As reacções de vários quadrantes da sociedade face à situação criada pela publicação do relatório da inspecção das finanças à presidência da república, seguida dias depois pela comunicação do presidente da república, põem dúvida qual deve ser o grau de compromisso com a verdade por todos aceite.
De facto, não se está a orientar pelos valores de honestidade, transparência e responsabilidade quando se reage a alinhar um rol de culpas dirigidas para todas as direcções com excepção daquela onde reside o poder de decisão sobre a matéria em causa. Agrava-se ainda mais quando a resposta seguinte é destacar a “atitude pedagógica” do Presidente da República da devolução, do dinheiro pago à primeira-dama, aos cofres do Estado, como fez o presidente do maior partido da oposição. Se a questão não fosse tão grave até podia justificar Agosto como o mês da “silly season”.
Com acusações a recaírem sobre todos, a imitar uma barragem de artilharia, corre-se o risco de não haver escrutínio adequado dos actos, das decisões e das omissões do PR por quem o pode fazer: o povo, perante o qual é responsável, e a sociedade, via os média, as redes sociais e os partidos políticos, que podia censurar a sua conduta. Ao recorrer às mesmas tácticas que têm condicionado o ambiente político, acaba-se por partidarizar em extremo o debate, por passar a mensagem que “todos” fazem o mesmo e por fazer acreditar que cada um tem a sua verdade. No processo, ou se induz apatia nas pessoas ou se promove cinismo gereralizado.
Em consequência, diminui-se a participação cívica e política dos cidadãos, os mecanismos de prestação de contas são enfraquecidos e abre-se caminho à arbitrariedade e a discricionariedade. A própria política é prejudicada porque fracturas ideológicas e lealdades históricas não permitem que se consolide uma base comum de valores e uma disponibilidade para aceitação dos processos e procedimentos democráticos em todas as situações. A estabilidade da democracia é enfraquecida quando, da parte do árbitro e moderador do sistema, há relutância em prestar contas e forças partidárias passam uma imagem de “colagem” política.
De facto, o cargo de presidente da república é suprapartidário e no sistema constitucional só é possível uma responsabilização difusa do PR porquanto não presta contas ao parlamento e não pode por esse órgão de soberania ser censurado ou destituído. Mesmo em caso de crimes a acção penal terá que ser requerida pela assembleia nacional sob proposta de pelo menos 25 deputados e depois de votada por mais de dois terços dos deputados em efectividade de funções. Porque o PR não responde perante outros órgãos de soberania, é fundamental para o exercício pleno das suas funções e das suas competências que a todo o tempo lhe seja reconhecido uma autoridade acima de quaisquer suspeitas.
Não deve haver dúvidas quanto ao seu engajamento com os princípios e valores constitucionais e com a defesa do interesse público e do bem comum e quanto ao não permitir ser capturado por agendas partidárias. Para manter claras as linhas de responsabilidade democrática, evitar tensões entre órgãos de soberania e diminuir ineficiências no sistema, também é essencial que a sua magistratura de influência não extravase numa magistratura de interferência. Infelizmente, os sinais não são os mais auspiciosos nesse sentido. As tensões entre o PR e governo nesta legislatura têm sido maiores e mais problemáticas do que as que eventualmente aconteceram nas outras legislaturas da II República.
A gestão da actual crise é ilustrativa desse facto. A caracterização que o PR fez do caso no seu comunicado de sexta-feira, 19, é que “tudo foi feito com transparência e no convencimento de que, no âmbito da lealdade e cooperação institucionais, o necessário e completo quadro legal seria produzido com celeridade”. Hoje é ponto assente que não havia base constitucional nem legal para isso. Mesmo assim considera que se está perante uma “uma nódoa na história do relacionamento”, provavelmente a afectar relações futuras com impacto no país quando se devia estar a dar a garantia de cumprir os procedimentos democráticos em todas as circunstâncias. E isso não é muito tranquilizador. Também seria importante que para além do reconhecimento das “falhas do lado da presidência da república” houvesse sinais concretos que “não voltará a ser assim”.
Realmente, não interessa ao país que acusações mútuas de falta de lealdade e cooperação institucionais definam as relações entre órgãos de soberania num país em que um dos seus maiores activos é a sua estabilidade política. Essencial também para essa estabilidade é que nenhuma força política se sinta tentado a colar-se ao presidente da república para avançar a sua agenda partidária, nem procure subtraí-lo ao escrutínio popular e da sociedade e à prestação de contas com discurso político polarizante da sociedade. É uma atitude que só mina a autoridade moral e política do PR com perda para todos.
Manter a comunidade política comprometida com a verdade dos factos num ambiente de pluralidade de opinião é fundamental para se baixar a crispação e tornar a política mais construtiva. Ter e consolidar essa base comum de aceitação das regras do jogo democrático e de assunção plena de responsabilidade por parte dos actores políticos é o maior contributo para a confiança nas instituições democráticas e para construção da vontade necessária para se ganhar o futuro. Para isso, cada um deve fazer a sua parte.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1187 de 28 de Agosto de 2024.
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