sexta-feira, agosto 30, 2024

Comprometimento com a verdade é fundamental para a democracia

 

As reacções de vários quadrantes da sociedade face à situação criada pela publicação do relatório da inspecção das finanças à presidência da república, seguida dias depois pela comunicação do presidente da república, põem dúvida qual deve ser o grau de compromisso com a verdade por todos aceite.

De facto, não se está a orientar pelos valores de honestidade, transparência e responsabilidade quando se reage a alinhar um rol de culpas dirigidas para todas as direcções com excepção daquela onde reside o poder de decisão sobre a matéria em causa. Agrava-se ainda mais quando a resposta seguinte é destacar a “atitude pedagógica” do Presidente da República da devolução, do dinheiro pago à primeira-dama, aos cofres do Estado, como fez o presidente do maior partido da oposição. Se a questão não fosse tão grave até podia justificar Agosto como o mês da “silly season”.

Com acusações a recaírem sobre todos, a imitar uma barragem de artilharia, corre-se o risco de não haver escrutínio adequado dos actos, das decisões e das omissões do PR por quem o pode fazer: o povo, perante o qual é responsável, e a sociedade, via os média, as redes sociais e os partidos políticos, que podia censurar a sua conduta. Ao recorrer às mesmas tácticas que têm condicionado o ambiente político, acaba-se por partidarizar em extremo o debate, por passar a mensagem que “todos” fazem o mesmo e por fazer acreditar que cada um tem a sua verdade. No processo, ou se induz apatia nas pessoas ou se promove cinismo gereralizado.

Em consequência, diminui-se a participação cívica e política dos cidadãos, os mecanismos de prestação de contas são enfraquecidos e abre-se caminho à arbitrariedade e a discricionariedade. A própria política é prejudicada porque fracturas ideológicas e lealdades históricas não permitem que se consolide uma base comum de valores e uma disponibilidade para aceitação dos processos e procedimentos democráticos em todas as situações. A estabilidade da democracia é enfraquecida quando, da parte do árbitro e moderador do sistema, há relutância em prestar contas e forças partidárias passam uma imagem de “colagem” política.

De facto, o cargo de presidente da república é suprapartidário e no sistema constitucional só é possível uma responsabilização difusa do PR porquanto não presta contas ao parlamento e não pode por esse órgão de soberania ser censurado ou destituído. Mesmo em caso de crimes a acção penal terá que ser requerida pela assembleia nacional sob proposta de pelo menos 25 deputados e depois de votada por mais de dois terços dos deputados em efectividade de funções. Porque o PR não responde perante outros órgãos de soberania, é fundamental para o exercício pleno das suas funções e das suas competências que a todo o tempo lhe seja reconhecido uma autoridade acima de quaisquer suspeitas.

Não deve haver dúvidas quanto ao seu engajamento com os princípios e valores constitucionais e com a defesa do interesse público e do bem comum e quanto ao não permitir ser capturado por agendas partidárias. Para manter claras as linhas de responsabilidade democrática, evitar tensões entre órgãos de soberania e diminuir ineficiências no sistema, também é essencial que a sua magistratura de influência não extravase numa magistratura de interferência. Infelizmente, os sinais não são os mais auspiciosos nesse sentido. As tensões entre o PR e governo nesta legislatura têm sido maiores e mais problemáticas do que as que eventualmente aconteceram nas outras legislaturas da II República.

A gestão da actual crise é ilustrativa desse facto. A caracterização que o PR fez do caso no seu comunicado de sexta-feira, 19, é que “tudo foi feito com transparência e no convencimento de que, no âmbito da lealdade e cooperação institucionais, o necessário e completo quadro legal seria produzido com celeridade”. Hoje é ponto assente que não havia base constitucional nem legal para isso. Mesmo assim considera que se está perante uma “uma nódoa na história do relacionamento”, provavelmente a afectar relações futuras com impacto no país quando se devia estar a dar a garantia de cumprir os procedimentos democráticos em todas as circunstâncias. E isso não é muito tranquilizador. Também seria importante que para além do reconhecimento das “falhas do lado da presidência da república” houvesse sinais concretos que “não voltará a ser assim”.

Realmente, não interessa ao país que acusações mútuas de falta de lealdade e cooperação institucionais definam as relações entre órgãos de soberania num país em que um dos seus maiores activos é a sua estabilidade política. Essencial também para essa estabilidade é que nenhuma força política se sinta tentado a colar-se ao presidente da república para avançar a sua agenda partidária, nem procure subtraí-lo ao escrutínio popular e da sociedade e à prestação de contas com discurso político polarizante da sociedade. É uma atitude que só mina a autoridade moral e política do PR com perda para todos.

Manter a comunidade política comprometida com a verdade dos factos num ambiente de pluralidade de opinião é fundamental para se baixar a crispação e tornar a política mais construtiva. Ter e consolidar essa base comum de aceitação das regras do jogo democrático e de assunção plena de responsabilidade por parte dos actores políticos é o maior contributo para a confiança nas instituições democráticas e para construção da vontade necessária para se ganhar o futuro. Para isso, cada um deve fazer a sua parte. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1187 de 28 de Agosto de 2024.

segunda-feira, agosto 26, 2024

Ruptura de confiança é uma ameaça para a democracia

 Esta segunda-feira, 19, a Presidência da República através de um comunicado emitido pelo seu conselho de administração veio desresponsabilizar-se pelas irregularidades e ilegalidades apontadas no relatório da inspecção geral das finanças que tinha sido publicado uma semana antes. De passagem aproveitou para denunciar o que classificou de uma “clara tentativa de conspurcar, desgastar a imagem do Presidente da República e de fragilizar e condicionar a sua intervenção política e a sua capacidade de influenciação”. No fim do comunicado acabou por culpar tudo e todos pela crise criada e a dizer que aguarda serenamente o pronunciamento do Tribunal de Contas.

A propósito dos salários da primeira-dama a presidência deixou claro que “num quadro de explicitação das motivações todas as informações foram prestadas ao sr. primeiro-ministro”. E é assim porque é o entendimento da presidência que o estatuto da primeira-dama existe ainda que disperso e lacunoso. Uma das lacunas seria relativamente à compensação a atribuir à primeira-dama. Não parece interessar que compensação ou salário de primeira-dama não existe em nenhuma democracia por não ser um cargo público.

De qualquer forma ficou-se à espera que o governo avançasse com a legislação nesse sentido. Segundo o comunicado, o documento foi entregue em mãos pelo presidente da república ao primeiro-ministro. Começam os problemas quando se faz por ignorar como se legisla na democracia cabo-verdiana. Primeiro, a iniciativa só pode ser do governo ou dos deputados e grupos parlamentares. Sendo do governo, a proposta de lei teria que ser aprovada em conselho de ministros. Partindo dos deputados ou de um grupo parlamentar implicava uma consensualização prévia. Em qualquer dos casos teria que ser discutida e votada na Assembleia Nacional por se tratar de matéria absolutamente reservada.

Um outro aspecto central é que não se pode legislar contra a Constituição da República. O presidente da república é um órgão singular e não há qualquer referência à primeira-dama e às suas funções no texto constitucional. Também não seria de ignorar a actual lei orgânica de 2007 que na presidência da república limitou-se a criar um gabinete de apoio ao cônjuge do Presidente. Uma simples declaração pública do PR a apresentar a “primeira-dama” não devia ser suficiente para pôr o gabinete a funcionar e muito menos para desencadear requisição de quadro de origem ou processamento de salários. Por tudo isso, devia ser evidente que, enquanto uma nova lei orgânica da presidência não fosse aprovada, essas medidas, ainda que provisórias, não podiam ter como suporte bastante a Diretiva nº1/02023 assinado pelo Chefe da Casa Civil.

Nem é de argumentar como faz o comunicado que tais medidas não foram questionadas, nem foram sugeridos caminhos diferentes por outras entidades como o Fisco e a Previdência Social. Ou então que se procurou criar respaldo financeiro para uma nova lei orgânica a aprovar. Muito menos culpar o “sistema” por despesas injustificadas, mas autorizadas por quem tem o grau de autonomia administrativa e financeira próprio de uma estrutura de apoio ao órgão de soberania, o presidente da república. Aparecendo a apontar o dedo à volta e a disparar para todos os lados, sem assumir a responsabilidade primeira de ter executado despesas indevidas, pode ser entendido como sinal de quem se acha acima de qualquer dever de prestação de contas. A verdade é que nem se conseguiria atribuir as irregularidades e ilegalidades à inexperiência dos principais decisores considerando o longo currículo dos mesmos na governação do país e na direcção de estruturas do Estado.

A intenção manifestada na parte final do comunicado de aguardar serenamente o pronunciamento do Tribunal de Contas poderá ser entendida como mais um estender do tempo de não assunção de responsabilidades. Aliás, foi o que aconteceu durante o meio ano após as revelações de finais de Dezembro quando foram realizadas as inspecções e elaborado o relatório. Mas a realidade é que a responsabilidade política não se esgota na responsabilidade jurídica conformada no controlo dos actos pelo tribunal de contas ou tribunais administrativos. É de a exigir aos titulares de cargos políticos e deve ser assumida pelos próprios sempre que se verificar quebra nas relações de confiança. Não se pode num momento suspender salários indevidos e uso de viatura e depois, sem uma preocupação de regularização da condição de cônjuge, manter a participação em actividades oficiais do Estado no país e no exterior como se nada tivesse acontecido.

Está com os titulares de cargos políticos a responsabilidade primeira de evitar o desgaste da sua imagem e o condicionamento da sua intervenção política. Em situações de perturbação na confiança não é ao público, à imprensa ou às redes sociais que se vai pedir responsabilidade. Particularmente, tratando-se do presidente da república que não pode ser destituído nem exonerado e não responde perante outros órgãos políticos, as exigências são maiores porque só está sujeito ao que os constitucionalistas chamam de responsabilidade difusa que realmente apenas significa censura pública. Ou seja, a sua imagem e a sua capacidade de influenciação dependem fundamentalmente de como desempenha o seu papel de árbitro e moderador do sistema político. A sua função de garante da unidade está associada à autoridade moral que advém da defesa activa dos bens e valores da ordem constitucional.

Um dos chamados deveres autónomos, o dever de pagar impostos, está ligado ao comprometimento do cidadão com a existência do Estado e na origem das democracias modernas foi traduzido na expressão da revolução americana de que há não tributação sem representação (no taxation without representation). Mas, assim como pela via do orçamento democraticamente aprovado, as receitas devem ser legais também tem que se assegurar a legalidade das despesas públicas. Ou seja, a sua conformidade em termos administrativos de competência e forma, e em termos financeiros de cabimento orçamental. É evidente que com qualquer falha, particularmente ao nível mais alto, no compromisso central de se ter receitas e despesas legais corre-se o risco de uma ruptura na confiança no Estado que deve ser assumido e reparado o mais rápido possível. Na Suécia, em 1996, a utilização indevida de um cartão de crédito governamental levou à demissão do vice-primeiro-ministro no chamado escândalo do Toblerone.

As crises recentes nas democracias têm demonstrado que disputas partidárias, conflitos institucionais e mesmo a ascensão de políticos populistas só conseguem criar instabilidade e abrir caminho para derivas iliberais e autocráticas se da parte da sociedade civil e da maioria das pessoas não houver uma defesa activa da ordem constitucional e dos procedimentos democráticos necessários para evidenciaram os ganhos da política e do pluralismo. Se, pelo contrário, os actores políticos se se limitarem ao tacticismo político, ao jogo de conveniência e à conquista e manutenção do poder, a todo o custo, a crise pode aprofundar-se com resultados imprevisíveis. Nesse sentido, a reacção de vários actores políticos quanto aos últimos acontecimentos na presidência da república não tem sido encorajador. Não é na busca de pequenos ganhos pessoais e de grupos que se serve o bem comum e se constrói um futuro de liberdade e prosperidade para todos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1186 de 21 de Agosto de 2024.

sexta-feira, agosto 16, 2024

Responsabilidade não rima com arrogância

 

Um dos grandes desafios das democracias na actualidade é manter os titulares de cargos políticos accountable, ou seja, sujeitos à prestação de contas e obrigados a assumir a responsabilidade por decisões, actos e omissões produzidos no exercício das suas funções. Mais difícil é fazê-lo quando há uma tendência crescente para o protagonismo individual em simultâneo com exibições muitas vezes extravagantes de privilégios associados aos cargos.

Com normas e instituições sob permanente pressão ou a serem ultrapassadas por esse tipo de comportamento enfraquecem-se as condições para a responsabilização política, contribui-se para tornar os cidadãos ainda mais descrentes e cínicos e faz-se da política uma espécie de entretenimento perverso.

Pelo que se vê em outras paragens, daí não vem nada de bom. Em Cabo Verde também se nota que muito da luta política passa por desafiar práticas e posturas habituais. Já há quem queira ir além do normalmente aceitável e expectável para construir figuras públicas que se apresentam como autênticas, como agentes de mudança contra as elites e em colisão com normas e instituições vigentes. Perante essas incursões, os mecanismos de responsabilização política ou se mostram ineficazes como nas situações conhecidas de bloqueio municipal ou arrastam-se sem grandes possibilidades de se chegar a uma conclusão nas comissões de inquérito parlamentear dando azo a permanente chicana política. Em outros momentos fica-se com a percepção que cumplicidades cruzadas procuram dificultar que tudo seja esclarecido, que as responsabilidades sejam assacadas e que o país tenha a possibilidade de avançar para além das tricas políticas e para um debate mais construtivo.

Esta segunda-feira, dia 12 de Agosto, foi publicado finalmente o relatório da Inspecção das Finanças à presidência da república. O pedido para a sua realização tinha sido formulado pelo próprio presidente da república a 23 de Dezembro de 2023 na sequência da notícia vinda a público de pagamento de salários à “primeira-dama”. Também foi solicitado ao Tribunal de Contas uma auditoria, mas até agora não há conclusões publicadas. Pelo relatório da inspecção geral das finanças, após mais de seis meses, constata-se que o pagamento “é irregular e não tem suporte na legislação em vigor” e recomenda-se que se deve proceder à reposição do montante.

Isso, porém, é o óbvio considerando que não há nada na legislação que pudesse prever o pagamento, nem havia precedente na II República que o justificasse. Para além de tardio, o que espanta é que, meio ano depois, no exercício do contraditório ao relatório da inspecção geral das finanças, a casa civil da presidência ainda insista na mesma linha de argumentos expressa na Directiva nº 01/CCC/2023 que autorizou o pagamento “irregular”. O presidente da república publicamente poderá ter suspenso o pagamento de salário e retirado a viatura e segurança pessoal à “primeira-dama” num gesto de reconhecimento da falha, mas nos serviços da presidência da república parece que tudo o resto ficou como estava. O relatório veio dar conta de várias outras irregularidades e a condição de cônjuge não foi clarificada.

Aparentemente, enquanto se espera pelos resultados das inspecções e das auditorias, a atitude é de, no essencial, se continuar como antes mesmo que a percepção pública seja de perplexidade e mesmo de censura. E quanto maior for a demora na produção e homologação dos mesmos, melhor. O esclarecimento do público e a correcção dos procedimentos não parecem ser prioritários. Pelo contrário, como se vem tornando comum nos choques de protagonismo na democracia, a postura de muitos titulares de cargos públicos é de desafio da opinião pública, quando chamados à responsabilidade. Não é a que seria de esperar de, com humildade, cumprir o dever de defesa e promoção dos bens e valores da ordem constitucional.

Na semana passada viu-se um outro exemplo de como as expectativas das pessoas são goradas. Com dificuldades evidentes no domínio dos transportes e outros sectores-chave como energia e água muitos puseram a esperança nas mexidas no governo que há meses esperavam, desde que em Abril dois membros do governo foram designados candidatos a presidente de câmaras municipais. A postura típica de desafio prevaleceu e como disse o primeiro-ministro é ele “é que sabe em que momento e em que condições é que fará maior ou menor ajustamento ou eventualmente remodelação”.

Aparentemente não interessa a escolha do momento para os designar candidatos autárquicos com prejuízo para a performance dos sectores de actividade com ministro a prazo e o aumento de atrito político com os municípios por causa do anúncio. Mesmo quando o ministro por conta própria dá por findo o exercício, espera-se uma semana para produzir um titular. E mais uma vez ao invés de esperadas mexidas vai-se para os ajustamentos que se tornaram habituais sempre que, por qualquer razão, o governo perde algum membro. Não parece haver nem visão, nem estratégia por detrás das novas nomeações. Mas é de visão e estratégia que o país precisa se tem que melhorar a sua produtividade e sua competitividade. Segundo o relatório do Estado da Economia de 2023 do BCV, o menor contributo da produtividade total dos fatores (PTF) foi um dos determinantes para o abrandamento do crescimento do produto nacional (PIB) em 2023 e continua em média, a um nível considerado baixo, condicionando o potencial de crescimento da economia.

Espera-se de todos os titulares dos cargos políticos que exerçam as suas funções com foco na prossecução do interesse público procurando controlar a arrogância que naturalmente a proximidade do poder distila e mostrando humildade na busca de soluções que os problemas complexos do país aconselham. Para se manter nessa linha é fundamental que os mecanismos de responsabilização funcionem tempestivamente e os titulares dos cargos vejam nesse seu dever de preservar a ordem constitucional e no respeito pelo princípio democrático a expressão mais profunda da sua vontade de servir.

É possível ter protagonismo político, ganhar eleições e governar sem ir pelas vias tortuosas de excitação de medos e ressentimentos e sem transpirar teimosia e ideias fixas. Quando tudo parecia ir num caminho sombrio nas eleições americanas, a campanha de alegria de Kamala Harris veio lembrar que pode haver uma outra via. Há pois esperança para um outro tipo de política, mais sintonizado com as necessidades das pessoas e da comunidade, mais responsável e solidária e mais produtiva e construtiva. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1185 de 14 de Agosto de 2024.

segunda-feira, agosto 12, 2024

Estar atento às armadilhas no caminho do desenvolvimento

 

Na semana passada o Banco Mundial emitiu um alerta aos países de rendimento médio dizendo-lhes que estão numa corrida contra o tempo. Numa publicação intitulada “Armadilha dos países de rendimento médio” (Middle income trap) o BM deixa claro que os próximos tempos não são os melhores para se fazer a transição de país de rendimento médio-baixo para o grupo dos países de rendimento médio-alto e muito menos para os de rendimento alto. Desde 1990 só trinta e quatro países conseguiram escapar à armadilha e elevar-se para o grupo de rendimento alto. São actualmente 108 os países de rendimento médio a tentar e a situação internacional é muito pior.

De facto, segunda a publicação do BM, os países de rendimento médio vêem-se actualmente com espaço de manobra mais apertado. Além de já enfrentarem problemas de aumento da dívida pública e do envelhecimento da sua população com os custos inerentes estão ainda sobrecarregados com a pressão para acelerar a transição energética e com os entraves nas relações comerciais devido ao crescente proteccionismo das economias mais avançadas. Se anteriormente conseguir fazer a transição para país desenvolvido era difícil, agora os obstáculos são muito maiores.

De acordo com o documento referido, os países para ascenderam no seu nível de rendimento têm que com sucesso passar de uma estratégia inicial de crescimento baseada no investimento (1i) enquanto países de rendimento baixo para uma outra de investimento e infusão de tecnologia (2i) adequada para países de rendimento médio e posteriormente para uma estratégia, à que se acrescenta inovação, de 3i para atingirem o grupo dos países desenvolvidos. Se transitar de país de rendimento baixo para médio é mais directo bastando mobilizar capital o mesmo já não acontece em subir ao estádio superior de desenvolvimento.

Não é à toa que há apenas 25 países de rendimento baixo, mas, em contrapartida, há 108 de rendimento médio, a maioria deles entalados numa espécie de armadilha em que não conseguem fazer o 2i, investimento e infusão de tecnologia, e contribuir para criar riqueza suficiente que os pode lançar para os níveis mais altos de rendimento. Aliás, segundo o BM, os países de rendimento médio devem passar por duas transições, uma em que para além de continuar a investir são bem-sucedidas com a infusão da tecnologia, ou seja, com a difusão no país de tecnologias modernas e processos de negócios vindos de fora. Outra, em que depois de completada a absorção tecnológica ficam criadas as condições para começar a acrescentar valor com inovações que podem encontrar mercado global e tornar o país mais competitivo e produtivo.

As dificuldades dos países de rendimento médio devem-se ao facto de nenhuma das duas transições ser fácil e, em consequência, mesmo que escapem de cair numa das armadilhas não há certeza que consigam ultrapassar a segunda. Também, como acrescenta o documento do BM, não é possível saltar etapas, fazer o leapfrogging. Tentar por exemplo investir em inovação sem passar pela infusão – com tudo o que em termos institucionais e de atitude acarreta de absorpção de tecnologia, de desenvolvimento de capacidades e de mobilização de talentos com reconhecimento do mérito e incentivos à iniciativa e à criatividade – não resulta. Deixa-se o país ficar num nível de crescimento que não lhe permite acompanhar e muito menos alcançar os mais avançados.

Os dramas vividos por esses países também se colocam a Cabo Verde enquanto país de rendimento médio-baixo. Guiando-se pelo exposto no documento do Banco Mundial, o país tem que se mostrar capaz de escapar às duas armadilhas. Infelizmente, os dados de crescimento em 2023 que foi de 5,1% do PIB, de acordo com o BCV, e as projecções do FMI/Banco Mundial para o resto da década à volta dos 5% poderão estar a indiciar que a armadilha já é real. A baixa da produtividade da economia e os resultados decrescentes dos investimentos públicos já são sinais disso designadamente no incentivo que deviam representar para investimentos privados.

Por outro lado, as medidas de política e a retórica do governo suportadas por enormes recursos que vêm sendo dirigidos para fazer da inovação um motor da economia parecem colidir com as constatações do BM. No documento alerta-se para o risco de tornar pior o clima de investimentos e atrasar o país em anos ou décadas como já aconteceu com vários países em particular na América Latina se a fase da infusão de tecnologia não for devidamente cimentada. E para isso, primeiro, a abertura a novas ideias e tecnologias tem que ser cultivada na sociedade e nas empresas. Também vontade e recursos para aumentar a capacidade de formação de técnicos, engenheiros e cientistas, a começar por bons liceus e escolas vocacionais, têm que ser procurados. E uma especial preocupação deve-se ter com as instituições que garantem livre expressão de ideias e propriedade intelectual e promovem a iniciativa empresarial.

Sem um planeamento adequado de todo um processo de modernização tecnológica pode-se chegar a uma situação em que não se sabe claramente quais os principais objectivos pretendidos. Percebe-se que iniciativas são tomadas, mas parecem silos quase fechados sobre si próprios criando ineficiências e com prestação deficiente de serviços. Outras pretendem diminuir a burocracia e a morosidade e aumentar a acessibilidade, mas nota-se que os serviços aos utentes e às empresas fica aquém do que é apregoado na inauguração de janelas e balcões únicos.

Aparentemente é a constatação dessa situação que levou à posse dada pelo primeiro-ministro a uma Equipa de Serviço Digital. O objectivo, segundo ele, é ampliar e diversificar os serviços online oferecidos de forma a que passem de cerca de 18 a 20% para próximo dos 100%. De passagem, reconhece que as múltiplas plataformas e portais existentes precisam ser integrados, eliminando redundâncias e custos desnecessários para os cidadãos e empresas. A questão que se coloca é por que isso levou tanto tempo para fazer e certamente implicou muito desperdício de dinheiro, tempo e oportunidades.

Há vinte anos que o país passou a dispor de banda larga e todo o processo de digitalização deveria ter sido conduzido para precisamente diminuir os enormes constrangimentos para as pessoas e para economia que um país com nove ilhas, população dispersa e uma cultura estatal burocrática e centralizadora representa. Países como a Estónia iniciaram a sua digitalização praticamente no mesmo tempo que Cabo Verde, mas souberam potenciar os desafios resultantes da sua condição de pequeno país para criar um serviço unificado e vender a sua experiência para o mundo. Aqui em Cabo Verde, duas décadas depois, “com várias plataformas e portais, redundâncias e custos desnecessários” quer-se fazer melhor trazendo a experiência do consulado em Lisboa.

Por aí fica aparentemente claro que a infusão de tecnologia que o Banco Mundial preconiza para que se faça a primeira transição não está completa. Também que investir na inovação quando ainda se está atrasado pode significar desperdício de recursos. É fundamental que se reflicta aprofundadamente sobre o processo de desenvolvimento para evitar armadilhas que podem atrasar o país ou impedi-lo de conseguir o nível de crescimento da economia que pode trazer prosperidade para todos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1184 de 7 de Agosto de 2024.

segunda-feira, agosto 05, 2024

Mais solidariedade e união para melhor estado da Nação

 Passado o choque causado pela pandemia da covid-19, seja na violenta contracção da economia de 14,8% do PIB, seja na retoma que veio a seguir com taxas de crescimento do PIB de 7,1% em 2021 e 17,7% em 2022 e 5,1 em 2023, o país tende a normalizar-se aquém dos 7% desejados ou prometidos. O FMI no último Economic Outlook projecta taxas de crescimento anual até 2029 que não chegam aos 5%.

Entretanto, ainda persistem alguns efeitos da crise pandémica e de acontecimentos seguintes como a guerra na Ucrânia, os constrangimentos na cadeia de abastecimentos e alguns recuos na globalização que afectam em particular a população com menor poder de compra e com dificuldades em conseguir emprego.

É o caso da inflação, da alta de preços dos combustíveis e de alimentos e da dívida pública acumulada. Acrescem ainda as medidas restritivas para se ter a taxa de inflação em linha com a da União Europeia e as exigências de consolidação orçamental para recuperar os equilíbrios macroeconómicos. O impacto imediato na economia não deixa de ser significativo apesar de contrabalançado pelo fluxo turístico que já ultrapassa os valores pré-pandémicos de 2019.

Juntam-se a isso as dificuldades manifestas em encontrar solução para os problemas dos transportes, apesar de tentativas múltiplas. Minam a confiança na capacidade de resolver problemas não só nesse sector como noutros também vitais como a segurança, educação e saúde. E é assim porque se nota que, em termos práticos, as sucessivas gestões do sector dos transportes têm quase sempre a mesma abordagem e propósitos não obstante os repetidos falhanços. Ontem o novo PCA da TACV situou-se no mesmo comprimento de onda ao dizer que “há um compromisso do Governo de termos uma ligação ainda este ano (...), a comunidade cabo-verdiana no Brasil e nos Estados Unidos da América podem estar cientes de que vamos ter ligação ponta a ponta”.

Curiosamente, a partir das declarações das forças da oposição e dos círculos na sociedade percebe-se que também a vontade geral é ir pelos mesmos caminhos, mas esperar resultados diferentes. Claro que com uma postura típica de Lampedusa “mudar para que tudo continue como está” não há confiança que aguente. Só se aumenta o stock de cinismo em relação às políticas públicas com consequências negativas para a competitividade e produtividade do país.

Num outro registo, há dias, o ministro da Administração Interna pôs em cerca de 33 mil o número de balas apreendidas pela polícia nos portos e aeroportos do país nos últimos seis anos. Ficou-se sem saber que percentagem da totalidade das balas entradas corresponderia esse número de balas. Também ficou-se sem saber qual é a dimensão do mercado de munições no país e porque é atractivo para os remetentes de pequenas encomendas. E ainda se o mercado está a crescer, ou não, e se isso é devido a maior quantidade de armas artesanais em circulação ou a uma maior procura de balas. Sem respostas para essas questões, fica-se aparentemente pela posição mais conveniente de colocar mais scanners, mas o problema de fundo da insegurança continua a pairar sobre todos.

Na educação parece que todos já finalmente despertaram para o problema da qualidade. A realidade é que, depois de tanto tempo a ignorá-lo, dificilmente se vai conseguir mobilizar a sociedade, as famílias e a própria máquina estatal para a promover. Não ajuda que os critérios de mérito de há muito que foram secundarizados e que o gosto pelo conhecimento, o brio profissional e o espírito crítico tenham sido desincentivados a favor de quem tem mais lata, faz carreira com base em intrigas, autopromoção e favores e opta pelo conformismo para ser aceite e singrar.

O protagonismo sindical recente dos professores independentemente do eventual mérito das suas propostas dificilmente significará algum foco na qualidade do ensino. A disrupção das aulas que vem acompanhando essa luta, que provavelmente será longa considerando os custos envolvidos e a intransigência das partes, não será propícia a que se crie o ambiente que poderá fazer da escola, mais do que um instrumento de mobilidade social, um centro de conhecimento onde a curiosidade e a imaginação serão estimuladas e a perseverança na procura da verdade será cultivada.

Na saúde, debate-se com vários problemas um sector que devia ter sido visto como estratégico por entre outras razões pelo facto de: primeiro, o país ser arquipelágico, pequena população e perfil demográfico que aponta para custos crescentes dos cuidados de saúde; e segundo, ter o turismo como motor da economia o que exige serviços de saúde de qualidade para a sua sustentabilidade, diversificação e expansão. Uma aposta compreensiva na saúde poderia criar as condições para o aumento e estabilidade do fluxo turístico ao longo do ano, para diversificar a oferta com exploração de nichos e imobiliária turística nas diferentes ilhas para estrangeiros aposentados, emigrantes e nómadas digitais.

Concomitantemente, essas condições iriam servir a população. Também para além dos investimentos a serem realizados ter-se-ia que promover uma formação a todos os níveis dos cuidados de saúde de qualidade e com certificação europeia para os garantir, formação essa que serviria a muitos jovens tanto no país como numa eventual emigração para conseguirem empregos de qualidade e com alta procura. O facto de não se agir numa perspectiva estratégica e com acções encadeadas faz com que o impacto dos investimentos realizados fique aquém do prometido, ineficiências acumulem e a satisfação dos utentes seja deficiente. Depois também fica a questão de pagar os custos de saúde da população que tendem a tornar-se incomportáveis sem que se tenha uma economia à altura de os suportar.

A complexidade dos desafios que se colocam a Cabo Verde exige um nível de debate público aprofundado e fulcralmente uma capacidade de federar vontades para tornar as reflexões em realidade prática. Esse debate só é possível em democracia e só se consegue a mobilização da vontade para enfrentar os desafios se houver um sentido geral de pertença a uma comunidade político nacional, não obstante a diversidade de interesses e a pluralidade das opiniões. O que pode bloquear o debate plural e frustrar uma vontade geral é a polarização da sociedade a um ponto tal que ao tomar adversários políticos como inimigo ou antipatriotas e ao assegurar que as regras do jogo democrático não são aceites a todo o momento por todos, não permite que a nação se una.

Cabo Verde é uma sociedade de uma certa forma mais simples, porque sem clivagens étnicas, linguísticas ou religiosas significativas. Não deveriam existir razões para uma polarização social e política que pusesse em risco o sentido de pertença à nação que já data de mais de um século de existência. Apesar disso, nota-se sinais de um nível de polarização similar ao das democracias em crise que impede o diálogo frutífero e a construção de vontades para enfrentar os desafios existenciais. Viu-se o efeito disso durante a pandemia da covid-19 e nos anos seguintes de recuperação.

O país não saiu da gravíssima crise com o sentido apurado de solidariedade e uma maior consciência das suas vulnerabilidades como seria de esperar. Nem o país, nem os seus governantes e a sua classe política mostram-se dispostos a assumir a nova atitude que a realidade actual impõe devido às tensões geopolíticas, às transformações em curso no mundo. Permite-se que a polarização social e política se acentue com recurso a políticas identitárias e a ressentimentos imaginados, sapando as energias da nação e quebrando a sua vontade. Não espanta que no carnaval já se preconiza um modo de estar “de tud manera, ê ba devagar”. Há que inflectir caminho com solidariedade e responsabilidade.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1183 de 31 de Julho de 2024.