sábado, julho 19, 2025

Democracia e a não promoção da verdade

 Segundo a autora do livro “Democracia e Verdade: Uma Breve História”, Sophia Rosenfeld, a democracia insiste na ideia de que a verdade é simultaneamente importante e ninguém pode dizer definitivamente o que ela é”. Para a historiadora isso significa que há uma tensão intrínseca à democracia que não é passível de solução porque ninguém detém a verdade e é sempre possível debater na busca por uma representação mais próxima da realidade.

Da dinâmica gerada vem tudo o que permite a evolução de ideias e mudanças culturais, garantindo estabilidade e capacidade de adaptação aos novos tempos.

Complica-se tudo quando surgem forças que procuram resolver a tensão própria das democracias impondo a sua verdade, criando instabilidade e incapacidade de resposta adequada da sociedade no seu todo aos desafios circundantes por falta de espírito crítico e de cultura de debate. Assistiu-se a esse tipo de complicação nas celebrações do 50º aniversário da independência de Cabo Verde. Viu-se o presidente da república, conjuntamente com várias outras instituições do Estado, a homenagear os protagonistas e as suas opções no momento da independência, há 50 anos atrás. Ora, nos feriados nacionais celebram-se os interesses e valores partilhados da comunidade política que neste ano de 2025, como nos 35 anos anteriores, são completamente opostos aos dos primórdios da independência.

A França, por exemplo, celebra o seu dia nacional no dia da Tomada de Bastilha que foi a 14 de Julho de 1789. Ninguém espera que se celebre o regicídio, o período de terror ou o bonapartismo que se seguiram à movimentação popular. Da revolução francesa celebram-se hoje, nos 67 anos da V República, os princípios e valores da liberté, egalité, fraternité e da Declaração Universal do Homem e do Cidadão que são perenes e em que toda a república neles se revê. Nos Estados Unidos são homenageados os pais fundadores, hoje quase 250 anos depois da independência, porque foram eles que dotaram o país de uma Constituição democrática e liberal que fez do país uma superpotência e uma fonte de inspiração global para os povos desejosos de liberdade e democracia.

Nesse sentido, é um contra-senso, hoje na II República, homenagear como fundadores da república quem impôs ao país uma ditadura do partido único de tempo ilimitado que só soçobrou com a queda dos regimes de similar inspiração leninista no Leste da Europa e na União Soviética. Vai-se à frente com isso porque tem à sua disposição os recursos, os meios e as competências legais para agir, mas à custa de maior conflitualidade na sociedade, de maior pressão no sentido do conformismo e de menos espírito crítico. Não se pode é pretender que se esteja a promover a unidade nacional, a criar ambiente para consensos em relação ao futuro e a cimentar a confiança que permite reformas de fundo, essenciais para realmente se dar o salto em frente no país.

Parece que para certos sectores da sociedade os ganhos de curto prazo sobrepoem-se a tudo o resto. E neste momento a tendência é procurar ganhar com o tipo de polarização exacerbada da sociedade em que uma parte não ouve a outra e num jogo de soma zero só se ganha com a perda do outro. É a linha dos populistas modernos que se posicionam contra as elites, lançam a desconfiança contra o crescimento económico e refugiam-se em posicionamentos identitários para criar fracturas graves na sociedade, eliminando efectivamente o diálogo e a possibilidade de qualquer negociação ou compromisso.

Aqui em Cabo Verde percebe-se que a via encontrada para alargar as clivagens sociais e políticas foi de reviver a luta que nunca deixou de existir no país desde que às ilhas chegou o PAIGC, vindo da Guiné com o projecto de apoderar-se do poder em Cabo Verde. Conseguiu-se isso eliminando todos os adversários. Acabou por se instalar até ser desalojado do poder quinze anos mais tarde. Como sempre fazem os partidos com essa cultura política de quem se vê como instrumento da história, soube, de seguida, adaptar-se ao ambiente democrático, adoptar a linguagem adequada e a postura certa. Mesmo de regresso ao poder anos depois, por vias democráticas, não abandonou o essencial do legado dos tempos do partido único. Continua a defendê-lo cada vez mais explicitamente.

Ainda se vê no papel de demiurgo que tudo trouxe para o povo destas ilhas e reclama que o país lhe deve a libertação, o fim das fomes, a abertura política, a democracia e o progresso. Reivindicando a condição de partido africano da independência, continua a rever-se no papel de quem procura reafricanizar os espíritos. O instrumento mais recentemente criado tem sido o crioulo que se tornou o foco de uma luta de libertação tardia contra a língua portuguesa, não obstante os custos enormes dessa hostilidade para as novas gerações em termos de competência linguística, de sucesso escolar e da própria qualidade do sistema de ensino.

A isso deve-se acrescentar o sucesso conseguido em trazer a problemática da escravatura e a condição de escravo para o quotidiano do cabo-verdiano em que os modismos nos meios académicos das teorias crítica de raça ou do chamado wokismo ajudaram bastante. Também aqui não parece importar os custos dessas incursões no sentimento do cabo-verdiano que deixa de sentir uno na diversidade da sua vivência nas ilhas. Os custos acarretados são potencialmente de quebra na autoestima do cabo-verdiano e na relutância em se associar com outros e em, cada vez mais, se vitimizar.

E como o sucesso alimenta o sucesso, os ganhos recentes na guerra ideológica acelerada pelas questões de identidade confirmam a importância de se dominar na comunicação social, na cultura e fazer ressonância com modos de pensar e forma de estar em sectores-chave de influência académica e cultural. Daí que as comemorações, que juntavam o centenário de Cabral e os cinquenta da independência fossem demasiado apetitosas para serem passadas ao lado e demasiado difíceis de negar, para sectores ideologicamente hegemónicos na sociedade. O excesso do culto de personalidade, que já não se cinge unicamente pela idolatria de Cabral, mas que se espalha para quem se vê como a geração mais moral, não fica sem custos.

Entretanto, a sociedade entra por uma divisão e uma crispação reproduzindo fracturas antigas num tempo de conflito cultural e identitário que as favorecem em detrimento da unidade de propósito e de compromisso que precisa para enfrentar ameaças e aproveitar oportunidades. A satisfação pessoal que uns têm da visibilidade e aparente reconhecimento social, resultante do peso institucional e meios de quem os patrocina e oferece homenagens, tem contrapartida no descrédito dos mesmos e da função que exercem e no aumento do cinismo face a tanta hipocrisia.

E no finalmente esse reconhecimento não vai deixar de ser efémero porque suportado em alicerces frágeis e falaciosos que não resistem um debate aberto numa sociedade com espírito crítico e aderência aos factos. Também há que reconhecer que há certas ideias e práticas que há muito pertencem ao caixote de lixo da história. Sabem disso e por isso que se esforçam tanto por se camuflar com roupagem democrática para travar essa sua inexorável caminhada. Até lá os custos amontoam e são pagos por todos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1232 de 9 de Julho de 2025.

sexta-feira, julho 11, 2025

Celebrar o 5 de Julho com um olhar de esperança no futuro

 

Nas vésperas do feriado nacional de 5 de Julho que no corrente ano corresponde ao 50º aniversário da Independência percebe-se que as celebrações continuam subordinadas a uma narrativa única da história de Cabo Verde. É essencialmente a mesma narrativa que o PAIGC usou para exigir que só podia haver independência sob a sua direcção e que no pós 5 de Julho serviu para legitimar a instauração da ditadura do partido único que iria manter-se nos quinze seguintes. A repeti-la, como mais ou menos nuances, e, na generalidade dos casos, a validá-la, tem sido o resultado do desfilar de memórias ao longo das últimas semanas em eventos, reportagens e entrevistas, com particular destaque para as recordações “heróicas” dos antigos dirigentes do regime.

Em qualquer outro sítio seria algo bizarro encontrar, em plena democracia, antigos dirigentes de regimes autocráticos a dominar o discurso político nas celebrações dos dias nacionais. O choque de valores seria gritante. Em Cabo Verde, porém, não é assim e, como que imposta por uma vontade férrea, a narrativa do regime de partido único sobreviveu as cinco décadas e continua a permear as instituições do Estado, o sistema de ensino e a comunicação social. É algo que até parece a realização do sonho de Gramsci da hegemonia ideológica que permite “liderar antes de conquistar o poder, de liderar a exercer o poder e de continuar a liderar depois de perder o poder". E quando perde, é só uma questão de tempo para regressar ao poder.

Nestes dias de comemorações do 50º aniversário, exemplos de bizarria abundam. Nesta segunda/feira, dia 30 de Junho, a Comissão Nacional de Eleições (CNE) organizou uma “singela homenagem aos protagonistas do processo eleitoral de 1975 que culminou na eleição dos deputados da Assembleia Nacional Constituinte”. Não é de fácil compreensão quais as razões por que uma CNE com funções de administração do processo eleitoral numa democracia e competência para assegurar eleições livres, plurais e justas se disponibiliza para homenagear um processo eleitoral organizado seis meses depois dos acontecimentos de Dezembro de 1974: a tomada das rádios privadas, a proibição de outros partidos políticos e a prisão de setenta cabo-verdianos, considerados inimigos do PAIGC. Umas eleições acordadas depois desses acontecimentos no chamado Acordo de Lisboa de 19 de Dezembro de1974 que, segundo o então ministro português Almeida Santos, em entrevista ao jornal Público, seriam umas consultas populares em que “você, ( o PAIGC) ganham por 90 por cento e nós salvamos a face".

Ou seja, não se vê por que vir referenciar umas eleições com resultados previamente conhecidos – na realidade o PAIGC teve 92% - porque não havia adversários e a população estava a ser intimidada, Segundo a investigadora portuguesa Sandra Pires, uma nova missão que foi dada às forças armadas portuguesas (MFA) nesse período era ajudar o PAIGC a “bater definitivamente as forças conservadoras que ainda influenciam bastante certas camadas da população”. Também como homenagear uma Assembleia Nacional Constituinte eleita nesses termos que falhou até em cumprir com as funções que a lei eleitoral de Abril de 1975, artigo 2º, lhe estabeleceu de, em noventa dias, dotar Cabo Verde de uma Constituição. Depois de proclamar a independência, transformou-se numa outra entidade, uma Assembleia Nacional Popular que, através de uma Lei de Organização Política do Estado (LOPE), imediatamente transferiu todo o poder ao PAIGC que foi consagrado força dirigente da sociedade e do Estado.

Aliás, mesmo a plenitude das prerrogativas de soberania e independência ficou posta em causa com a transferência de poder para o PAIGC que era um partido supranacional que já governava um outro país, a Guiné-Bissau, em relação à qual ficou na LOPE  estabelecido que deveria elaborar um projecto de associação dos dois Estados. O simbolismo da entrega de soberania ao PAIGC ficou claro quando a nova bandeira foi entregue para ser içada no momento da independência pelas mãos do secretário-geral do PAIGC e quando se proclamou que as forças armadas eram o braço armado do partido. Não há, pois, qualquer razão para homenagens a um processo e os seus principais protagonistas que serviram para instaurar um regime de ditadura depois dos quarenta de Salazar/ Caetano.

O 5 de Julho é o dia da independência, mas é também o dia da implantação da ditadura do partido único. A promessa de liberdade não foi cumprida, nem tão-pouco a promessa da soberania. Não é por acaso que muita gente em Cabo Verde agradece ao Nino Vieira pelo golpe de Estado de 14 de Novembro na Guiné-Bissau. Permitiu que a soberania voltasse completamente para Cabo Verde, ainda para que fosse só para o PAICV. Para o povo só voltaria, de facto, com o 13 de Janeiro de 1991 e a Constituição de 1992.

Na narrativa da ditadura do partido único, o povo deve ser eternamente grato ao PAIGC/CV. Fala-se da fome, da educação e da saúde para a sua auto gratificação. Esquecem da extraordinária ajuda internacional recebida e do uso questionável que lhe foi dado por falta de visão, por opções ideológicas que fizeram o país perder oportunidades e também porque, entre manter o poder ou desenvolver o país, invariavelmente optou pelo controlo das populações. Não é á toa que Cabo Verde chega ao fim dos quinze anos de partido único com a economia estagnada e um rendimento per capita de 900 dólares.

A desesperança das pessoas no fim desses anos contrastava com a euforia e a generosidade que se sentia nos primeiros anos, mesmo com as restrições de liberdade do regime. Tais sentimentos acabaram por se esfumar perante o cinismo prevalecente. Passou a ser corriqueiro as pessoas se negarem a participar justificando que “acabou a militância” e a se desresponsabilizarem em relação à comunidade, dizendo que “não são os culpados pela morte de Cabral". O crescimento só viria depois, a partir dos anos noventa, com a liberdade, a democracia e a abertura para o mundo. Actualmente,  o rendimento per capita ultrapassa os 5 mil dólares e poderia ter sido mais se falta de visão estratégica e de mais competência não tivesse toldado o caminho nos primeiros quinze anos. Cabo Verde não estaria hoje à frente apenas de São Tomé e Príncipe, entre os países insulares (SIDS).

Neste 5 Julho que se pode celebrar todas as promessas da independência, como sejam a autodeterminação para escolher livremente os governantes e fazer as leis do país, o exercício pleno dos direitos, a começar pela liberdade de expressão, e a busca da felicidade, é tempo de se libertar da narrativa que tem tolhido o passo dos cabo-verdianos. Não é, porém, tarefa fácil no mundo de hoje em que questões identitárias estão a ser exacerbadas. A narrativa ganha mais oxigénio porque os princípios e valores que ainda promove entre os quais culto de personalidade e vanguardismo fomentam sentimentos anti-sistema nos países democráticos que facilmente podem ser aproveitados pelo populismo moderno.

Cabo Verde não está livre dessa tentação e não deve correr esse risco. Celebrar o 5 de Julho todos os anos deve, sim, significar continuar a libertar o país das amarras e mitos do passado que comprovadamente ameaçaram deixar o país para trás. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1231 de 2 de Julho de 2025.

segunda-feira, julho 07, 2025

O Partido Único em Cabo Verde - Um Assalto à Esperança

         O Partido Único em Cabo Verde            

                                Um Assalto à Esperança         

                                                                                                                             

A memória do passado é fundamental para se compreender o presente e visionar o futuro. O livro O Partido Único em Cabo Verde – Um Assalto à Esperança procura contribuir para a preservação dessa memória. O livro foi escrito em 1992 e publicado na sua primeira edição, edição do autor, em Março 1993. 

 

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Penso que o meu livro ainda continua actual apesar de todos estes anos por duas razões principais: a primeira por que através de documentos designadamente livros, jornais, revistas, BOs e outras publicações devidamente datadas e contextualizadas procurou reproduzir o que então partido-estado e os seus dirigentes queriam fazer de Cabo Verde, as dificuldades que encontraram e as consequências da sua visão. Só foram citados documentos que podem ser acessíveis a qualquer pessoa para verificação.

 

A narrativa dos quinze anos procura ser o mais compreensivo e abrangente na sua abordagem revelando o impacto das políticas e medidas do regime em todos os aspectos da vida do cabo-verdiano seja político, económico, social e cultural. É a minha convicção que o essencial do está aí foi posteriormente validado. 

 

Notam-se ainda as marcas do regime nas instituições, na cultura política prevalecente, no baixo nível de capital social e de civismo. Justificam a crispação política existente, as dificuldades em adoptar a atitude certa para enfrentar e desenvolver no mundo de hoje, a crise de identidade e o conformismo do qual só se liberta pontualmente com chamamentos demagógicos e populistas para logo de seguida cair-se na frustração. 

 

Explicam por que foram efectivos as operações de resgate do passado, o branqueamento dos dirigentes do regime e o divisionismo no país criado por políticas identitárias comandadas pelo estado a partir do seu aparelho ideológico em todo o sistema de ensino, na comunicação social e na propaganda que através dos seus agentes produz e distribui. 


Uma segunda razão por que penso que o livro tem utilidade é que apesar dos vinte e cinco anos passados após a queda do regime do PAIGC/PAICV não se vêem muitos estudos sobre o que foram os anos de partido único. Os que existem preferem centrar-se sobre o momento da independência e a aura heróica que normalmente a acompanha e também o momento da abertura política de 1990 e a suposta generosidade e/ou sabedoria que os dirigentes repentinamente demonstraram. 

 

Para além disso tendem a suportar-se em boa parte nas interpretações que hoje os antigos dirigentes fazem dos seus actos passados e não o que disseram e fizeram quando exerciam o poder. Omisso fica realmente tudo o que se passou entre estes dois momentos e as reais motivações por detrás das políticas do regime. É essa omissão que também é um mutismo e uma amnésia cultivada que o meu livro procura suprir.

 

A questão da memória colectiva e memória história é de suma importância para qualquer sociedade. Como já celebremente tinha dito George SANTYANA quem não conhece a s sua história fica condenado a cometer os mesmos erros. São sempre graves as consequências de manipulação da memória colectiva de um povo mas é o que se faz em cabo verde desde que uma força política, o PAIGC,  surgiu nestas ilhas a reivindicar que nações são forjadas na luta pela independência e que o seu dirigente máximo é fundador da nacionalidade. 

 

Para se impor tinha que fazer esquecer que a experiência humana nestas ilhas de Cabo Verde tem mais cinco séculos de existência e que a a identidade cabo-verdiano que emergiu ao longo dos séculos dentro do império português já era conhecida muito antes da independência nacional. Em substituição dessas memórias outras, por exemplo de luta libertação, que as pessoas não têm experiência directa deviam ser implantadas e outras identidades impostas. Desestruturar a memória torna-se num objectivo claro de política. 

 

Forçam-se as pessoas a acreditar que verdade ou facto é o que é conveniente dizer ou aceitar. Na luta interminável que assim começa não há naturalmente liberdade intelectual que permita preencher os vazios, incoerências e fantasias na memória colectiva. Compreende-se assim o deserto da literatura sobre o regime de partido único. Contribuir para restauração completa e total da memória do povo caboverdiano é que me motivou a escrever este livro.

 

Uma 2ª edição foi publicada pela Editora Pedro Cardoso em Fevereiro de 2017.