Na semana passada o Banco Mundial emitiu um alerta aos países de rendimento médio dizendo-lhes que estão numa corrida contra o tempo. Numa publicação intitulada “Armadilha dos países de rendimento médio” (Middle income trap) o BM deixa claro que os próximos tempos não são os melhores para se fazer a transição de país de rendimento médio-baixo para o grupo dos países de rendimento médio-alto e muito menos para os de rendimento alto. Desde 1990 só trinta e quatro países conseguiram escapar à armadilha e elevar-se para o grupo de rendimento alto. São actualmente 108 os países de rendimento médio a tentar e a situação internacional é muito pior.
De facto, segunda a publicação do BM, os países de rendimento médio vêem-se actualmente com espaço de manobra mais apertado. Além de já enfrentarem problemas de aumento da dívida pública e do envelhecimento da sua população com os custos inerentes estão ainda sobrecarregados com a pressão para acelerar a transição energética e com os entraves nas relações comerciais devido ao crescente proteccionismo das economias mais avançadas. Se anteriormente conseguir fazer a transição para país desenvolvido era difícil, agora os obstáculos são muito maiores.
De acordo com o documento referido, os países para ascenderam no seu nível de rendimento têm que com sucesso passar de uma estratégia inicial de crescimento baseada no investimento (1i) enquanto países de rendimento baixo para uma outra de investimento e infusão de tecnologia (2i) adequada para países de rendimento médio e posteriormente para uma estratégia, à que se acrescenta inovação, de 3i para atingirem o grupo dos países desenvolvidos. Se transitar de país de rendimento baixo para médio é mais directo bastando mobilizar capital o mesmo já não acontece em subir ao estádio superior de desenvolvimento.
Não é à toa que há apenas 25 países de rendimento baixo, mas, em contrapartida, há 108 de rendimento médio, a maioria deles entalados numa espécie de armadilha em que não conseguem fazer o 2i, investimento e infusão de tecnologia, e contribuir para criar riqueza suficiente que os pode lançar para os níveis mais altos de rendimento. Aliás, segundo o BM, os países de rendimento médio devem passar por duas transições, uma em que para além de continuar a investir são bem-sucedidas com a infusão da tecnologia, ou seja, com a difusão no país de tecnologias modernas e processos de negócios vindos de fora. Outra, em que depois de completada a absorção tecnológica ficam criadas as condições para começar a acrescentar valor com inovações que podem encontrar mercado global e tornar o país mais competitivo e produtivo.
As dificuldades dos países de rendimento médio devem-se ao facto de nenhuma das duas transições ser fácil e, em consequência, mesmo que escapem de cair numa das armadilhas não há certeza que consigam ultrapassar a segunda. Também, como acrescenta o documento do BM, não é possível saltar etapas, fazer o leapfrogging. Tentar por exemplo investir em inovação sem passar pela infusão – com tudo o que em termos institucionais e de atitude acarreta de absorpção de tecnologia, de desenvolvimento de capacidades e de mobilização de talentos com reconhecimento do mérito e incentivos à iniciativa e à criatividade – não resulta. Deixa-se o país ficar num nível de crescimento que não lhe permite acompanhar e muito menos alcançar os mais avançados.
Os dramas vividos por esses países também se colocam a Cabo Verde enquanto país de rendimento médio-baixo. Guiando-se pelo exposto no documento do Banco Mundial, o país tem que se mostrar capaz de escapar às duas armadilhas. Infelizmente, os dados de crescimento em 2023 que foi de 5,1% do PIB, de acordo com o BCV, e as projecções do FMI/Banco Mundial para o resto da década à volta dos 5% poderão estar a indiciar que a armadilha já é real. A baixa da produtividade da economia e os resultados decrescentes dos investimentos públicos já são sinais disso designadamente no incentivo que deviam representar para investimentos privados.
Por outro lado, as medidas de política e a retórica do governo suportadas por enormes recursos que vêm sendo dirigidos para fazer da inovação um motor da economia parecem colidir com as constatações do BM. No documento alerta-se para o risco de tornar pior o clima de investimentos e atrasar o país em anos ou décadas como já aconteceu com vários países em particular na América Latina se a fase da infusão de tecnologia não for devidamente cimentada. E para isso, primeiro, a abertura a novas ideias e tecnologias tem que ser cultivada na sociedade e nas empresas. Também vontade e recursos para aumentar a capacidade de formação de técnicos, engenheiros e cientistas, a começar por bons liceus e escolas vocacionais, têm que ser procurados. E uma especial preocupação deve-se ter com as instituições que garantem livre expressão de ideias e propriedade intelectual e promovem a iniciativa empresarial.
Sem um planeamento adequado de todo um processo de modernização tecnológica pode-se chegar a uma situação em que não se sabe claramente quais os principais objectivos pretendidos. Percebe-se que iniciativas são tomadas, mas parecem silos quase fechados sobre si próprios criando ineficiências e com prestação deficiente de serviços. Outras pretendem diminuir a burocracia e a morosidade e aumentar a acessibilidade, mas nota-se que os serviços aos utentes e às empresas fica aquém do que é apregoado na inauguração de janelas e balcões únicos.
Aparentemente é a constatação dessa situação que levou à posse dada pelo primeiro-ministro a uma Equipa de Serviço Digital. O objectivo, segundo ele, é ampliar e diversificar os serviços online oferecidos de forma a que passem de cerca de 18 a 20% para próximo dos 100%. De passagem, reconhece que as múltiplas plataformas e portais existentes precisam ser integrados, eliminando redundâncias e custos desnecessários para os cidadãos e empresas. A questão que se coloca é por que isso levou tanto tempo para fazer e certamente implicou muito desperdício de dinheiro, tempo e oportunidades.
Há vinte anos que o país passou a dispor de banda larga e todo o processo de digitalização deveria ter sido conduzido para precisamente diminuir os enormes constrangimentos para as pessoas e para economia que um país com nove ilhas, população dispersa e uma cultura estatal burocrática e centralizadora representa. Países como a Estónia iniciaram a sua digitalização praticamente no mesmo tempo que Cabo Verde, mas souberam potenciar os desafios resultantes da sua condição de pequeno país para criar um serviço unificado e vender a sua experiência para o mundo. Aqui em Cabo Verde, duas décadas depois, “com várias plataformas e portais, redundâncias e custos desnecessários” quer-se fazer melhor trazendo a experiência do consulado em Lisboa.
Por aí fica aparentemente claro que a infusão de tecnologia que o Banco Mundial preconiza para que se faça a primeira transição não está completa. Também que investir na inovação quando ainda se está atrasado pode significar desperdício de recursos. É fundamental que se reflicta aprofundadamente sobre o processo de desenvolvimento para evitar armadilhas que podem atrasar o país ou impedi-lo de conseguir o nível de crescimento da economia que pode trazer prosperidade para todos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1184 de 7 de Agosto de 2024.
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