que nem todos ousam fazer diferente.

Essa falta de ousadia, porém, não existiu sempre. Em Cabo Verde, nos anos noventa, os ventos da mudança deram ao país uma oportunidade para sair da estagnação económica e crescer com liberdade e segurança. A liderança do então primeiro-ministro dr. Carlos Veiga foi crucial para atingir os dois grandes objectivos de implantar a democracia e construir uma economia de mercado. Tinha recebido um mandato a 13 de Janeiro de 1991 com maioria qualificada de dois terços do eleitorado que foi renovado cinco anos depois nas legislativas com uma percentagem superior de votos. As dificuldades em prosseguir com as reformas políticas e económicas face às resistências na sociedade e tensões no interior do seu partido não o dissuadiram de as levar a bom termo. Perdeu a maioria qualificada do primeiro mandato e recuperou-a nas eleições seguintes.

Ao longo dos dez anos de governação o Dr. Carlos Veiga conseguiu através do diálogo permanente manter, num partido que ainda era um movimento político (apareceu em 1990), uma maioria suficiente para adoptar o país de uma Constituição democrática e liberal. De seguida, pôde seguir com a liberalização da economia e reforma do sistema financeiro e fiscal e ainda avançar com as privatizações num esforço de atracção de investimento directo estrangeiro e construção de uma economia de mercado. Sob a sua liderança o país encontrou solução inovadora para a pesada dívida interna herdada das empresas estatais num Trust Fund que associado ao Acordo Cambial com Portugal, e depois com a União Europeia, serviram de base para as décadas seguintes de inflação baixa e estabilidade monetária e cambial.

Pela descrição feita no Memorando de 14 de Julho de 2023 do Banco Mundial que “o modelo económico de Cabo Verde tem dado sinais de cansaço desde a crise financeira mundial de 2008” e que “a taxa de crescimento anual caiu de uma média de 10,1% na década de 1990 para 7,2% na década de 2000 e para 1,2% na década de 2010”, percebe-se como é que o país ainda parece estar a beneficiar das reformas do anos noventa, mas com efeitos decrescentes. O potencial do crescimento que segundo o BM era de 6% na década de noventa passou para 3,5% depois de 2010 devido à perda de produtividade que por sua vez é atribuída à rigidez estrutural resultante de falta de reformas.

Não obstante os evidentes ganhos das reformas, ou talvez devido às verdadeiras disrupções que puseram o país num outro patamar, Carlos Veiga acabou por ter que enfrentar mais uma cisão no seio do partido maioritário, mas não sem ainda finalizar uma revisão da Constituição em 1999 que ajudou a consolidar o regime democrático. Um ano depois, o seu partido perdia as eleições e uma das razões, segundo o doutor Onésimo Silveira no livro do José Vicente Lopes (2016) “é que o MpD trouxe não só uma ideia de modernidade, como da modernidade das instituições que o povo na sua maioria conservadora não teria aceitado numa situação normal”. Depois de anos de tensões por causa das reformas compreende-se a derrota eleitoral porque segundo ele “ninguém gosta de viver de sobressaltos”. No entrementes os efeitos das reformas dos anos noventa ainda vão se fazendo sentir.

Nas democracias é normal não ser recompensado nas urnas por fazer reformas profundas ou por outras ousadias. Caso clássico é o de Churchill que perdeu as eleições para o partido trabalhista em 1944 apesar de ter liderado o Reino Unido durante a II Guerra Mundial. A dimensão dos verdadeiros estadistas vê-se no facto de não terem deixado de fazer o que tem que ser feito por receio de derrota nas eleições. O papel do partido e dos seus dirigentes não deve se resumir à conquista e à manutenção do poder a todo o custo. Deve fundamentalmente ser o de servir as pessoas e o país com a humildade e o desprendimento de quem detém um mandato popular e de estar ciente da realidade complexa dos problemas para cuja resolução se exige a participação de todos e se assume que ninguém é indispensável.

Por ocasião dos 75 anos do Dr. Carlos Veiga, celebrados no dia 21 de Outubro, o Expresso das Ilhas presta-lhe uma merecida homenagem pela sua liderança na construção da Liberdade e democracia em Cabo Verde e pelo exemplo de estadista sereno e dialogante, e forjador de vontades que tornou possível construir o quadro jurídico e institucional que conduziu o país à modernidade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1195 de 23 de Outubro de 2024.

segunda-feira, outubro 21, 2024

Sucesso das sociedades depende da qualidade das instituições

 

O prémio Nobel da Economia foi ganho este ano por um trio de economistas Daron Acemoglu, Simon Johnson e James Robinson que se distinguiram pela ideia de que “o sucesso de uma sociedade não é determinado pelos seus recursos naturais, mas sim principalmente pela qualidade das suas instituições”. O livro “Porque falham as Nações” de Acemoglu e Robinson publicado em 2012 difundiu pelo mundo inteiro a importância de um país ter instituições inclusivas em vez de instituições extractivas para criar riqueza, travar a luta contra a desigualdade e garantir um ambiente propício à inovação, essencial para uma prosperidade continuada. Bem claro também ficou no livro a centralidade da democracia na criação e sustentabilidade dessas instituições.

O prémio a esses autores veio em boa hora. Nota-se actualmente nas democracias uma tendência para se normalizar os ataques às instituições num quadro de crescente polarização política. O extremismo de posições tem levado a uma espécie de tribalização da sociedade que interfere com o reconhecimento e aceitação das instituições, diminuindo a sua eficácia e deixando-as expostas a ataques. Isto está a acontecer nas democracias mais maduras e nas mais recentes. Se nos países mais prósperos uma economia mais sólida e uma sociedade civil mais consolidada emprestam resiliência às instituições face a esses ataques, já nos países mais frágeis é mais complicado. A persistência em certos sectores de instituições extractivas do tipo rentista conjuntamente com esquemas de reprodução da dependência das pessoas face ao Estado alimenta a corrupção e promove a má governação abrindo o caminho a populismos demagógicos que vão enfraquecer ainda mais as instituições.

Em Cabo Verde, os efeitos do desgaste das instituições já se fazem sentir. As crises sucessivas culminando na pandemia da Covid-19 quebraram o ímpeto de algum crescimento que se vinha verificando nos últimos anos da década passada. A recuperação pós-pandémica mostrou as vulnerabilidades do país, designadamente a sua dependência do turismo e também os seus limites quando as projecções de crescimento económico para os próximos anos continuam aquém dos 7%. Tudo isso acaba por ter impacto nas expectativas quanto ao futuro, não obstante a promessa do VPM e Ministro de Finanças em duplicar o potencial de crescimento da economia dos actuais 5% para dois dígitos, e por fomentar ainda mais a polarização social e política, reflectindo-se nas instituições.

Não é de estranhar que nestas circunstâncias o papel do Estado se agigante para colmatar insuficiências de investimento e emprego em vários sectores e para estender a protecção social aos mais vulneráveis. O Orçamento de Estado (OE) para 2025 já ascende a 98 mil milhões de escudos, quase one billion dollars, e prevê, nas palavras do VPM, o maior Estado social de sempre. A crescente proeminência do Estado torna ainda mais renhida e feroz a luta pelo seu controlo. A proximidade de um novo ciclo de eleições imprime a essa luta uma outra urgência que acaba por resultar na tentação de atacar a integridade de certas instituições para atingir o governo e o partido que o sustenta. É o que se passa actualmente e de forma mais pronunciada com os ataques ao Tribunal de Contas.

Já não bastam os ataques populistas dirigidos às instituições, agora nota-se que são os próprios actores políticos e titulares de cargos públicos que procuram diminuir e até deslegitimar os órgãos públicos. Não se faz suficiente uso dos mecanismos institucionais de fiscalização como são nomeadamente as comissões especializadas e as audições no parlamento e prefere-se ficar pelo espectáculo das denúncias públicas, ora procurando judicializar a política, ora politizando a justiça. Se envolver as câmaras municipais nas lutas político-partidárias pelo controlo da máquina pública era uma prática estabelecida, a novidade é o conflito aberto entre órgãos de soberania com acusações de deslealdade institucional, colagem do maior partido da oposição ao presidente da república e tentativas de deslegitimação dos actos dos tribunais.

Num país com as fragilidades de Cabo Verde não é de deixar arrastar por muito tempo o desgaste das instituições. Como diz Acemoglu a “boa governação é crucial para construir confiança entre os cidadãos e o Estado e para criar um ambiente favorável ao desenvolvimento económico”. Acrescenta ainda que incentivos para conseguir uma educação, para poupar, para pagar impostos, para investir e inovar dependem muito da confiança que se tem nas instituições. Daí o combate à corrupção, a preocupação com a gestão transparente e escrupulosa dos recursos públicos, o foco na qualidade das despesas públicas, o dimensionamento adequado das estruturas estatais e a sobriedade e o rigor, evitando exibicionismo e extravagância, que devem caracterizar a postura dos governantes.

Também essencial para essa confiança dos cidadãos e contribuintes é que os mecanismos de (checks and balances) pesos e contrapesos institucionais funcionem em pleno. Quando se tem orçamento do estado a crescer 14% de um ano para outro e que está a ser financiado em mais de 60% pelos impostos é de maior importância que se vejam todos os sinais que a fiscalização política do parlamento está a ser efectiva com menos preocupação com os holofotes no plenário e mais trabalho nas comissões especializadas. Da mesma forma, faz todo o sentido que uma instituição como o Conselho das Finanças Públicas (CFP), através de uma apreciação autónoma e independente acerca da coerência, execução e sustentabilidade da política orçamental, exerça a sua “competência de avaliar os cenários macroeconómicos adotados pelo Governo e a consistência das previsões orçamentais com estes cenários”.

Tudo se complica quando, o CFP, no seu parecer sobre o OE 2025, deixa saber que, apesar dos esforços, não foram realizadas reuniões técnicas entre o CFP e o MFFE (ministério das finanças e fomento empresarial) visando esclarecer as dúvidas relativamente às metodologias e pressupostos utilizados na elaboração das previsões apresentadas. De facto, particularmente em momentos difíceis não se pode deixar dúvidas quanto ao grau de colaboração institucional existente e ao rigor no cumprimento dos procedimentos. É preciso dar confiança aos cidadãos que as instituições do país em nenhum nível são extractivas, ou seja, nas palavras de Acemoglu, projetadas para extrair rendas e riquezas de um subconjunto da sociedade para beneficiar outro subconjunto. Impõe-se que que se ponha um travão ao desgaste das instituições e se faça um esforço para as reforçar para serem os baluartes da democracia e do desenvolvimento do país. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1194 de 16 de Outubro de 2024.

segunda-feira, outubro 14, 2024

Mostrar serenidade e razoabilidade na condução dos assuntos públicos

 

O ambiente político em Cabo Verde não é o melhor. As razões serão provavelmente a proximidade das eleições autárquicas, as crescentes tensões entre órgãos de soberania e as reivindicações das classes profissionais ligadas ao Estado. Hoje são os professores, amanhã poderão ser os profissionais de saúde e depois de amanhã não se sabe de que sectores da administração pública virão os protestos. No processo político eleitoral e também de agitação sindical assim criado nota-se cada vez mais o extremar de posições, a falta de disponibilidade para o compromisso e o enfraquecimento do engajamento esperado de políticos, de titulares de cargos públicos e das classes profissionais com o interesse colectivo. A ênfase é colocada em protagonismos pessoais, no discurso emocional e em ganhos rápidos na política e na carreira em detrimento da lealdade à ordem constitucional, da ética e da procura do bem público.

O resultado é que cada vez mais reina menos razoabilidade e serenidade no tratamento das coisas públicas. Acontecimentos recentes apontam para o pior. Ilustrativos disso são os casos de inspecção e de auditoria que identificam irregularidades e ilegalidades nos serviços da presidência da república. Publicados os relatórios, de imediato foi lançada a suspeição de práticas similares em toda administração do Estado. Seguiram-se ataques político-partidários dirigidos em especial ao Tribunal de Contas, questionando a sua competência e legitimidade.

Até da presidência da república, a propósito de um pedido de nulidade do relatório da auditoria do TdC, se argumentou que o mandato de cinco anos dos juízes não pode ser estendido até à tomada de posse do novo titular. Provavelmente o mesmo deveria aplicar-se ao Tribunal Constitucional que tem mandato de nove anos a terminar a 15 do corrente mês. Interessante que um recurso similar foi dirigido ao tribunal constitucional em Portugal a pedir a nulidade de uma decisão por um dos juízes ter tido seu mandato terminado um ano antes. O recurso foi recusado em Julho de 2023 pelo colectivo dos juízes com uma única voz discordante.

Também revelador é o súbito e estridente questionamento do sistema de saúde na sequência dos casos de dengue e de outros chocantes que vieram a público na semana passada de gestantes que perderam a vida devido a eventuais falhas ou negligência dos serviços.

Percebe-se que, com a diminuição de confiança das pessoas nas instituições, fica fácil fazer um discurso político que acentue os receios das pessoas, aprofunde a desconfiança e espevite os ressentimentos. Em todas as democracias, neste momento, há quem faça esse papel. Não se espera é que seja feito pelos principais actores políticos e pelos titulares de cargos públicos, considerando a responsabilidade que lhes é exigida de garantir a estabilidade e a credibilidade do sistema político. Em Cabo Verde, também o abaixamento do nível do discurso político acaba por extremar posições, por tornar extremamente difícil negociar e firmar acordos, e inevitavelmente, por impossibilitar qualquer discussão do futuro que vá além das disputas para obter ganhos rápidos.

Paradigmático é o que se passa com os professores e as suas lutas sindicais com o governo. Vêm do ano lectivo anterior, com os inevitáveis prejuízos sobre o processo educativo e sobre os alunos, e persistem no novo ano sem perspectiva de chegar a acordo. Rondas sucessivas de negociações não resultaram em acordos e muito dificilmente poderiam ressoltar com a conversa entre as partes feita na comunicação social pontuada por ameaças de paralisação de aulas e sempre tentada a cavalgar agendas políticas, particularmente, quando eleições se aproximam. Ao parecer aceitar o pedido dos sindicatos e vetar o Plano de Carreiras, Funções e Remunerações, o PR introduziu-se nas negociações entre o governo e os sindicatos, alterando as regras do jogo e eventualmente tornando um desfecho mais árduo. O diálogo ficou mais difícil e na prática sequestrado por agendas político-partidárias como se vai ter oportunidade de presenciar no parlamento a partir de hoje. Entretanto, os problemas dos professores e o objectivo central de se ter uma educação de qualidade ficarão efectivamente adiados.

Paradoxalmente, nota-se que o facto de não terem conseguido os resultados desejados ou prometidos com o extremar de posições e protagonismos deslocados e intempestivos não parece dissuadir os sindicatos de continuar com essa postura. Agrava-se a situação, mas insiste-se em fazer o mesmo. Algo similar contribui para fazer crescer a extrema-direita nas democracias contemporâneas sem que os supostos opositores revejam as suas posições, aparentemente esquecidos que os extremos se reforçam mutuamente. Evidentemente que o grande sacrificado é o centro que se define pela liberdade, pelo compromisso e pelo pluralismo que viabiliza a busca pela verdade e torna possível um futuro comum construído na base de soluções democraticamente encontradas.

Se a dinâmica dos extremos partidários e dos populismos demagógicos constituem um enorme perigo para as democracias, não é menor o perigo que pode resultar de um conflito aberto entre os órgãos de soberania. Tensões entre órgãos de soberania são normais e salutares na medida em que contribuem para o equilíbrio do sistema político. Dificuldades surgem quando não se respeita o princípio da separação dos poderes e tornam-se mais graves se se instalar o sentimento de impunidade. O caso do Donald Trump nos Estados Unidos é paradigmático a esse respeito. Escapou de dois processos de destituição (impeachment), sendo o segundo na sequência de um acto considerado de insurreição para impedir a transferência de poder para o presidente eleito. Com sentido de impunidade, atropelou normas estabelecidas, impôs-se ao Congresso e mudou a composição do Supremo Tribunal a favor dos conservadores. O resultado é que a democracia e o Estado de direito na América estão hoje em perigo, particularmente, se ele for (re)eleito em Novembro próximo.

Em Cabo Verde não há fiscalização política do presidente nem processo de destituição. Em caso de falhas graves, o sistema parece contar com o alto grau de adesão do PR aos princípios e valores da Constituição e à ética republicana para encontrar a melhor saída. O pior que pode acontecer é de, na ausência de amarras políticas legais e éticas, se instalar um sentimento de impunidade que ameace tornar o sistema caótico. Como se vê da experiência de outros países, não é um espectáculo bonito.

Um papel fundamental é esperado do governo e dos governantes em manter a confiança necessária das pessoas e da sociedade nas instituições para que o jogo de equilíbrio dos poderes garanta a estabilidade do todo. Hoje percebe-se que as incertezas em relação ao futuro, por um lado, incentivam à emigração e, por outro, tendem a lançar as pessoas numa corrida para se acomodarem junto ao Estado. A imagem de rigor, de sobriedade na gestão dos recursos públicos é essencial para se manter o contrato social que faz as pessoas se sentirem incluídas e parte da colectividade nacional. A erosão que se vem verificando na confiança é um sério aviso quanto à actual qualidade e eficácia das políticas públicas. Há que mudar a atitude e mostrar serenidade e razoabilidade na condução dos assuntos públicos para que todos os sobressaltos do caminho sejam ultrapassados e os desafios enfrentados com sucesso. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1193 de 9 de Outubro de 2024.

segunda-feira, outubro 07, 2024

Por uma visão crítica da totalidade da trajectória histórica de Cabo Verde

 

Já se notam movimentações para dar o tom às comemorações no próximo ano dos 50 anos da independência nacional. Como é prática de outros aniversários do 5 de Julho de 1975 procura-se desde logo salientar o carácter heróico do feito para se proceder à tradicional exaltação dos auto- proclamados protagonistas. E com um sim antecipado à pergunta “se valeu a pena a independência”, faz-se por lhes assegurar gratidão eterna do povo e por colocar as opções tomadas acima de quaisquer críticas. Não é, porém, com sentimentalismos e posturas que limitam o livre pensamento e a possibilidade de equacionar o presente e projectar o futuro que melhor se vai servir o país. Pior ainda, quando são patentes os múltiplos obstáculos internos limitativos do desenvolvimento e se depara com a realidade actual do mundo a reconfigurar-se de forma imprevisível.

De facto, o que país mais precisa é de uma visão crítica da totalidade da sua trajectória histórica para poder vislumbrar saídas inovadoras e funcionais e também de uma unidade de vontade para agir, não atrapalhada por resquícios ideológicos datados e por mitos persistentes. Uma nova abordagem foi apresentada pelo professor doutor João Estêvão numa conferência na ilha do Sal onde se pode avaliar a performance sócio-económica de Cabo Verde no quadro de um estudo comparado dos pequenos estados insulares (SIDS). Claramente, Cabo Verde não ficou bem na fotografia com rendimento per capita e nível de desenvolvimento humano abaixo da média dos restantes membros e no grupo mais frágil conjuntamente com S. Tomé e Príncipe e Comores.

Indo mais a fundo para saber algumas das razões por que Cabo Verde teve um desenvolvimento que tanto desviou da média de outros países que ascenderam à independência praticamente na mesma altura, Maurícias em 1968, Seicheles em 1976, o facto de só se ter aberto a economia mais de 15 anos depois pesa bastante. A industrialização para exportação nas zonas económicas especiais das Maurícias já tinha avançado muito e a aposta no turismo nas Seicheles já dava frutos. Nessas ilhas não se fomentou hostilidade ao investimento directo estrangeiro nem se criaram constrangimentos à iniciativa privada. Também a aposta que fizeram na educação foi sólida, como, aliás, aconteceu nos países insulares mais desenvolvidos, em alguns casos a rivalizar com os melhores nos rankings internacionais. Não ficaram pela massificação de ensino, sem demonstrar grande preocupação com a qualidade.

A 14 de Julho do ano passado, o Banco Mundial publicou um memorando económico que veio lembrar que “o modelo económico de Cabo Verde tem dado sinais de cansaço desde a crise financeira mundial de 2008”; que a taxa de crescimento anual caiu de uma média de 10,1% na década de 1990 para 7,2% na década 2000 e para 1,2% na década de 2010, excluindo o ano 2020; que o potencial de crescimento da economia caiu de 6% na década de 1990 para 3,5% por cento após 2010. No memorando ainda ficou explícito que essa queda no potencial se deve a que a contribuição da produtividade (PFT) no crescimento na década 2010-19 foi de 1% quando na década anterior tinha sido de 51% devido às reformas estruturais dos anos noventa. Infelizmente, parece que essas chamadas de atenção do Banco Mundial não surtiram efeito. O discurso político não se alterou significativamente e as querelas partidárias continuaram fixadas nas mesmas temáticas.

Há quem aponte o bipartidarismo em Cabo Verde como a principal razão por que o país não consegue em matérias estruturais chegar aos consensos necessários para ter políticas coerentes e traçar objectivos e metas alcançáveis num horizonte temporal que atravessa vários governos. É verdade que vários estudos sugerem qua o sucesso das Maurícias e de Botswana, que os coloca no topo do ranking de desenvolvimento entre os países africanos, deve-se ao nível de consenso conseguido num quadro democrático entre as principais forças políticas ao longo de décadas. E o facto de em Cabo Verde isso não se verificar certamente que contribui para uma menor eficiência na utilização dos recursos, em particular dos recursos humanos, e para as políticas públicas não terem a desejada eficácia devido a resistências várias e à falta de continuidade na implementação das mesmas.

Claro que em certos sectores de opinião indicar o bipartidarismo como um obstáculo ao desenvolvimento é mais um argumento contra o que consideram ser uma democracia formal, o que anteriormente classificavam de democracia burguesa. Aliás, se se recuar no tempo vai-se notar que as críticas dirigidas aos partidos surgiram logo nos primórdios do pluripartidarismo, nos inícios dos anos noventa, vindas em primeiro lugar dos que nunca criticaram o Partido Único. Ainda hoje estão à procura de outros modelos de democracia, ou nas sociedades tradicionais, ou ainda no processo de escolha de representantes que lembram a Comuna de Paris e os sovietes na Rússia. Não se pode, porém, negar é que, no plano económico, em Cabo Verde, o crescimento só passou de lento a rápido com o advento da democracia e as reformas na economia.

Paradoxalmente o bipartidarismo poderá estar a prejudicar em maior grau o desenvolvimento não tanto no que incita à discordância, em matéria de políticas, mas no que, em termos da atitude da classe política, se revela de convergência no que toca a crenças e mitos arreigados sobre o país, cultura político-eleitoral e o papel do Estado. Acredita-se na ideia secular que se chovesse em Cabo Verde reinaria a felicidade e que o arquipélago tem importância estratégica permanente apesar dos resultados de políticas públicas e dos avultados recursos, dirigidos para mobilizar água e infraestruturar na perspectiva de potenciar a localização, terem ficado muito aquém do prometido. Fez-se da mobilização política em democracia uma corrida para enredar os eleitores em malhas de dependência, não obstante a apologia da autonomia das pessoas e os incentivos à iniciativa individual. A realidade do posicionamento do Estado no topo da proverbial “cadeia alimentar” não é contrariada e muito menos inflectida por todo o esforço de descentralização e de afirmação do poder local. A crença na importância da educação não é traduzida num engajamento efectivo a favor da qualidade do ensino e valorização do conhecimento.

Os partidos podem ter discurso político e até práticas de governação diferentes, mas o lastro que acrescentam em cada ciclo de governação, ao não conseguirem romper com o status quo, acaba por limitar a dinâmica de crescimento possível. Fica mais difícil fazer as reformas que são necessárias para aumentar a produtividade e competitividade enquanto o efeito das reformas estruturais iniciais vão-se dissipando com o passar de anos. Dar a volta a esta situação é fundamental. Reflectir de forma crítica e aberta sobre a trajectória de séculos deste país para a fazer completa e inteligível para todos, sem mitos nem tabus, constituiria um acto maior de celebração dos 50 anos e uma demonstração de patriotismo que cobriria todos de orgulho. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1192 de 2 de Outubro de 2024.

segunda-feira, setembro 30, 2024

Celebrar a Constituição para aumentar confiança e resiliência

 Celebra-se hoje, 25 de Setembro, o trigésimo segundo aniversário da Constituição da República. Trinta e dois anos atrás, pela primeira vez Cabo Verde, enquanto país independente, cumpria o estipulado no artigo 16º da declaração universal dos direitos humanos e do cidadão aprovada em 1789 na sequência da revolução francesa: A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição. A partir de 25 de Setembro de 1992 passou a ter uma Constituição com os direitos fundamentais garantidos, o poder legitimado pelo voto popular, a separação dos poderes, o Estado de Direito democrático e a independência dos tribunais.

Finalmente Cabo Verde conseguia basear a sua ordem constitucional nos princípios e valores civilizacionais hoje considerados universais que tinham sido enunciados mais de duzentos anos antes nas revoluções americana e francesa. A ascensão à civilização e à modernidade que isso representou foi acompanhada nos anos seguintes de crescimento económico e social num ritmo nunca antes verificado à medida que se libertavam as energias sociais na forma de iniciativa individual, criatividade e disposição para correr risco. Contribuía ainda para motivar as pessoas a confiança que naturalmente emerge da vivência num Estado de Direito democrático, com governos estáveis e garantia de alternância no governo e transferências pacíficas de poder.

As dificuldades nestas duas décadas deste século em propiciar as taxas de crescimento, que o país precisa para se desenvolver e eliminar a pobreza extrema, interpelam a todos o quão efectivo tem sido o aproveitamento dessas energias individuais e sociais libertadas. Nesse sentido, interroga-se o quanto a manutenção de uma economia a funcionar de forma ordeira tem servido de incentivo à iniciativa privada e o quanto a existência de uma cultura meritocrática tem contribuído para motivar as pessoas para serem agentes de mudança e inovação. É também de perguntar o quanto é que, pela promoção de uma cultura de respeito à ordem constitucional, se tem reforçado as bases da confiança nas instituições, confiança cívica e, por extensão, confiança interpessoal.

O facto de um número crescente de pessoas estarem a ponderar a possibilidade de emigração não só à busca de trabalho e de melhores salários como de possibilidade de fazer uma carreira profissional e académica já é preocupante. Pode sugerir que não se está a explorar bem o potencial do país, em particular do seu capital humano. Ter outras pessoas a querer deixar o país à procura de um ambiente mais seguro, de melhores cuidados de saúde e mais favorável para a educação dos filhos é bastante complicado. Levanta outras questões de confiança na viabilidade do país ou na capacidade de produzir uma liderança à altura dos desafios actuais e focada na prossecução do bem público.

Crises sucessivas (secas, pandemia da covid-19, guerra na Ucrânia e inflação geral dos preços) e num curto espaço de tempo podem criar algum desânimo, mas o que se revela perturbador são as fragilidades da liderança política enquanto os seus titulares disputam influência e esforçam-se por ter protagonismo pessoal e ganhos eleitorais. Notam-se as perdas em sede de responsabilização política, de prestação de contas, de transparência e de ética republicana. Daí pode ser um passo para se contestar o sistema político e exacerbar as tensões naturais que asseguram a sua dinâmica e estabilidade recorrendo aos posicionamentos anti-sistema que caracterizam muitos dos populismos em voga. É mais fácil isso acontecer quando disputas ideológicas remanescentes do velho regime de partido único continuam a ter vida própria, insuflada por instituições do Estado e actores políticos prominentes em colisão directa com os princípios e valores constitucionais.

Os trinta e dois anos da vigência da Constituição da República têm sido de estabilidade política, de governos a cumprir mandatos completos e já com duas alternâncias na governação sem crise. Na base deste sucesso está o sistema de governo de base parlamentar em que o presidente da república não governa e quem define e implementa as políticas interna e externa do país é o governo suportado pela maioria no parlamento perante o qual é exclusivamente responsável. Desde dos primórdios da II República certas contestações à ordem constitucional tomaram a forma de críticas dirigidas ao sistema de governo no sentido de acentuar os poderes presidenciais em detrimento do seu pendor parlamentar. Mesmo as décadas de estabilidade e de tensões sem grande impacto entre o PR e o Governo, somadas às alterações feitas nas revisões constitucionais de 1999 e 2010 no sentido dessas críticas, não atenuaram o teor do discurso produzido nesse sentido. Assiste-se agora ao seu recrudescimento nas actuais tensões entre esses dois órgãos de soberania.

Curiosamente, o momento de menor tensão terá sido quando José Maria Neves era primeiro-ministro e em entrevista publicada em Outubro de 2014 na revista Vozes das Ilhas revelava ser “contra o sistema presidencialista (…) para evitar a excessiva personalização do poder”. Justificava com o facto que podia abrir “espaços a clientelismos, a compadrios, a jogos de bastidores, a fragilização dos partidos políticos”. Na entrevista ainda mostrou-se a favor de um PR eleito pelo parlamento e defendeu a adopção de um regime de chanceler, supõe-se à imagem da Alemanha onde o chanceler é eleito pelo parlamento e seu peso na orientação das políticas do governo é maior do que o dos primeiros-ministros noutros países. De lá para cá, deve ter mudado de ideias e, pelo conteúdo do ante-projecto da presidência da república dado a conhecer ao público no Facebook pelo chefe da casa civil, percebe-se que se tornou desejável um protagonismo que vai mais além do verificado com os três presidentes que o antecederam.

É evidente que num sistema marcado pela separação de poderes os equilíbrios perdem-se quando à acção não é contraposta uma reacção igualmente forte e em sentido contrário. Nas legislaturas anteriores a 2016, a firmeza da relação entre o governo e a sua maioria parlamentar não deixavam margens para dúvidas. Nos últimos anos o aparente descaso do primeiro-ministro em agir como presidente do partido perante sinais de fractura na maioria parlamentar revelam fragilidades que tendem a acentuar tensões entre os órgãos de soberania no exercício das respectivas competências. É o que aconteceu entre o PR e o Governo, mas também entre o governo e a assembleia nacional que neste caso precipitou o pedido de demissão da direcção do grupo parlamentar do MpD face à atitude de governantes e instituições do Estado de se associarem oficialmente às comemorações sem aprovação legislativa prévia.

Uma outra pressão sobre o sistema democrático, a exemplo do que se tem verificado noutras democracias, tem vindo de manifestações de carácter populista que tem como alvo o poder judicial. Apoiando-se nas deficiências da justiça, em particular na morosidade e na falta de eficácia em certos casos, ataques dirigidos ao sistema no seu todo chegaram mesmo ao Tribunal Constitucional e estiveram à beira de pôr em confronto órgãos de soberania. Uma eventual colisão foi evitada a tempo pela decisão do PR em rejeitar liminarmente a petição apresentada. Infelizmente, algo similar parece estar a repetir-se em relação ao Tribunal de Contas. Apoiando-se no facto de que foi ultrapassado o tempo de mandato dos juízes do TdC, como aliás de vários órgãos para cuja nomeação participam órgãos do poder político, para falar de precariedade e transitoriedade, quando é sabido que os mandatos dos juízes só terminam com a posse de um novo juiz, pode configurar pressão sobre os tribunais.

Com questões sérias de prestação de contas e responsabilização política por resolver, a última coisa que podia acontecer é qualquer sinal vindo de actores políticos a procurar deslegitimar o TdC. A vítima maior disso seria a perda da confiança na democracia e nas suas instituições quando o que urge neste 25 de Setembro é que se reforce a confiança na ordem constitucional aprovada há 32 anos. Para que o país possa estar em melhor posição de enfrentar os enormes desafios que tem para frente. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1191 de 25 de Setembro de 2024.

sexta-feira, setembro 20, 2024

A paz passa pela justiça e pela verdade

 

No Festival Pela Paz, no Tarrafal, em comemoração do centenário de Amílcar Cabral, que terminou, sábado, dia 14, o abraço do presidente da república e do primeiro-ministro, na óptica dos organizadores, terá sido o ponto alto do evento. Estaria em linha com as declarações dos artistas no sentido de que a paz é um bem precioso. A encenação do acto trouxe à memória a iniciativa de Bob Marley em Abril de 1978 a chamar ao palco os dois protagonistas da violência política, em Jamaica, Michael Manley e Edward Seaga, para apertar as mãos num show de paz e unidade. A evocação pretendida, porém, não cola aqui. A diferença é que Cabo Verde não está em estado de guerra civil, nem há facções armadas ou se verificam distúrbios de monta na via pública como então acontecia nessa ilha das Caraíbas.

O PR e o PM apressaram-se a dizer isso mesmo, afirmando em uníssono que “sempre estivemos com a paz”, mas não desfizeram o equívoco criado. Pelo contrário, espalhou-se via os média e as redes sociais, como pretendido, substanciando a ideia do Tarrafal como um sítio de encontro espiritual em relação à paz. A verdade é que Bob Marley com base no rastafarianismo e na crença no Black Messiah pensou que através da música poderia unir e trazer paz para Jamaica. Não conseguiu como era óbvio. A repetição da sua iniciativa como uma espécie de farsa – em Cabo Verde não há violência política – procura trazer ao de cima, pela via da música e de iniciativas como Marcha Cabral Pela Paz, um certo espiritualismo, alimentando a idolatria de Cabral que caracteriza as comemorações do centenário.

Entretanto, na sociedade o efeito provocado é o de confirmar nas pessoas o cinismo e a hipocrisia que caracteriza muita da actuação da classe política. E é esse descrédito nas instituições e nos seus titulares que, quando criado, pode ser uma ameaça para a paz social. A Constituição de 1992 logo no seu artigo nº1 reconhece como fundamento para paz a inalienalibilidade e a inviolabilidade dos direitos humanos. De facto, sem os direitos, liberdades e garantias e o Estado de Direito não há forma de se viver na paz como um indivíduo livre, num ambiente plural e autónomo para perseguir interesses próprios. Sem uma ordem constitucional baseada nesses valores liberais, a alternativa é a ordem autocrática ou totalitária em que a maior ameaça à paz vem do próprio Estado que a qualquer momento e com total impunidade pode atirar-se contra indivíduos ou grupos despojando-os de direitos, de propriedade ou da própria vida.

Cabo Verde conhece isso da sua própria experiência dos primeiros quinze anos após a sua independência. Por isso que tem esse longo catálogo de direitos na constituição de 92. Por isso é que o país tem mais de um partido a concorrer nas eleições periódicas e o próprio poder do Estado é repartido pelos diferentes órgãos de soberania sem hierarquia entre eles e cada um exercendo as suas competências de acordo com o princípio da separação e interdependência dos poderes. Ameaça-se quebrar a paz quando por excesso ou omissão não se cumprem as competências próprias e se foge aos procedimentos democráticos instituídos a favor de arranjos e conluios paralelos sem possibilidade de escrutínio.

Ameaça-se ainda a paz usando poder do Estado para disseminar conteúdos ideológicos em directa colisão com os princípios e valores constitucionais. Nos países democráticos as ideias fluem naturalmente, mas a quem tem responsabilidades do Estado não lhe é permitido que no exercício das suas funções promova ideologias contrárias à democracia e ao Estado de Direito. Razão entre outras porque não há personificação do Estado num líder histórico. Isso só acontece actualmente na Coreia do Norte onde Kim-il Sung é considerado símbolo nacional e é tido como pai da nação. No passado, aconteceu com líderes na ex-União Soviética, Cuba, China. Por isso é que não faz nenhum sentido considerar Amílcar Cabral como símbolo nacional. O regime democrático não permite a personificação nacional senão como figuras alegóricas ou iconográficas como Marianne, em França, a imagem da república em Portugal ou o tio Sam nos Estados Unidos da América. Acresce ainda o facto da figura de Amílcar Cabral ter sido assumida pelo regime pós-independência de partido único como Fundador da Nacionalidade e Militante nº 1 do partido único, o PAIGC.

O artigo 8ª da Constituição da República estabelece quais são os símbolos da República: a Bandeira, o Hino e as Armas Nacionais. É evidente que sem uma revisão constitucional não é possível alterar ou acrescentar outros símbolos, algo que só pode acontecer com iniciativas de revisão pelos deputados e depois de uma votação por maioria qualificada de dois terços dos efectivos no parlamento. Nesse sentido, não se compreende a declaração do presidente da república no dia 12 de Setembro ao afirmar que “Amílcar Cabral é um símbolo da República e como tal merece a atenção de todas as instituições da República”. As instituições da república, assim como o próprio PR, estão, de facto, obrigados a cumprir os comandos da Constituição, que, neste caso particular dos símbolos nacionais, são de aplicação directa e tratam de valores de referência de toda a colectividade nacional. O normal funcionamento de todo o sistema político e a manutenção da paz social exige que não se deixem subordinar a qualquer conveniência político-ideológica, vinda de onde vier.

Os múltiplos momentos de tensão entre os órgãos de soberania, presidente da república, parlamento e governo, a que se vem assistindo, têm os elementos de um conflito ideológico que ainda opõe o antigo regime à democracia, mesmo trinta e dois anos depois. Perante a dificuldade de fazer valer certo tipo de argumentos hoje quase universalmente considerados retrógrados, recorre-se à figura de Amílcar Cabral para ainda manter uma ascendência sobre a sociedade cabo-verdiana. A sua morte prematura e trágica permitiu criar um mito quase messiânico à sua volta com mistérios à mistura, designadamente em relação ao seu assassinato e interrogações esperançosas de como seria se tivesse governado.

Daí as proclamações de “Cabral ka mori”, e lamentos de que é repetidamente morto e até há quem fale numa segunda vida. A idolatria não parece ter limites e no Tarrafal faz-se uma encenação de que em seu nome a paz pode chegar aos homens de boa vontade. O país é que não merece ficar numa situação de apanhado entre dois mundos enquanto quem outrora teve ascendência ideológica sobre o povo, a sua cultura e a sua história tudo faz para o manter cativo. A paz passa pela justiça e pela verdade. Cinismo e hipocrisia não podem ser normalizados como forma de fazer política. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1190 de 18 de Setembro de 2024.

A paz passa pela justiça e pela verdade

 

No Festival Pela Paz, no Tarrafal, em comemoração do centenário de Amílcar Cabral, que terminou, sábado, dia 14, o abraço do presidente da república e do primeiro-ministro, na óptica dos organizadores, terá sido o ponto alto do evento. Estaria em linha com as declarações dos artistas no sentido de que a paz é um bem precioso. A encenação do acto trouxe à memória a iniciativa de Bob Marley em Abril de 1978 a chamar ao palco os dois protagonistas da violência política, em Jamaica, Michael Manley e Edward Seaga, para apertar as mãos num show de paz e unidade. A evocação pretendida, porém, não cola aqui. A diferença é que Cabo Verde não está em estado de guerra civil, nem há facções armadas ou se verificam distúrbios de monta na via pública como então acontecia nessa ilha das Caraíbas.

O PR e o PM apressaram-se a dizer isso mesmo, afirmando em uníssono que “sempre estivemos com a paz”, mas não desfizeram o equívoco criado. Pelo contrário, espalhou-se via os média e as redes sociais, como pretendido, substanciando a ideia do Tarrafal como um sítio de encontro espiritual em relação à paz. A verdade é que Bob Marley com base no rastafarianismo e na crença no Black Messiah pensou que através da música poderia unir e trazer paz para Jamaica. Não conseguiu como era óbvio. A repetição da sua iniciativa como uma espécie de farsa – em Cabo Verde não há violência política – procura trazer ao de cima, pela via da música e de iniciativas como Marcha Cabral Pela Paz, um certo espiritualismo, alimentando a idolatria de Cabral que caracteriza as comemorações do centenário.

Entretanto, na sociedade o efeito provocado é o de confirmar nas pessoas o cinismo e a hipocrisia que caracteriza muita da actuação da classe política. E é esse descrédito nas instituições e nos seus titulares que, quando criado, pode ser uma ameaça para a paz social. A Constituição de 1992 logo no seu artigo nº1 reconhece como fundamento para paz a inalienalibilidade e a inviolabilidade dos direitos humanos. De facto, sem os direitos, liberdades e garantias e o Estado de Direito não há forma de se viver na paz como um indivíduo livre, num ambiente plural e autónomo para perseguir interesses próprios. Sem uma ordem constitucional baseada nesses valores liberais, a alternativa é a ordem autocrática ou totalitária em que a maior ameaça à paz vem do próprio Estado que a qualquer momento e com total impunidade pode atirar-se contra indivíduos ou grupos despojando-os de direitos, de propriedade ou da própria vida.

Cabo Verde conhece isso da sua própria experiência dos primeiros quinze anos após a sua independência. Por isso que tem esse longo catálogo de direitos na constituição de 92. Por isso é que o país tem mais de um partido a concorrer nas eleições periódicas e o próprio poder do Estado é repartido pelos diferentes órgãos de soberania sem hierarquia entre eles e cada um exercendo as suas competências de acordo com o princípio da separação e interdependência dos poderes. Ameaça-se quebrar a paz quando por excesso ou omissão não se cumprem as competências próprias e se foge aos procedimentos democráticos instituídos a favor de arranjos e conluios paralelos sem possibilidade de escrutínio.

Ameaça-se ainda a paz usando poder do Estado para disseminar conteúdos ideológicos em directa colisão com os princípios e valores constitucionais. Nos países democráticos as ideias fluem naturalmente, mas a quem tem responsabilidades do Estado não lhe é permitido que no exercício das suas funções promova ideologias contrárias à democracia e ao Estado de Direito. Razão entre outras porque não há personificação do Estado num líder histórico. Isso só acontece actualmente na Coreia do Norte onde Kim-il Sung é considerado símbolo nacional e é tido como pai da nação. No passado, aconteceu com líderes na ex-União Soviética, Cuba, China. Por isso é que não faz nenhum sentido considerar Amílcar Cabral como símbolo nacional. O regime democrático não permite a personificação nacional senão como figuras alegóricas ou iconográficas como Marianne, em França, a imagem da república em Portugal ou o tio Sam nos Estados Unidos da América. Acresce ainda o facto da figura de Amílcar Cabral ter sido assumida pelo regime pós-independência de partido único como Fundador da Nacionalidade e Militante nº 1 do partido único, o PAIGC.

O artigo 8ª da Constituição da República estabelece quais são os símbolos da República: a Bandeira, o Hino e as Armas Nacionais. É evidente que sem uma revisão constitucional não é possível alterar ou acrescentar outros símbolos, algo que só pode acontecer com iniciativas de revisão pelos deputados e depois de uma votação por maioria qualificada de dois terços dos efectivos no parlamento. Nesse sentido, não se compreende a declaração do presidente da república no dia 12 de Setembro ao afirmar que “Amílcar Cabral é um símbolo da República e como tal merece a atenção de todas as instituições da República”. As instituições da república, assim como o próprio PR, estão, de facto, obrigados a cumprir os comandos da Constituição, que, neste caso particular dos símbolos nacionais, são de aplicação directa e tratam de valores de referência de toda a colectividade nacional. O normal funcionamento de todo o sistema político e a manutenção da paz social exige que não se deixem subordinar a qualquer conveniência político-ideológica, vinda de onde vier.

Os múltiplos momentos de tensão entre os órgãos de soberania, presidente da república, parlamento e governo, a que se vem assistindo, têm os elementos de um conflito ideológico que ainda opõe o antigo regime à democracia, mesmo trinta e dois anos depois. Perante a dificuldade de fazer valer certo tipo de argumentos hoje quase universalmente considerados retrógrados, recorre-se à figura de Amílcar Cabral para ainda manter uma ascendência sobre a sociedade cabo-verdiana. A sua morte prematura e trágica permitiu criar um mito quase messiânico à sua volta com mistérios à mistura, designadamente em relação ao seu assassinato e interrogações esperançosas de como seria se tivesse governado.

Daí as proclamações de “Cabral ka mori”, e lamentos de que é repetidamente morto e até há quem fale numa segunda vida. A idolatria não parece ter limites e no Tarrafal faz-se uma encenação de que em seu nome a paz pode chegar aos homens de boa vontade. O país é que não merece ficar numa situação de apanhado entre dois mundos enquanto quem outrora teve ascendência ideológica sobre o povo, a sua cultura e a sua história tudo faz para o manter cativo. A paz passa pela justiça e pela verdade. Cinismo e hipocrisia não podem ser normalizados como forma de fazer política. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1190 de 18 de Setembro de 2024.

sexta-feira, setembro 13, 2024

Para um ano lectivo sem sobressaltos

 

O novo ano lectivo arranca na próxima semana a partir do dia 16 de Setembro e já se anuncia que vai ser conturbado. Aliás, há meses que se vem preadivinhando que iria arrancar a meio de conflito aberto entre o governo e os sindicatos dos professores. A iniciativa governamental, após vários rounds de negociação, de avançar com um decreto-lei dando satisfação à parte significativa das reivindicações, em particular, quanto às requalificações e ao aumento do salário-base abriu a possibilidade de se evitar perturbações na abertura das aulas. Rapidamente, porém, as esperanças nesse sentido se desvaneceram.

Os sindicatos manifestaram imediatamente a sua oposição ao diploma e pediram ao presidente da república para o vetar. Na sequência, o PR acedeu a receber os sindicatos com o objectivo de “garantir paz social, favorecer a melhoria da qualidade do sistema educativo cabo-verdiano e garantir que o arranque do ano lectivo 2024-2025 seja feito com tranquilidade”. Pelas declarações dos sindicatos à saída dos encontros com o PR, a confessarem-se “intransigentes” em matéria de estatuto dos professores, percebeu-se logo que o mais provável era dar-se continuidade ao que acontecera no ano transacto, ou seja, paralisação de aulas, manifestações e ameaças de não publicação das notas dos alunos.

Nesse sentido, a audiência pelo PR apenas criou oportunidade para reiterar posições já conhecidas dos sindicatos. E com o veto, aparentemente em resposta ao pedido explicitamente feito pelos sindicalistas, claramente que não foram criadas as melhores condições para se ultrapassar as intransigências das partes envolvidas, com todas as consequências já conhecidas. É um exemplo clássico da razão por que o presidente da república não deve se colocar na posição de mediador de conflitos laborais, mormente quando em confronto se encontra o governo, que dirige superiormente a administração pública, e as classes profissionais. Pior ainda quando parece reforçar a posição negocial dos sindicatos.

De facto, é o governo quem conduz as políticas públicas e presta contas pelos resultados da governação perante o parlamento e o eleitorado. Nessa qualidade está em melhor posição de conhecer e gerir os recursos públicos, fazer as ponderações necessárias no uso dos recursos e estabelecer prioridades, responsabilizando-se no fim do dia pelas suas escolhas. Em se tratando de matéria complexa e potencialmente fracturante é de toda a importância que a comunidade nacional reforce o que a une para que o debate democrático no seu pluralismo não seja divisivo e, pelo contrário, ajude a iluminar os problemas e abrir caminhos para se encontrar soluções factíveis.

A educação, como sector fulcral para o desenvolvimento do capital humano do país, é uma dessas matérias complexas que a existência de um consenso geral, quanto à necessidade de preservar a sua estabilidade, de manter o foco na sua qualidade e de valorizar social e profissionalmente os seus quadros, é fundamental. Disrupções no sector têm repercussões que levam anos e às vezes gerações a reparar e a ultrapassar. Deficiências na qualidade põem em perigo a possibilidade de realização dos indivíduos e de ter um país produtivo, competitivo e próspero. A eventual falta de autoestima e de brio profissional dos seus quadros poderá revelar-se fatal, independentemente dos meios que venham a despejar sobre o sistema.

Para um país que praticamente não tem nenhum outro recurso que não a sua gente, os seus jovens e crianças, a educação não devia ser matéria para tricas político-partidárias, jogadas eleitoralistas e activismos ideológicos. O envolvimento do presidente da republica, enquanto figura suprapartidária e representativa da unidade da Nação à volta dos princípios e valores constitucionais, tem sentido se é visto como promotor desse consenso geral. Também se é tido como facilitador ao longo do processo de reformas muitas vezes árduo devido à escassez de recursos, à resistência a mudanças e ao lastro acumulado de medidas pouco avisadas e oportunidades perdidas. Não pode é ser tomado como parte, como mentor ou como activista de alguma causa fracturante.

A confiança nas instituições é fundamental em democracia. A sua manutenção depende em grande medida da vontade de todos os actores políticos em seguir as regras do jogo democráticos, em prestar contas e a se responsabilizarem pelos seus actos. Também essencial é haver um consenso geral quanto ao exigir dos detentores de cargos públicos o cumprimento das regras, uma exigência que não seja diminuída pela conveniência do momento, nem pelo cinismo. Como no futebol ou em qualquer outro desporto, considera-se que há bom jogo quando jogadores e os árbitros, cumprindo com as regras, permitem que a perícia individual e a estratégia da equipa sejam dirigidas espectacularmente para marcar pontos. O espírito desportivo que emerge daí até dá para aceitar resultados em que nem sempre os melhores em campo ganham. Algo similar devia acontecer em democracia com a assunção de uma cultura democrática tendo na base o cumprimento das normas e procedimentos democráticos. Menos crispação e mais resultados seriam obtidos.

Um outro elemento importante para a confiança é a forma como são geridos pelo governo os recursos públicos e como são aplicados ao serviço do interesse geral. Princípios como os da justiça, da transparência, da imparcialidade e da boa-fé devem ser respeitados. A par disso, deve imperar a preocupação com os resultados e a necessidade de ter em atenção a relação custo/benefício nos investimentos e assegurar o equilíbrio das contas públicas. Projectando essa imagem da gestão pública, reforça-se a confiança e diminui-se a possibilidade de negociações em curso de vários interesses em jogo degenerarem em conflito aberto. Também será mais fácil para o público reconhecer quando há intransigência das partes e se fazer pressão para ultrapassar bloqueios. Por outro lado, é evidente que não contribui para a confiança desejada excessos de protagonismo, extravagâncias e falta de rigor e de sobriedade na condução dos assuntos públicos de parte de quem exerce cargos políticos.

Depois de todas as perturbações que marcaram o ano lectivo 2023/24 e das extenuantes e complicadas negociações entre o ministério da educação e os sindicatos, o governo produziu um decreto-lei que regula as requalificações dos professores. Certamente que não contempla tudo o que era reivindicado, mas, como em qualquer negociação, há que se chegar a compromissos, principalmente quando a questão é tão complexa, e pelo número de professores envolvidos, qualquer alteração tem custos enormes. O importante é que com o actual compromisso se reforce a base de confiança entre as partes para continuar a negociar, e de forma programada se chegue a acordo para resolver os problemas dos profissionais do sector.

A educação é demasiado importante para o futuro do país para ficar em situação de instabilidade, com os professores desmotivados e num conflito aberto que põe em causa o seu comprometimento com os alunos. O governo deve levar ao parlamento com urgência uma proposta de lei que já responda a reivindicações de requalificação e aumento salarial dos professores em linha com o negociado. Deverá haver abertura e boa-fé para continuar a negociar sem ser afectado pelo ciclo eleitoral que se inicia. Os alunos, as famílias e o país esperam um novo ano lectivo a funcionar com normalidade. 

Humberto Cardoso

sexta-feira, agosto 30, 2024

Comprometimento com a verdade é fundamental para a democracia

 

As reacções de vários quadrantes da sociedade face à situação criada pela publicação do relatório da inspecção das finanças à presidência da república, seguida dias depois pela comunicação do presidente da república, põem dúvida qual deve ser o grau de compromisso com a verdade por todos aceite.

De facto, não se está a orientar pelos valores de honestidade, transparência e responsabilidade quando se reage a alinhar um rol de culpas dirigidas para todas as direcções com excepção daquela onde reside o poder de decisão sobre a matéria em causa. Agrava-se ainda mais quando a resposta seguinte é destacar a “atitude pedagógica” do Presidente da República da devolução, do dinheiro pago à primeira-dama, aos cofres do Estado, como fez o presidente do maior partido da oposição. Se a questão não fosse tão grave até podia justificar Agosto como o mês da “silly season”.

Com acusações a recaírem sobre todos, a imitar uma barragem de artilharia, corre-se o risco de não haver escrutínio adequado dos actos, das decisões e das omissões do PR por quem o pode fazer: o povo, perante o qual é responsável, e a sociedade, via os média, as redes sociais e os partidos políticos, que podia censurar a sua conduta. Ao recorrer às mesmas tácticas que têm condicionado o ambiente político, acaba-se por partidarizar em extremo o debate, por passar a mensagem que “todos” fazem o mesmo e por fazer acreditar que cada um tem a sua verdade. No processo, ou se induz apatia nas pessoas ou se promove cinismo gereralizado.

Em consequência, diminui-se a participação cívica e política dos cidadãos, os mecanismos de prestação de contas são enfraquecidos e abre-se caminho à arbitrariedade e a discricionariedade. A própria política é prejudicada porque fracturas ideológicas e lealdades históricas não permitem que se consolide uma base comum de valores e uma disponibilidade para aceitação dos processos e procedimentos democráticos em todas as situações. A estabilidade da democracia é enfraquecida quando, da parte do árbitro e moderador do sistema, há relutância em prestar contas e forças partidárias passam uma imagem de “colagem” política.

De facto, o cargo de presidente da república é suprapartidário e no sistema constitucional só é possível uma responsabilização difusa do PR porquanto não presta contas ao parlamento e não pode por esse órgão de soberania ser censurado ou destituído. Mesmo em caso de crimes a acção penal terá que ser requerida pela assembleia nacional sob proposta de pelo menos 25 deputados e depois de votada por mais de dois terços dos deputados em efectividade de funções. Porque o PR não responde perante outros órgãos de soberania, é fundamental para o exercício pleno das suas funções e das suas competências que a todo o tempo lhe seja reconhecido uma autoridade acima de quaisquer suspeitas.

Não deve haver dúvidas quanto ao seu engajamento com os princípios e valores constitucionais e com a defesa do interesse público e do bem comum e quanto ao não permitir ser capturado por agendas partidárias. Para manter claras as linhas de responsabilidade democrática, evitar tensões entre órgãos de soberania e diminuir ineficiências no sistema, também é essencial que a sua magistratura de influência não extravase numa magistratura de interferência. Infelizmente, os sinais não são os mais auspiciosos nesse sentido. As tensões entre o PR e governo nesta legislatura têm sido maiores e mais problemáticas do que as que eventualmente aconteceram nas outras legislaturas da II República.

A gestão da actual crise é ilustrativa desse facto. A caracterização que o PR fez do caso no seu comunicado de sexta-feira, 19, é que “tudo foi feito com transparência e no convencimento de que, no âmbito da lealdade e cooperação institucionais, o necessário e completo quadro legal seria produzido com celeridade”. Hoje é ponto assente que não havia base constitucional nem legal para isso. Mesmo assim considera que se está perante uma “uma nódoa na história do relacionamento”, provavelmente a afectar relações futuras com impacto no país quando se devia estar a dar a garantia de cumprir os procedimentos democráticos em todas as circunstâncias. E isso não é muito tranquilizador. Também seria importante que para além do reconhecimento das “falhas do lado da presidência da república” houvesse sinais concretos que “não voltará a ser assim”.

Realmente, não interessa ao país que acusações mútuas de falta de lealdade e cooperação institucionais definam as relações entre órgãos de soberania num país em que um dos seus maiores activos é a sua estabilidade política. Essencial também para essa estabilidade é que nenhuma força política se sinta tentado a colar-se ao presidente da república para avançar a sua agenda partidária, nem procure subtraí-lo ao escrutínio popular e da sociedade e à prestação de contas com discurso político polarizante da sociedade. É uma atitude que só mina a autoridade moral e política do PR com perda para todos.

Manter a comunidade política comprometida com a verdade dos factos num ambiente de pluralidade de opinião é fundamental para se baixar a crispação e tornar a política mais construtiva. Ter e consolidar essa base comum de aceitação das regras do jogo democrático e de assunção plena de responsabilidade por parte dos actores políticos é o maior contributo para a confiança nas instituições democráticas e para construção da vontade necessária para se ganhar o futuro. Para isso, cada um deve fazer a sua parte. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1187 de 28 de Agosto de 2024.

segunda-feira, agosto 26, 2024

Ruptura de confiança é uma ameaça para a democracia

 Esta segunda-feira, 19, a Presidência da República através de um comunicado emitido pelo seu conselho de administração veio desresponsabilizar-se pelas irregularidades e ilegalidades apontadas no relatório da inspecção geral das finanças que tinha sido publicado uma semana antes. De passagem aproveitou para denunciar o que classificou de uma “clara tentativa de conspurcar, desgastar a imagem do Presidente da República e de fragilizar e condicionar a sua intervenção política e a sua capacidade de influenciação”. No fim do comunicado acabou por culpar tudo e todos pela crise criada e a dizer que aguarda serenamente o pronunciamento do Tribunal de Contas.

A propósito dos salários da primeira-dama a presidência deixou claro que “num quadro de explicitação das motivações todas as informações foram prestadas ao sr. primeiro-ministro”. E é assim porque é o entendimento da presidência que o estatuto da primeira-dama existe ainda que disperso e lacunoso. Uma das lacunas seria relativamente à compensação a atribuir à primeira-dama. Não parece interessar que compensação ou salário de primeira-dama não existe em nenhuma democracia por não ser um cargo público.

De qualquer forma ficou-se à espera que o governo avançasse com a legislação nesse sentido. Segundo o comunicado, o documento foi entregue em mãos pelo presidente da república ao primeiro-ministro. Começam os problemas quando se faz por ignorar como se legisla na democracia cabo-verdiana. Primeiro, a iniciativa só pode ser do governo ou dos deputados e grupos parlamentares. Sendo do governo, a proposta de lei teria que ser aprovada em conselho de ministros. Partindo dos deputados ou de um grupo parlamentar implicava uma consensualização prévia. Em qualquer dos casos teria que ser discutida e votada na Assembleia Nacional por se tratar de matéria absolutamente reservada.

Um outro aspecto central é que não se pode legislar contra a Constituição da República. O presidente da república é um órgão singular e não há qualquer referência à primeira-dama e às suas funções no texto constitucional. Também não seria de ignorar a actual lei orgânica de 2007 que na presidência da república limitou-se a criar um gabinete de apoio ao cônjuge do Presidente. Uma simples declaração pública do PR a apresentar a “primeira-dama” não devia ser suficiente para pôr o gabinete a funcionar e muito menos para desencadear requisição de quadro de origem ou processamento de salários. Por tudo isso, devia ser evidente que, enquanto uma nova lei orgânica da presidência não fosse aprovada, essas medidas, ainda que provisórias, não podiam ter como suporte bastante a Diretiva nº1/02023 assinado pelo Chefe da Casa Civil.

Nem é de argumentar como faz o comunicado que tais medidas não foram questionadas, nem foram sugeridos caminhos diferentes por outras entidades como o Fisco e a Previdência Social. Ou então que se procurou criar respaldo financeiro para uma nova lei orgânica a aprovar. Muito menos culpar o “sistema” por despesas injustificadas, mas autorizadas por quem tem o grau de autonomia administrativa e financeira próprio de uma estrutura de apoio ao órgão de soberania, o presidente da república. Aparecendo a apontar o dedo à volta e a disparar para todos os lados, sem assumir a responsabilidade primeira de ter executado despesas indevidas, pode ser entendido como sinal de quem se acha acima de qualquer dever de prestação de contas. A verdade é que nem se conseguiria atribuir as irregularidades e ilegalidades à inexperiência dos principais decisores considerando o longo currículo dos mesmos na governação do país e na direcção de estruturas do Estado.

A intenção manifestada na parte final do comunicado de aguardar serenamente o pronunciamento do Tribunal de Contas poderá ser entendida como mais um estender do tempo de não assunção de responsabilidades. Aliás, foi o que aconteceu durante o meio ano após as revelações de finais de Dezembro quando foram realizadas as inspecções e elaborado o relatório. Mas a realidade é que a responsabilidade política não se esgota na responsabilidade jurídica conformada no controlo dos actos pelo tribunal de contas ou tribunais administrativos. É de a exigir aos titulares de cargos políticos e deve ser assumida pelos próprios sempre que se verificar quebra nas relações de confiança. Não se pode num momento suspender salários indevidos e uso de viatura e depois, sem uma preocupação de regularização da condição de cônjuge, manter a participação em actividades oficiais do Estado no país e no exterior como se nada tivesse acontecido.

Está com os titulares de cargos políticos a responsabilidade primeira de evitar o desgaste da sua imagem e o condicionamento da sua intervenção política. Em situações de perturbação na confiança não é ao público, à imprensa ou às redes sociais que se vai pedir responsabilidade. Particularmente, tratando-se do presidente da república que não pode ser destituído nem exonerado e não responde perante outros órgãos políticos, as exigências são maiores porque só está sujeito ao que os constitucionalistas chamam de responsabilidade difusa que realmente apenas significa censura pública. Ou seja, a sua imagem e a sua capacidade de influenciação dependem fundamentalmente de como desempenha o seu papel de árbitro e moderador do sistema político. A sua função de garante da unidade está associada à autoridade moral que advém da defesa activa dos bens e valores da ordem constitucional.

Um dos chamados deveres autónomos, o dever de pagar impostos, está ligado ao comprometimento do cidadão com a existência do Estado e na origem das democracias modernas foi traduzido na expressão da revolução americana de que há não tributação sem representação (no taxation without representation). Mas, assim como pela via do orçamento democraticamente aprovado, as receitas devem ser legais também tem que se assegurar a legalidade das despesas públicas. Ou seja, a sua conformidade em termos administrativos de competência e forma, e em termos financeiros de cabimento orçamental. É evidente que com qualquer falha, particularmente ao nível mais alto, no compromisso central de se ter receitas e despesas legais corre-se o risco de uma ruptura na confiança no Estado que deve ser assumido e reparado o mais rápido possível. Na Suécia, em 1996, a utilização indevida de um cartão de crédito governamental levou à demissão do vice-primeiro-ministro no chamado escândalo do Toblerone.

As crises recentes nas democracias têm demonstrado que disputas partidárias, conflitos institucionais e mesmo a ascensão de políticos populistas só conseguem criar instabilidade e abrir caminho para derivas iliberais e autocráticas se da parte da sociedade civil e da maioria das pessoas não houver uma defesa activa da ordem constitucional e dos procedimentos democráticos necessários para evidenciaram os ganhos da política e do pluralismo. Se, pelo contrário, os actores políticos se se limitarem ao tacticismo político, ao jogo de conveniência e à conquista e manutenção do poder, a todo o custo, a crise pode aprofundar-se com resultados imprevisíveis. Nesse sentido, a reacção de vários actores políticos quanto aos últimos acontecimentos na presidência da república não tem sido encorajador. Não é na busca de pequenos ganhos pessoais e de grupos que se serve o bem comum e se constrói um futuro de liberdade e prosperidade para todos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1186 de 21 de Agosto de 2024.

sexta-feira, agosto 16, 2024

Responsabilidade não rima com arrogância

 

Um dos grandes desafios das democracias na actualidade é manter os titulares de cargos políticos accountable, ou seja, sujeitos à prestação de contas e obrigados a assumir a responsabilidade por decisões, actos e omissões produzidos no exercício das suas funções. Mais difícil é fazê-lo quando há uma tendência crescente para o protagonismo individual em simultâneo com exibições muitas vezes extravagantes de privilégios associados aos cargos.

Com normas e instituições sob permanente pressão ou a serem ultrapassadas por esse tipo de comportamento enfraquecem-se as condições para a responsabilização política, contribui-se para tornar os cidadãos ainda mais descrentes e cínicos e faz-se da política uma espécie de entretenimento perverso.

Pelo que se vê em outras paragens, daí não vem nada de bom. Em Cabo Verde também se nota que muito da luta política passa por desafiar práticas e posturas habituais. Já há quem queira ir além do normalmente aceitável e expectável para construir figuras públicas que se apresentam como autênticas, como agentes de mudança contra as elites e em colisão com normas e instituições vigentes. Perante essas incursões, os mecanismos de responsabilização política ou se mostram ineficazes como nas situações conhecidas de bloqueio municipal ou arrastam-se sem grandes possibilidades de se chegar a uma conclusão nas comissões de inquérito parlamentear dando azo a permanente chicana política. Em outros momentos fica-se com a percepção que cumplicidades cruzadas procuram dificultar que tudo seja esclarecido, que as responsabilidades sejam assacadas e que o país tenha a possibilidade de avançar para além das tricas políticas e para um debate mais construtivo.

Esta segunda-feira, dia 12 de Agosto, foi publicado finalmente o relatório da Inspecção das Finanças à presidência da república. O pedido para a sua realização tinha sido formulado pelo próprio presidente da república a 23 de Dezembro de 2023 na sequência da notícia vinda a público de pagamento de salários à “primeira-dama”. Também foi solicitado ao Tribunal de Contas uma auditoria, mas até agora não há conclusões publicadas. Pelo relatório da inspecção geral das finanças, após mais de seis meses, constata-se que o pagamento “é irregular e não tem suporte na legislação em vigor” e recomenda-se que se deve proceder à reposição do montante.

Isso, porém, é o óbvio considerando que não há nada na legislação que pudesse prever o pagamento, nem havia precedente na II República que o justificasse. Para além de tardio, o que espanta é que, meio ano depois, no exercício do contraditório ao relatório da inspecção geral das finanças, a casa civil da presidência ainda insista na mesma linha de argumentos expressa na Directiva nº 01/CCC/2023 que autorizou o pagamento “irregular”. O presidente da república publicamente poderá ter suspenso o pagamento de salário e retirado a viatura e segurança pessoal à “primeira-dama” num gesto de reconhecimento da falha, mas nos serviços da presidência da república parece que tudo o resto ficou como estava. O relatório veio dar conta de várias outras irregularidades e a condição de cônjuge não foi clarificada.

Aparentemente, enquanto se espera pelos resultados das inspecções e das auditorias, a atitude é de, no essencial, se continuar como antes mesmo que a percepção pública seja de perplexidade e mesmo de censura. E quanto maior for a demora na produção e homologação dos mesmos, melhor. O esclarecimento do público e a correcção dos procedimentos não parecem ser prioritários. Pelo contrário, como se vem tornando comum nos choques de protagonismo na democracia, a postura de muitos titulares de cargos públicos é de desafio da opinião pública, quando chamados à responsabilidade. Não é a que seria de esperar de, com humildade, cumprir o dever de defesa e promoção dos bens e valores da ordem constitucional.

Na semana passada viu-se um outro exemplo de como as expectativas das pessoas são goradas. Com dificuldades evidentes no domínio dos transportes e outros sectores-chave como energia e água muitos puseram a esperança nas mexidas no governo que há meses esperavam, desde que em Abril dois membros do governo foram designados candidatos a presidente de câmaras municipais. A postura típica de desafio prevaleceu e como disse o primeiro-ministro é ele “é que sabe em que momento e em que condições é que fará maior ou menor ajustamento ou eventualmente remodelação”.

Aparentemente não interessa a escolha do momento para os designar candidatos autárquicos com prejuízo para a performance dos sectores de actividade com ministro a prazo e o aumento de atrito político com os municípios por causa do anúncio. Mesmo quando o ministro por conta própria dá por findo o exercício, espera-se uma semana para produzir um titular. E mais uma vez ao invés de esperadas mexidas vai-se para os ajustamentos que se tornaram habituais sempre que, por qualquer razão, o governo perde algum membro. Não parece haver nem visão, nem estratégia por detrás das novas nomeações. Mas é de visão e estratégia que o país precisa se tem que melhorar a sua produtividade e sua competitividade. Segundo o relatório do Estado da Economia de 2023 do BCV, o menor contributo da produtividade total dos fatores (PTF) foi um dos determinantes para o abrandamento do crescimento do produto nacional (PIB) em 2023 e continua em média, a um nível considerado baixo, condicionando o potencial de crescimento da economia.

Espera-se de todos os titulares dos cargos políticos que exerçam as suas funções com foco na prossecução do interesse público procurando controlar a arrogância que naturalmente a proximidade do poder distila e mostrando humildade na busca de soluções que os problemas complexos do país aconselham. Para se manter nessa linha é fundamental que os mecanismos de responsabilização funcionem tempestivamente e os titulares dos cargos vejam nesse seu dever de preservar a ordem constitucional e no respeito pelo princípio democrático a expressão mais profunda da sua vontade de servir.

É possível ter protagonismo político, ganhar eleições e governar sem ir pelas vias tortuosas de excitação de medos e ressentimentos e sem transpirar teimosia e ideias fixas. Quando tudo parecia ir num caminho sombrio nas eleições americanas, a campanha de alegria de Kamala Harris veio lembrar que pode haver uma outra via. Há pois esperança para um outro tipo de política, mais sintonizado com as necessidades das pessoas e da comunidade, mais responsável e solidária e mais produtiva e construtiva. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1185 de 14 de Agosto de 2024.