Passado o choque causado pela pandemia da covid-19, seja na violenta contracção da economia de 14,8% do PIB, seja na retoma que veio a seguir com taxas de crescimento do PIB de 7,1% em 2021 e 17,7% em 2022 e 5,1 em 2023, o país tende a normalizar-se aquém dos 7% desejados ou prometidos. O FMI no último Economic Outlook projecta taxas de crescimento anual até 2029 que não chegam aos 5%.
Entretanto, ainda persistem alguns efeitos da crise pandémica e de acontecimentos seguintes como a guerra na Ucrânia, os constrangimentos na cadeia de abastecimentos e alguns recuos na globalização que afectam em particular a população com menor poder de compra e com dificuldades em conseguir emprego.
É o caso da inflação, da alta de preços dos combustíveis e de alimentos e da dívida pública acumulada. Acrescem ainda as medidas restritivas para se ter a taxa de inflação em linha com a da União Europeia e as exigências de consolidação orçamental para recuperar os equilíbrios macroeconómicos. O impacto imediato na economia não deixa de ser significativo apesar de contrabalançado pelo fluxo turístico que já ultrapassa os valores pré-pandémicos de 2019.
Juntam-se a isso as dificuldades manifestas em encontrar solução para os problemas dos transportes, apesar de tentativas múltiplas. Minam a confiança na capacidade de resolver problemas não só nesse sector como noutros também vitais como a segurança, educação e saúde. E é assim porque se nota que, em termos práticos, as sucessivas gestões do sector dos transportes têm quase sempre a mesma abordagem e propósitos não obstante os repetidos falhanços. Ontem o novo PCA da TACV situou-se no mesmo comprimento de onda ao dizer que “há um compromisso do Governo de termos uma ligação ainda este ano (...), a comunidade cabo-verdiana no Brasil e nos Estados Unidos da América podem estar cientes de que vamos ter ligação ponta a ponta”.
Curiosamente, a partir das declarações das forças da oposição e dos círculos na sociedade percebe-se que também a vontade geral é ir pelos mesmos caminhos, mas esperar resultados diferentes. Claro que com uma postura típica de Lampedusa “mudar para que tudo continue como está” não há confiança que aguente. Só se aumenta o stock de cinismo em relação às políticas públicas com consequências negativas para a competitividade e produtividade do país.
Num outro registo, há dias, o ministro da Administração Interna pôs em cerca de 33 mil o número de balas apreendidas pela polícia nos portos e aeroportos do país nos últimos seis anos. Ficou-se sem saber que percentagem da totalidade das balas entradas corresponderia esse número de balas. Também ficou-se sem saber qual é a dimensão do mercado de munições no país e porque é atractivo para os remetentes de pequenas encomendas. E ainda se o mercado está a crescer, ou não, e se isso é devido a maior quantidade de armas artesanais em circulação ou a uma maior procura de balas. Sem respostas para essas questões, fica-se aparentemente pela posição mais conveniente de colocar mais scanners, mas o problema de fundo da insegurança continua a pairar sobre todos.
Na educação parece que todos já finalmente despertaram para o problema da qualidade. A realidade é que, depois de tanto tempo a ignorá-lo, dificilmente se vai conseguir mobilizar a sociedade, as famílias e a própria máquina estatal para a promover. Não ajuda que os critérios de mérito de há muito que foram secundarizados e que o gosto pelo conhecimento, o brio profissional e o espírito crítico tenham sido desincentivados a favor de quem tem mais lata, faz carreira com base em intrigas, autopromoção e favores e opta pelo conformismo para ser aceite e singrar.
O protagonismo sindical recente dos professores independentemente do eventual mérito das suas propostas dificilmente significará algum foco na qualidade do ensino. A disrupção das aulas que vem acompanhando essa luta, que provavelmente será longa considerando os custos envolvidos e a intransigência das partes, não será propícia a que se crie o ambiente que poderá fazer da escola, mais do que um instrumento de mobilidade social, um centro de conhecimento onde a curiosidade e a imaginação serão estimuladas e a perseverança na procura da verdade será cultivada.
Na saúde, debate-se com vários problemas um sector que devia ter sido visto como estratégico por entre outras razões pelo facto de: primeiro, o país ser arquipelágico, pequena população e perfil demográfico que aponta para custos crescentes dos cuidados de saúde; e segundo, ter o turismo como motor da economia o que exige serviços de saúde de qualidade para a sua sustentabilidade, diversificação e expansão. Uma aposta compreensiva na saúde poderia criar as condições para o aumento e estabilidade do fluxo turístico ao longo do ano, para diversificar a oferta com exploração de nichos e imobiliária turística nas diferentes ilhas para estrangeiros aposentados, emigrantes e nómadas digitais.
Concomitantemente, essas condições iriam servir a população. Também para além dos investimentos a serem realizados ter-se-ia que promover uma formação a todos os níveis dos cuidados de saúde de qualidade e com certificação europeia para os garantir, formação essa que serviria a muitos jovens tanto no país como numa eventual emigração para conseguirem empregos de qualidade e com alta procura. O facto de não se agir numa perspectiva estratégica e com acções encadeadas faz com que o impacto dos investimentos realizados fique aquém do prometido, ineficiências acumulem e a satisfação dos utentes seja deficiente. Depois também fica a questão de pagar os custos de saúde da população que tendem a tornar-se incomportáveis sem que se tenha uma economia à altura de os suportar.
A complexidade dos desafios que se colocam a Cabo Verde exige um nível de debate público aprofundado e fulcralmente uma capacidade de federar vontades para tornar as reflexões em realidade prática. Esse debate só é possível em democracia e só se consegue a mobilização da vontade para enfrentar os desafios se houver um sentido geral de pertença a uma comunidade político nacional, não obstante a diversidade de interesses e a pluralidade das opiniões. O que pode bloquear o debate plural e frustrar uma vontade geral é a polarização da sociedade a um ponto tal que ao tomar adversários políticos como inimigo ou antipatriotas e ao assegurar que as regras do jogo democrático não são aceites a todo o momento por todos, não permite que a nação se una.
Cabo Verde é uma sociedade de uma certa forma mais simples, porque sem clivagens étnicas, linguísticas ou religiosas significativas. Não deveriam existir razões para uma polarização social e política que pusesse em risco o sentido de pertença à nação que já data de mais de um século de existência. Apesar disso, nota-se sinais de um nível de polarização similar ao das democracias em crise que impede o diálogo frutífero e a construção de vontades para enfrentar os desafios existenciais. Viu-se o efeito disso durante a pandemia da covid-19 e nos anos seguintes de recuperação.
O país não saiu da gravíssima crise com o sentido apurado de solidariedade e uma maior consciência das suas vulnerabilidades como seria de esperar. Nem o país, nem os seus governantes e a sua classe política mostram-se dispostos a assumir a nova atitude que a realidade actual impõe devido às tensões geopolíticas, às transformações em curso no mundo. Permite-se que a polarização social e política se acentue com recurso a políticas identitárias e a ressentimentos imaginados, sapando as energias da nação e quebrando a sua vontade. Não espanta que no carnaval já se preconiza um modo de estar “de tud manera, ê ba devagar”. Há que inflectir caminho com solidariedade e responsabilidade.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1183 de 31 de Julho de 2024.
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