sexta-feira, outubro 17, 2025

Fortalecer a sociedade e ajustar o país aos desafios actuais

 

Actualmente ninguém tem dúvida que os ventos da história não estão a soprar a favor do progresso geral como até recentemente se acreditava. Desde a segunda guerra mundial e da ordem económica liberal, que foi então criada, e particularmente depois da guerra fria e da derrocada da utopia comunista, instalou-se um optimismo em relação ao futuro da humanidade que agora dá sinais de soçobrar. Suportado sobre os princípios da dignidade humana e do respeito pelos direitos fundamentais e pelo primado da lei, as portas pareciam ter sido abertas para o crescimento económico e prosperidade geral que a globalização e o multilateralismo colocariam ao alcance de todos. Infelizmente, o mundo mudou, a ordem existente cede a olhos vistos face à emergência de um mundo multipolar marcado por conflitos geopolíticos e relações transacionais, criando na sua esteira incertezas várias que já não permitem que se espere sempre “mais e melhor”.

Para o sociólogo alemão Andreas Reckwitz os tempos de hoje trouxeram de volta a sensação de perda. Para trás vão ficando expectativas de elevação dos padrões de vida e de expansão da autorrealização. No seu livro “O fim das ilusões” escreve o autor que com as incertezas não há garantia que as perdas sejam episódios transitórios e que até podem ser irreversíveis. E é essa percepção que torna um número crescente de pessoas nas democracias sensíveis ao populismo que quer regressar aos tempos áureos do passado ou que apela ao resgate do poder das mãos da elite. Adverte, entretanto, que o populismo canaliza a raiva sobre o que desapareceu, mas fornece apenas ilusões de recuperação.

Perante o panorama mundial a desenhar-se cujos contornos a vários níveis ainda não se pode fixar, sabe-se, porém, que irá alterar cadeias de valor e de abastecimento mundial com impacto em particular nos países mais frágeis. Também irá diminuir a importância das organizações multilaterais limitando o acesso a investimentos cruciais para o desenvolvimento e cristalizar novas relações de dependência e subordinação à volta dos eixos do mundo multipolar emergente. Provavelmente solavancos políticos e socio-económicos far-se-ão sentir em vários países à medida que vão-se adaptando às novas circunstâncias.

Muitos ainda ficarão vulneráveis às alterações climáticas cuja mitigação dos seus efeitos irá sofrer com a falta de coordenação global e de engajamento das maiores potências mundiais. Um outro factor disruptivo de grande alcance será o impacto da inteligência artificial (IA) na economia. Pelos enormes investimentos dirigidos para o sector e pelo comportamento das bolsas de valores em todo o mundo vê-se que expectativa é de aumentos rápidos de produtividade para quem dominar a tecnologia. Algo que certamente irá agravar ainda mais a desigualdade dentro dos Estados e entre os Estados. Também, ao levar eventualmente a mais desemprego e a menos rendimento poderá aprofundar o sentimento nas pessoas que o contrato social da democracia de justa distribuição da riqueza nacional não está a ser cumprido. O aumento das desigualdades não deixará de aumentar a pressão migratória global nem de, no interior dos países, afectar negativamente as minorias, em particular as imigradas.

Para Andreas Reckwitz, os desafios da nova situação vão exigir três Rs: Resiliência, Reavaliação e Redistribuição. Pela resiliência quer-se fortalecer as sociedades (saúde, segurança, instituições da democracia liberal, para que sejam menos vulneráveis a eventos negativos. Pela reavalização quer-se procurar, com espírito inovador, conhecimento e iniciativa, transformar em possibilidade de fazer diferente ou em vantagem o que se perdeu, ou se foi forçado a deixar para trás, por causa de mudanças tecnológicas, climáticas ou mesmo de costumes. Pela redistribuição quer-se mostrar a preocupação em garantir que ninguém ou grupo social fique mais prejudicado quando há perdas, nem que deixe de beneficiar dos ganhos obtidos com o melhor desempenho nas novas circunstâncias.

O problema é como encarar esses desafios quando ainda se vive com a mentalidade de um mundo criado há oitenta anos, mas que está a tornar-se irreconhecível à medida que os dias passam. Os partidos tradicionais querem continuar a fazer o mais do mesmo extrapolando nas promessas de “mais e melhor” sem a devida atenção pelas dificuldades crescentes em as cumprir. As pessoas querem tudo e agora num mundo de conectividade até pouco tempo inimaginável, em que as expectativas aumentaram extraordinariamente, não parece haver limite para o que é reivindicado. As forças políticas emergentes de carácter populista, alimentando-se das frustrações, desilusões e ressentimento que o choque das promessas e das expectativas com a realidade, focam-se na descredibilização das instituições, nos ataques aos políticos e à política e no bloqueio do diálogo democrático.

Na política actualmente transformada em entretenimento, com insultos gratuitos aos adversários políticos, com bullying, com actos extravagantes e com acusações de corrupção, há cada vez menos diálogo e mais actos performativos dos políticos. O impulso maior para isso vem da política populista, mas conta também com muita ajuda dos partidos tradicionais e seus políticos e ainda de outros políticos considerados apartidários ou independentes. No espectáculo que é montado, todos querem ser protagonistas e aparecer. Fala-se muito na necessidade de diálogo, mas muito pouco em cumprir as regras do jogo democrático. A cacofonia que se cria no espaço público não contribui para se perceber que há uma ordem democrática e que não há vazio na autoridade do Estado. Gratuitamente mina-se a confiança e se reforça a atracção do populismo que se revê no culto do chefe.

Há, pois, que ultrapassar a actual situação para que o país possa debruçar sobre os problemas complexos que se colocam no mundo e adaptar-se com os três R de Reickwitz: resiliência, reavaliação e redistribuição para enfrentar os desafios de vária natureza que certamente encontrará à frente. A vitalidade do regime democrático que provém do exercício da liberdade num quadro legal igualmente respeitado e aceite por todos já provou que estará à altura. Afinal, foi com a democracia que o desenvolvimento realmente despontou. Não é de se cair em tentações populistas autocráticas.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1245 de 08 de Outubro de 2025. 

sexta-feira, outubro 10, 2025

Considerar cargos caducados desrespeita a responsabilidade republicana dos seus titulares

 

A última sessão legislativa da actual legislatura inicia-se hoje 1 de Outubro sem que se vislumbre no horizonte próximo a resolução da situação dos órgãos externos ao parlamento. Eleitos em Abril de 2015 já ultrapassaram em mais de quatro anos os órgãos com mandatos de seis anos (Comissão Nacional de Eleições, Comissão de Protecção de Dados e a Autoridade Reguladora para a Comunicação Social) e em um ano o Tribunal Constitucional no seu mandato de nove anos. O presidente da república numa comunicação recente ao país referiu-se à situação dizendo que uma das das consequências mais graves da falta de diálogo é a caducidade generalizada dos mandatos dos órgãos externos ao Parlamento. Da frase do PR, fica-se com a impressão que na origem do problema estaria a falta de diálogo e que o resultado dele persistir seria a caducidade, ou perda de validade dos mandatos.

Há aí duas questões que podem imediatamente colocar-se: primeiro, para a eleição dos órgãos externos à Assembleia Nacional são imprescindíveis votos dos dois maiores partidos para perfazer os dois terços dos votos exigidos pela Constituição. Nestas circunstâncias, a atitude das partes pode ser dialogar até chegar a acordo, tendo em vista o bem maior de dotar o país de órgãos constitucionais importantes para a regulação do jogo democrático, ou obstaculizar para conseguir ganhos políticos partidários de curto prazo, mesmo à custa do desprestígio do parlamento e dos deputados e do descrédito da democracia. Um olhar retrospectivo das eleições dos órgãos externos pode facilmente verificar que neste século até 2016 chegava-se a acordo para as realizar, como aconteceu em 2001, 2008, 2011, 2014 e 2015.

A partir daí parece que os problemas se amontoaram, apontando para a obstaculização do processo. Só em 2020, três anos depois do fim do mandato, se conseguiu eleger um novo Provedor da Justiça. Em 2023, quase 8 anos depois, foram eleitos novos membros para os conselhos superiores dos órgãos do poder judicial. A particularidade de, no caso dos conselhos, os partidos proporem dois membros cada um e, no caso do provedor, de a personalidade vir, por acordo tácito, de sectores próximos da oposição, terá propiciado, mesmo com grande atraso, as eleições. Para os outros órgãos isso tem sido praticamente impossível. Tudo indica que não se trata simplesmente de falta de diálogo, mas de algo mais que não prevaleceu nos 15 anos de governo do PAICV, mas que depois de 2016 tende a estabelecer-se como prática reiterada. E é evidente que, quando há a percepção de que as instituições não funcionam, a culpa recai fundamentalmente sobre quem está a governar, e não sobre quem escolhe ser força de bloqueio num acto que só pode ser realizado a “duas mãos”.

Uma segunda questão é a da caducidade dos mandatos, uma expressão que aparentemente o PR prefere para se referir ao termo ou ao expirar dos mandatos. Podem ter significado similar, mas num caso a enfase está na validade do mandato e no outro salienta a natureza temporária do mandato. Para o constitucionalista português Vital Moreira “por uma questão de responsabilidade republicana, quem aceita um cargo público de duração temporária, deve estar preparado para continuar no exercício de funções para além do termo do mandato, enquanto não for substituído”. Acrescenta ainda que “a prorogatio (prorrogação) de cargos públicos constitui um princípio constitucional geral e não apenas uma obrigação legal pontual, quando expressamente estabelecida”. Insistir que estão caducados os mandatos de cargos públicos que chegaram ao termo, mas ainda não foram substituídos os titulares, claramente não contribui para o normal funcionamento das instituições.

Curiosamente, considerando os insistentes apelos do PR, a problemática dos mandatos “caducados” não se coloca somente para os cargos eleitos pelo parlamento. Também abrange os cargos que resultam da nomeação do presidente da república sob proposta do governo como são os do tribunal de contas, do procurador-geral da república, do chefe de estado maior das forças armadas e os cargos de embaixador. A diferença aqui é que não se trata de interacção política entre dois partidos políticos com visões alternativas da governação e que submeteram ao escrutínio do povo, obrigando-se o ganhador e os vencidos nas eleições a chegar a acordo em certas matérias específicas. Trata-se de dois órgãos de soberania em que de um lado está o PR, que não governa, mas representa interna e externamente a república e vela pelo normal funcionamento das instituições, e do outro, fica o governo, que tem constitucionalmente a direcção da política interna e externa do país e não é responsável politicamente perante o presidente da república.

Com este entendimento não se pode esperar que o processo de nomeação seja enviesado a favor do PR, como pretendem alguns, e seja ele a escolher e a nomear quando, por imposição constitucional, deve nomear mas sob proposta do governo. De facto, se falhas futuramente vierem a ser apontadas aos nomeados para esses cargos no exercício das suas competências, não é responsabilizado o PR, mas sim o governo que, a qualquer momento pode ser questionado no parlamento e confrontado pelos órgãos de comunicação social e pelos cidadãos. Por isso, introduzir viés no processo de nomeação em contramão com o princípio da separação dos poderes só pode levar a tensões desnecessárias, beliscando o sentido da unidade da nação e do Estado, essencial para o normal funcionamento das instituições.

Agrava-se a situação não ultrapassando os bloqueios e ao mesmo tempo insistir em discursos públicos que os cargos actuais estão caducados enquanto o procurador-geral da república refere-se aos órgãos já com mandatos expirados para os quais seria bom que houvesse consenso. A verdade é que em quase 35 anos de democracia nunca se viu situação semelhante mesmo quando os primeiros-ministros e os presidentes da república originariamente vinham de quadrantes políticos diferentes. Provavelmente a variação na interpretação dos poderes presidenciais e na firmeza das opções políticas do governo de alguma forma equilibravam-se. Não é como aparentemente estará a acontecer agora com algum deslizar para os extremos com excesso de protagonismo de uma parte e falta de firmeza institucional de outra parte.

Fugindo ao expectável em matéria de separação dos poderes só pode resultar no que se constata hoje em que cargos ficam por ser nomeados com prejuízo evidente para o país e para a credibilidade do sistema democrático. Complica ainda mais o quadro actual o facto de que é ao governo que se atribuí toda a responsabilidade. Às tantas, com as eleições legislativas e presidenciais no próximo ano e o futuro do país em jogo, não é de estranhar que, apesar dos apelos insistentes para se ultrapassar a situação, não haja quem queira ganhar com a projecção da imagem de um país a deslizar para o caos.

Serenidade de todos é preciso e mais do que falar em diálogo e consensos o foco deve estar em cumprir e fazer cumprir as regras do jogo e seguir à risca os procedimentos democráticos. Sem essa aderência ao que é essencial, o discurso político rapidamente degenera por si mesmo, marcado pelo cinismo e a hipocrisia.

No processo, como se vem assistindo em vários países a uma velocidade estonteante, descredibiliza-se a democracia e abre-se o caminho ao populismo que promove medidas iliberais de supressão de direitos em nome do esforço para restaurar a ordem e distribuir rendimentos. Não é certamente o futuro que se quer. Impõe-se por isso ultrapassar este impasse, controlando egos, aprofundando o sentido de pertença e combatendo o estado permanente de insatisfação, com solidariedade para com os outros. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1244 de 01 de Outubro de 2025.

sexta-feira, outubro 03, 2025

Fazer valer os 33 anos da Constituição

 

Hoje, 25 de Setembro, completam-se 33 anos da Constituição. Trata-se de uma data primeira desta II República que ainda está longe de ser celebrada como devia pela comunidade política nacional. Na generalidade das democracias, o Dia da Constituição é comemorado e em vários países como Espanha, Noruega, Polónia e Lituânia é mesmo feriado nacional. E compreende-se que assim seja, considerando que a entrada em vigor da Constituição democrática marca o início de um regime que garante o direito de consentimento dos cidadãos na escolha dos governantes, os direitos fundamentais dos indivíduos, a separação dos poderes, a subordinação do Estado às leis e a independência dos tribunais. Um dia, pois, para reviver a alegria de ter deixado para trás regimes autoritários e totalitários de má memória e também para reflectir como conservar os valores preciosos da liberdade e da democracia.

Neste ano de 2025, em que globalmente há a percepção de que as democracias estão em crise e sujeitas a uma erosão muito forte das suas instituições, devia ser o momento para valorizar os princípios e valores da Constituição e não os enfraquecer com idolatria política e ideologias iliberais. Também devia servir para exigir dos titulares dos órgãos de soberania que exercessem na plenitude das suas competências e respeitassem a separação dos poderes e que concomitantemente assumissem as respectivas responsabilidades. De evitar seria culparem-se uns aos outros, procurando beneficiar-se eleitoralmente da instabilidade gerada ou induzida por esse tipo de tacitismo político. O jogo democrático só garante estabilidade e eficácia governativa se as suas regras e procedimentos forem aceites e respeitados por todos.

Apelos para a diminuição da crispação política e para não se regredir para um ambiente de violência política só têm sentido se forem acompanhados do esforço sincero, a vários níveis, para o reforço do edifício democrático. Contrariamente ao que alguns podem sugerir, não é a existência de partidos e de confrontos político-partidários que gera violência política na sociedade. A história mostra que regimes sem partidos ou de partido único é que são criados violentamente, eliminando ou exilando, à partida, os tidos como inimigos, e que sobrevivem com violência arbitrária, intimidando toda a gente. Por isso que a melhor via para combater a violência, a arbitrariedade e a discricionariedade é a adopção do constitucionalismo democrático que obriga o Estado a respeitar a lei e os direitos dos cidadãos, que impõe a separação dos poderes para ninguém se arvorar em ditador e que institui tribunais independentes para administrar a justiça.

Em sentido contrário, se se quer criar um ambiente de instabilidade, de caos e de violência o caminho a seguir é o de fragilizar as instituições, não respeitando as regras do jogo democrático, de minar a confiança cultivando a desesperança com denúncias incessantes, às vezes estapafúrdias, e de promover o extremismo com a polarização fracturante. As omnipresentes redes sociais prestam-se extraordinariamente a este processo pela amplificação da opinião e do ego dos utilizadores, pela tribalização a que ficam sujeitos devido à manipulação algorítmica das plataformas e pela possibilidade de, em grupo e online, se poder envergonhar, discriminar e cancelar pessoas e grupos.

A crise do constitucionalismo democrático que se verifica actualmente com maior visibilidade e dramatismo nos Estados Unidos, mas com fortes sinais na generalidade das democracias tem na sua base essa fragilização institucional, o enfraquecimento do tecido social e a tendência narcisista do individualismo exacerbado. É verdade que várias situações complicadas contribuíram para o crescimento da desesperança em vários sectores da população nas últimas décadas. Mas é a acção deliberada de certas forças políticas que provoca essa crise ao canalizar as frustrações, o ressentimento, o medo e a desesperança contra o edifício democrático.

Nas democracias sempre existiram forças com preferências por vias não liberais, mas não constituíam ameaças pela sua dimensão e coesão interna. O quadro mudou completamente na actual conjuntura: os apelos de sectores antisistémicos favoráveis a regimes iliberais e a ditaduras de elites tornaram-se frequentes, e as tentativas de pôr em causa a separação de poderes com a concentração do poder no executivo, a subordinação do legislativo e a descredibilização do poder judicial ganharam expressão com o exemplo de Trump na América. Felizmente que do Brasil veio a grande demonstração da democracia a pôr os travões a quem intenta contra ela, julgando e condenando o ex-presidente Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado.

Em Cabo Verde também a democracia corre riscos. O facto de não se celebrar condignamente o aniversário da Constituição é sinal de como o país, os seus órgãos de soberania, as suas instituições, as suas escolas, universidades e a sua comunicação social, se retraem na promoção da cultura constitucional. O contraste é enorme quando comparado com o entusiasmo e os recursos públicos dedicados às celebrações da “luta de libertação” e dos feitos e das personalidades do regime de partido único e às manifestações de idolatria de Cabral.

Inevitavelmente, essa tensão permanente com os princípios e valores da Constituição acaba por ter um efeito erosivo na própria democracia. A relação entre os partidos e a possibilidade de chegar a acordos são prejudicadas por atritos que deviam ser desnecessários se houvesse total consenso sobre a natureza do regime político estabelecido pela Constituição. A persistência nas instituições e na cultura política do país de tensão visível entre os dois regimes não deixa de ser uma porta entreaberta para tentações políticas iliberais. O apego “tribal” a posicionamentos ideológicos do passado assim alimentado pode servir para, designadamente, promover políticas limitativas de direitos, normalizar posturas políticas de colisão com o princípio da separação dos poderes e desafiar a lei para provar impunidade.

Já não tão distante das eleições legislativas é evidente para qualquer observador o esforço vindo de vários quadrantes para projectar a imagem de Cabo Verde como um país à beira do caos. É um facto que o país lida com problemas sérios, em particular no domínio dos transportes inter-ilhas e que a situação da energia na capital tem trazido transtornos significativos para a população. Mas como o próprio presidente da república reconhece, Cabo Verde não enfrenta nenhuma crise político-institucional. Essa constatação devia ser o ponto de partida para todos se calibrarem nos pronunciamentos e na acção política. A sinceridade nos apelos para a diminuição da violência política pode ser avaliada por aí.

Os problemas do país são complexos e no mundo da actualidade estão-se a operar mudanças estruturais que trazem incertezas e novos desafios. A última coisa que Cabo Verde precisa é saltar no desconhecido dos resultados eleitorais sem uma ponderação serena e madura das opções políticas dos diferentes partidos. Para assegurar que o futuro de Cabo Verde seja construído na Liberdade e na Democracia é fundamental impedir eventuais derivas autocráticas que ponham em causa os 33 anos de constitucionalismo democrático. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1243 de 24 de Setembro de 2025.

quinta-feira, setembro 25, 2025

Melhorar a qualidade do ensino, a prioridade das prioridades

 

Nesta segunda semana do mês de Setembro arrancou o ano lectivo de 2025/2026 com pronunciamentos muito focados na qualidade do ensino. O ministro da educação anunciou para o ano de 2026 o exercício PISA para avaliar como os alunos cabo-verdianos se comparam com os dos países desenvolvidos nas áreas de leitura, matemática e ciências. Com a mesma preocupação com a qualidade acrescentou que se vai avançar com o barómetro nacional das escolas para avaliar o desempenho das escolas nos diferentes concelhos e relembrou que a educação “constitui igualmente um compromisso colectivo”. Por sua vez, o presidente da república veio chamar à atenção para os desafios dos tempos modernos que impõem uma” arrojada aposta na sofisticação, na excelência e na eficiência”, de todo o sistema educativo.

Para um país com as características de Cabo Verde em termos territoriais, de população e de localização, a aposta forte na qualificação do seu capital humano a partir do momento em que se tornou independente devia ter sido a prioridade das prioridades. O facto de só neste ano se estar a criar condições para se avaliar a qualidade do ensino em termos comparados, internacionalmente e nos diferentes pontos do país, diz o quanto foi posta em segundo plano em relação aos outros objectivos, designadamente de massificação do ensino. Depois do que aconteceu com o ensino básico e secundário em que se descurou a qualidade, a mais recente demonstração dessa opção é o que se assistiu no ensino universitário. Em menos de dez anos já contava com cerca de uma dezena de universidades. É evidente que com tal proliferação de estabelecimentos num país de 550 mil habitantes não se vai ter a “sofisticação e a excelência” que desde de há muito os tempos modernos estavam a pedir.

O ministro da educação ao apelar para um compromisso colectivo com uma educação de qualidade está a mostrar a importância do envolvimento de todos ( sociedade, famílias, professores e alunos), para além da responsabilidade do Estado na disponibilização de meios como escolas, manuais e professores, em torná-la uma realidade. De facto, sem uma sociedade comprometida com o conhecimento e com a busca da verdade e empenhada no desenvolvimento da ciência e tecnologia não há investimento em meios físicos e humanos que resulte em qualidade do ensino.

Professores e alunos não vão interessar-se suficientemente se o ambiente é adverso à procura de excelência nos domínios do conhecimento e não é meritocrático porque as carreiras submetem-se a outros critérios que não os de excelência. A própria escola não consegue propiciar um ensino eficaz se a profissão de professor não goza de suficiente reconhecimento social e não transmite a autoridade que permite captar a atenção e o interesse do aluno e manter ordeira uma sala de aula. No fim do dia, as famílias acabam por se resignar com os diplomas que os filhos trazem na expectativa que o acesso ao emprego siga outras lógicas.

Por outro lado, o país no seu todo pode até vir destacar-se em número de alfabetizados, de pessoas com ensino básico e secundário completo e de licenciados e doutorados, mas terá insuficiências em termos de pensamento crítico não estando firmemente comprometido com o conhecimento e com a verdade. Pior ainda, se o livre pensamento for tolhido por narrativas ideológicas, tendencialmente exclusivas e conflituantes com os princípios constitucionais, impostas por órgãos estatais. E a verdade é que com deficiente capacidade de análise objectiva e de questionamento e fundamentação das ideias fica difícil promover na sociedade a criatividade e a inovação e uma cidadania crítica e participativa.

É interessante notar nas biografias de muitos professores no novo livro da doutora Adriana Carvalho sobre 31 personalidades da educação do século XX a extraordinária dedicação ao ensino, o respeito e a amizade dos alunos e o reconhecimento de que gozavam junto das pessoas. Mesmo pobre, analfabeta ou pouco escolarizada, a sociedade mostrava valorizar o conhecimento e os seus agentes. Em tal ambiente vários professores desdobraram-se em intervenções diversas de carácter cultural, literária, jornalística e a favor de causas cívicas, em particular nos anos anteriores à independência. Mesmo no quadro político autocrático do Estado Novo de Salazar pareciam agir como livres pensadores, criando revistas, escrevendo poesia, contos e romances, publicando artigos e participando em saraus e outros eventos culturais.

Quebrou-se esse comprometimento com o conhecimento quando com a independência e a ditadura do partido único se associou a ideologia à educação. Ao condicionar a iniciativa privada e ao fechar o país ao investimento directo estrangeiro e ao turismo, o regime mostrou que a massificação do ensino não tinha como principal objectivo o desenvolvimento do capital humano, na perspectiva do aproveitamento das oportunidades que o mundo oferecia. A prioridade era a construção do “homem novo” como suporte do regime num quadro do pensamento único e da unicidade do poder. A expansão para o ensino secundário só viria a verificar-se nos anos noventa, a acompanhar a abertura económica e a dinamização da indústria e dos serviços e com impacto directo na produtividade e competitividade do país.

Infelizmente, não obstante os avanços verificados na educação nos anos posteriores, a qualidade do ensino continuou a não ser a prioridade principal. Aparentemente a sociedade democrática do pós-13 de Janeiro não recuperou o comprometimento com o conhecimento de outrora nem adoptou completamente os critérios meritocráticos de valorização da excelência. Em consequência, não se resgatou a figura do professor, continuaram as tentativas de os instrumentalizar politicamente e das escolas, dos liceus e posteriormente das universidades não se se sentiu o impacto cultural, intelectual, cívico e político que seria de esperar numa democracia jovem e vibrante. Muito menos se assistiu à corrida para o top dos rankings na qualidade do ensino verificada em países como a Estónia, um pequeno país que só no início dos anos noventa se libertou dos comunistas.

Nos últimos anos vem-se assistindo a mais uma incursão ideológica nas escolas através da introdução do crioulo como língua do sistema de ensino. Mais uma vez, ao invés de se focar a atenção da sociedade no objectivo prioritário da melhoria da qualidade de ensino optou-se pela introdução de guerras culturais e identitárias. Para além das divisões provocadas, retomando os epítetos de lusotropicalistas ou macaronésios para os críticos do ALUPEC, criou-se um ambiente de hostilidade contra a língua portuguesa que só podia ser prejudicial para os alunos em geral, considerando que é a língua oficial do sistema de ensino. Para os promotores e activistas parecia não interessar os estragos que podiam causar.

Quando o governo cedeu às investidas e abriu experimentalmente um curso da língua cabo-verdiana com um manual dedicado, não se resistiu à tentação de apresentar um facto consumado de uma língua cabo-verdiana padronizada que talvez com pequenos ajustes poderia ser adoptada para todo o sistema de ensino. Revelou-se um passo longe demais que tornou anteriores correligionários em inimigos declarados da chamada língua pandialectal, agora considerada um subterfúgio contra a variedade linguística de Santiago. A pedido, o Ministério Público emitiu um parecer, que provavelmente terá relembrado que é do parlamento a competência para estabelecer a ortografia de línguas oficiais, e na sequência, ontem, dia 16 de Setembro, o ministério de educação suspendeu o manual e a disciplina de língua cabo-verdiana.

Infelizmente, não vai ser desta que toda a atenção vai se focar na melhoria da qualidade do ensino sem as distrações ideológicas de costume. O presidente da república na sua comunicação no início do ano lectivo já veio dizer que a língua cabo-verdiana é a “ferramenta que já mostrou ser tão necessária para o sucesso das outras disciplinas” e que o seu ensino é de “supra relevância para o sistema educativo e para o futuro do país”. Caso para concluir uma vez mais que, para certas causas, a luta continua, sem olhar os estragos feitos à vista de todos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1242 de 17 de Setembro de 2025.

quinta-feira, setembro 18, 2025

Riscos aumentam para a democracia

 

A 15 de Setembro celebra-se o Dia Internacional da Democracia, 28 anos depois da União Interparlamentar (UIP) ter adoptado a Declaração Universal da Democracia e 18 anos depois da efeméride internacional ter sido instituída pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Neste ano de 2025 a comemoração da data reveste-se de especial importância porque a democracia está claramente sitiada e, eventualmente, a bater a retirada.Vai longe a euforia dos fins dos anos oitenta e de grande parte da década de noventa em que a vitória da democracia e o reconhecimento universal dos direitos humanos pareciam imparáveis.

Em 2025 dois eventos internacionais a assinalar o dia com temas de “Um mundo virado de cabeça para baixo: democracia e inclusão numa era de insegurança” e “Democracia em risco: como podemos reavivá-la” dão conta do estado actual da democracia. Em boa parte deste século e particularmente depois da crise financeira de 2007/2008 ficou evidente que a democracia tinha entrando numa crise múltipla. Tornaram-se notórios os sinais de uma crise de representação, de uma crise dos partidos políticos e de uma crise de confiança nas instituições. Sinais de fracturas profundas nas sociedades democráticas começaram a manifestar-se no discurso anti-elites, no ressentimento derivado da percepção do agravamento das desigualdades sociais e no medo incutido pela crescente imigração, aparentemente sem controlo.

A par disso, a potenciar sentimentos de desesperança, a reforçar a solidão e a alimentar a ilusão de realidades alternativas, assistiu-se a emergência das plataformas digitais e das redes sociais que criaram a possibilidade de inundar toda a gente de informação sem qualquer tipo de intermediação e de validação, ao mesmo tempo que tornava as pessoas vulneráveis a manipulações diversas. Com os algoritmos construídos pelas plataformas para suportar o negócio e disponibilizar gratuitamente o acesso às redes sociais, bolhas mediáticas podiam ser criadas e exploradas por forças políticas emergentes, abrindo o caminho ao populismo, à contestação dos partidos e da democracia liberal e à erosão de confiança nas instituições. E é precisamente o que a partir da segunda década deste século tem vindo a acontecer, em simultâneo com a implosão dos partidos do centro democrático e o crescimento de forças extremistas, especialmente da extrema-direita.

Um outro desenvolvimento que tem contribuído para a erosão da democracia resulta do exacerbar do individualismo que, conjuntamente com o extremar das lutas identitárias e um processo continuo de vitimização, acaba por pôr em causa de várias formas (discriminação, cancelamento) os princípios liberais de liberdade e de igualdade. Uma outra consequência é a diluição do sentido de pertença que para além do impacto individual ao nível da saúde mental ainda pode contribuir para enfraquecer a fraternité/solidariedade essencial para a coesão do colectivo nacional. Daí é um passo para o surgimento, em reacção, do populismo nacionalista e anti-elites, por regra personificado por líderes narcisistas. Percebe-se a conexão no apelo a causas nostálgicas de passados gloriosos, no exercício autocrático de poder e na exigência de devoção que ajuda os seguidores a evitar o niilismo e os convida a ser parte de uma massa em crescendo e ganhadora.

A conjugação desses factores em vários países democráticos já levou a mudanças significativas no espectro político com a ascensão de forças mais à direita e a deslocação de políticas para posições iliberais. Nota-se a tendência para a compressão dos direitos fundamentais em particular da liberdade de expressão e de imprensa, para o enfraquecimento do princípio de separação dos poderes e para o recrudescer dos ataques ao poder judicial. Nos Estados Unidos, a mais velha das democracias e líder da ordem liberal e democrática que saiu da segunda guerra mundial, a afirmação, a uma velocidade estonteante, de uma presidência imperial desequilibrou o sistema de “checks and balance”.

A diminuição do papel do Congresso tem sido acompanhada da contestação sistemática do poder judicial nos limites de uma crise constitucional, por enquanto evitada pelo quase total alinhamento do supremo tribunal com as pretensões do presidente. Em simultâneo, procedeu-se à progressiva militarização da segurança pública, ao enfraquecimento do estado regulador, do estado administrativo e do estado social, a ataques às universidades e às instituições de saúde pública e a intimidação dos órgãos de comunicação social. Para com o presidente a relação aparentemente instituída é uma mistura de lisonja, demonstração de vassalagem e algum poder de encaixe para eventuais humilhações aplicável a todos, desde os gigantes do mundo dos negócios e das tecnologias até aos Chefes de Estado e de governo dos outros países. Não é à toa que muitos observadores consideram a deriva autocrática que a América vem protagonizando nos últimos nove meses como o acontecimento globalmente mais marcante desde a queda do comunismo e do fim do império soviético em 1989-90.

O exemplo que vem daí não deixará de ter efeito no resto do mundo e em particular nas democracias. Haverá tentativas de imitação, algumas de rejeição e outras ainda de acomodamento. A verdade é que a democracia globalmente ficará enfraquecida e já não se pode contar com uma vontade colectiva como a que deu origem à instituição do Dia Internacional da Democracia para incentivar a consolidação da democracia no mundo. E é uma grande perda para o progresso da humanidade porque, entre outras razões, como dizia o filósofo americanoReinhold Niebuhr, “a capacidade do homem para a justiça torna a democracia possível, mas a inclinação do homem para a injustiça torna a democracia necessária”.

É neste ambiente mundial de recessão, se não de regressão democrática, que Cabo Verde dentro de oito meses vai realizar eleições legislativas. Também aqui no país os efeitos da erosão democrática são claramente sentidos tanto na sociedade como nas instituições e nos partidos políticos. Conter e pelo menos não a agravar devia ser uma preocupação central dos dois partidos do arco da governação e também de toda a sociedade. Será difícil não cair na tentação de continuar a fazer o mais do mesmo e a manter-se o excesso de protagonismo dos políticos, a se servir das redes sociais para canalizar sem filtro ou contexto todas as indignações, a ter os média a amplificar as redes sociais e a ver reivindicações laborais e corporativas desembocar em greves e paralisações.

O embate eleitoral que se anuncia será dos mais complicados para o país, tanto pela actual conjuntura política internacional penosa para as democracias como pela situação em que se encontram os dois grandes partidos. O partido no governo estará a terminar dez anos de mandato com o desgaste normal de governação exacerbado por crises e choques externos e a ser responsabilizado por disfuncionalidades em sectores importantes como os transportes. E o facto de, na sequência da derrota nas autárquicas não se ter aberto a um debate interno e com a sociedade vai-lhe custar na apresentação de soluções inovadoras.

Quanto ao maior partido da oposição ainda sob o efeito da luta pela liderança interna, que configurou uma verdadeira operação de captura da organização, não há sinais de uma visão nova dos problemas do país. Para além do discurso populista que já se viu que pode ganhar eleições, mas não garante governação competente, não se vislumbra senão a conquista do poder como motivação principal. Infelizmente, para o país que precisa acelerar o seu crescimento e desenvolvimento, essas perspetivas não auguram maior dinâmica económica. Há que, no entanto, garantir democracia necessária para impedir que prevaleça a injustiça

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1241 de 10 de Setembro de 2025.

quinta-feira, setembro 11, 2025

Potenciar o sentimento profundo de pertença

 

Nos tempos actuais e nas democracias em geral, a esfera pública, a comunicação social e as redes sociais parecem estar na iminência de serem engolidas por uma onda de polarização e divisão, de serem minadas por frustrações e ressentimentos e de ficarem perdidas em denúncias e suspeições. Nessas circunstâncias ganha a maior importância as pontuais manifestações colectivas de solidariedade e esperança no futuro que eventualmente aconteçam. Têm o poder de contenção dos extremos e de incentivar a convergência nos objectivos comuns da colectividade. A reacção rápida e engajada da Nação e das suas comunidades emigradas à catástrofe de 11 de Agosto que abalou S.Vicente foi um sinal claro de que em Cabo Verde está bem vivo esse sentido do colectivo nacional na sua expressão de fraternidade e de crença no seu futuro.

Pode-se considerar isso como um indicador forte da resiliência face às adversidades. De facto, recentemente durante a pandemia da Covid-19 esse sentido de pertença tinha-se revelado com toda a sua pujança e outra vez face a um desastre maior voltou a manifestar-se de forma inequívoca. É de notar que aparentemente a pandemia, ao ser uma oportunidade para mostrar solidariedade, acabou por reforçar os laços entre o país e as suas comunidades no estrangeiro, avaliando pelo aumento progressivo das remessas dos emigrantes nos anos seguintes. Isso pode significar que o aumento do afecto e da confiança e da consciência da Nação já se apresenta como um significativo amortecedor a eventuais choques externos naturais ou outros que importa conservar e aprofundar.

Outrossim, o país pode e deve potenciá-lo para manter a sociedade mais coesa e mais motivada e focada no crescimento e no desenvolvimento particularmente quando, a exemplo de outras democracias, Cabo Verde está sujeita a forças políticas e sociais fracturantes e divisivas. Na falta de um respaldo suportado no cultivo de um sentido de pertença ao colectivo nacional, corre-se o risco de, ao se enfraquecerem as instituições e a ordem democrática, se abrir caminho para soluções autoritárias e restrições graves dos direitos fundamentais. Já está a acontecer noutros países democráticos, em alguns já com um grande avanço em direcção a regimes autoritários como são os casos dos Estados Unidos e da Hungria e outros como Itália, Polónia, França, Alemanha e Portugal, com equilíbrios precários, mas com tendência para o crescimento de forças iliberais,

Aliás, as forças extremistas crescem muitas vezes em reacção ao que consideram excessivo individualismo, políticas identitárias e ameaças do multiculturalismo. O ambiente actual, dominado pelas redes sociais que amplifica a expressão individual e o posicionamento identitário e promove cosmopolitismo, também permite com recurso a algoritmos sofisticados mobilizar paixões e explorar medos e ressentimentos com base no nacionalismo. Ou seja, as plataformas digitais ajudam a promover o narcisismo ao mesmo tempo que disponibilizam os meios para a criação de bolhas de opinião onde turbas furiosas, motivadas muitas vezes por sentimentos antisistémicos e antidemocráticos, cancelam ideias, criam fake news e forjam realidades alternativas. Já há quem vislumbre um mundo em que quem domina as plataformas de facto governa e deixa para a maioria da população o entretenimento e a satisfação disponibilizada pela realidade virtual.

Em Cabo Verde também as redes sociais estão disponíveis e fenómenos que fazem lembrar o que se passa em outros países já acontecem. Já se notam manifestações de narcisismo pessoal e político com efeito nas instituições. O protagonismo pessoal tende a sobrepor-se, enfraquecendo a função e a imagem institucional. Os checks and balance do sistema político são enfraquecidos com a aceleração da menorização do papel dos órgãos colegiais (parlamento, governo, câmaras municipais) e o crescente protagonismo do presidente da república, do primeiro-ministro, dos presidentes das câmaras municipais. Bolhas de opinião são criadas com a ajuda dos algoritmos das plataformas que não poucas vezes criam uma ilusão de influência que a realidade não corrobora. Sentimentos anti-sistémicos em conflito com o pluralismo e a democracia encontram expressão e nova vida nas políticas identitárias e na criação de fake news e de realidades alternativas.

Não há em Cabo Verde questões fracturantes como a imigração, o racismo e a xenofobia e conflitos religiosos que podiam ser explorados por forças políticas, a exemplo do que se passa na Europa com a extrema-direita. Não deixam, porém, de subsistir, em novas encarnações, as velhas noções cabralistas divisivas que punham em diferentes categorias população, povo e Partido com os seus melhores filhos. Justificam os epítetos pejorativos de vendedores da terra, de anti-patriotas e de luso-tropicalistas ou macaronésios aplicados aos adversários. Estão por trás da polémica à volta do monumento à Liberdade e Democracia nos 35 anos da II República, assim como, em 2018, foram contra a proposta da câmara municipal de relocalizar a estátua de Amílcar Cabral na rotunda do Homem de Pedra.

Ao manter viva uma ideologia e uma narrativa histórica datada, alimentam-se divisões à volta do crioulo e da identidade cabo-verdiana, e dá-se conforto a sentimentos anti-sistémicos na procura de justificação da ditadura do partido único. Uma última encarnação do fenómeno desse tipo de divisionismo vê-se na postura antielitista do actual presidente do PAICV, Francisco Carvalho. Assumindo-se como líder dos “abandonados” pelas elites que governaram o país durante décadas, conseguiu capturar a liderança desse partido não obstante a feroz resistência dos seus dirigentes históricos. Posicionando-se agora como candidato a primeiro-ministro, o mais provável é que continue na mesma linha populista e antielitista que nega o impacto do crescimento económico na população e contende que os benefícios do país vão apenas para uma minoria.

O tipo de confronto político marcado por divisões bloqueadoras de tipo de diálogo entre partes em praticamente todas as matérias em disputa obriga a um tacticismo político que limita o alcance das políticas e da governação. O resultado é que em Cabo Verde provavelmente mais do que em qualquer momento anterior nos últimos meses tem-se a impressão de se estar a viver em permanente sobressalto. Há acontecimentos que realmente causam alarme como foram as chuvas torrenciais e as enxurradas que resultaram em mortes e perdas materiais avultadas. Há outros menos usuais e de menor impacto com destaque para as greves sucessivas ou anúncios de greve e os problemas constantes nos transportes aéreos e marítimos que contribuem para alimentar um desassossego difuso na sociedade. Sem o respaldo de uma consciência colectiva solidária e confiante, o confronto político permanente, a actuação dos mídia, cada vez mais influenciada pelas redes sociais, e a conectividade permanente, garantida pelas plataformas digitais, só agravam a situação.

Urge reequilibrar o país para que esteja realmente na posição de, com diálogo aberto e democrático, encontrar solução para os seus problemas. Para isso é preciso potenciar o sentimento profundo de pertença que o cabo-verdiano canaliza como solidariedade e crença no futuro sempre que Cabo Verde enfrenta uma crise. Para mobilizar esse capital que está na base da resiliência do país há que, porém, ultrapassar definitivamente as divisões impostas pela história para voltar a ser a nação que se forjou no limite, sobrevivendo a fomes, ao isolamento e ao abandono. Uma nação que não se define como vítima de ninguém e sempre acreditou que nas ilhas ou em qualquer lugar para onde emigrou o futuro está ao alcance das suas mãos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1240 de 3 de Setembro de 2025.

sexta-feira, setembro 05, 2025

É preciso um olhar mais realista e pragmático

 

A propósito do imbróglio envolvendo a concessionária do serviço de transportes marítimos de passageiros e carga, CV Interilhas, e o Estado de Cabo Verde veio à baila a questão da “exclusividade” na operação desse serviço. Para uns, a concessão implica exclusividade para quem a obtém em concurso público. Para outros, suportando-se no artigo 91º da Constituição, não se pode, em nome da liberdade económica, impedir outros operadores no sector concessionado. A decisão do Tribunal Arbitral em condenar o Estado a pagamento de compensação indemnizatória, entre outras razões, por violação do contrato de concessão ao autorizar mais um operador na rota S.Vicente/Santo Antão serviu de gatilho para um assunto que parece ser objecto de muitos equívocos no país.

Aparentemente, reina em Cabo Verde a ideia de que todos os sectores de actividade estão abertos sem restrições para a iniciativa privada. Se há problema com os transportes aéreos domésticos, a solução é criar espaço para todos os operadores interessados. O mesmo devia acontecer com o transporte marítimo interilhas. No mesmo sentido, também em outros sectores não há que ter limites, como por exemplo nas rádios privadas e nas televisões privadas a transmitir em sinal aberto. É uma ideia que não tem respaldo na realidade considerando que em vários sectores existe controlo restritivo na entrada e no exercício da actividade económica como se vê, por exemplo, no caso dos bancos ou das farmácias em número e localização.

De facto, como estipula o artigo 91º da Constituição “a exploração das riquezas naturais e recursos económicos está subordinada ao interesse geral” e como tal há que assegurar a fiscalização e a regulação do mercado de forma a se criar as condições para ter consumidores satisfeitos e actividade económica rentável e sustentável. O mercado por si próprio não garante isso. Há o problema de escala, mas também da natureza da actividade em relação à qual imperfeições do mercado podem dificultar a sua realização por operadores privados ou falhas do mercado acabam por a inviabilizar. Esses e outros casos, designadamente de monopólio natural, muitas vezes exigem intervenção qualificada do Estado que deve assegurar bens e serviços públicos e que para isso tem que garantir sustentabilidade por via de subsídio e/ou concessão com exclusividade.

O normal num país arquipélago e de pequena população como Cabo Verde é que as empresas se debatam com sérios problemas de escala e que ninguém espere que o mercado seja a solução para tudo. Paradoxalmente essa realidade não parece pesar muito no enquadramento que se faz de vários problemas. Nem da parte do governo, das forças da oposição ou da sociedade civil se nota pensamento muito diferente, como se todos vivessem numa “bolha neoliberal”, no sentido vulgar do termo. O curioso é que no essencial essa crença se mantém mesmo com alternâncias na governação e com crescente insatisfação do público, designadamente no domínio dos transportes aéreos.

Um exemplo é o facto de, logo depois de, em Maio de 2017, se ter introduzido no mercado a Binter CV com 30% das acções detidas pelo Estado em troca da posição comercial da TACV nos voos domésticos, se ouvir dos governantes que o mercado estava aberto para outros operadores. Sem exclusividade efectiva e sem uma política tarifária adequada, não tardou muito para a Binter ir-se embora. Depois veio a Bestfly que também acabou por seguir o mesmo caminho, enquanto o discurso se mantinha e uma outra política mais realista para os transportes aéreos domésticos não era formulada e implementada.

Pelo sentimento que existe na sociedade em relação a essa matéria – que ainda parece acreditar numa solução pela via do mercado, não obstante as experiências recentes e as anteriores – não é de estranhar que, sem uma mudança de fundo na política de transportes, uma outra operadora venha sofrer das mesmas dificuldades. Uma política que assume que é preciso estabilizar a circulação entre as ilhas com segurança e frequência adequada e com tarifas ajustadas para facilitar a movimentação dos cabo-verdianos no território nacional. Algo que realmente contribua para um maior conhecimento do país, para unificar o mercado e desenvolver o turismo interno e para melhorar a distribuição de riqueza pelo todo nacional.

É evidente que esse desiderato, pelas suas implicações orçamentais e impacto na economia nacional, teria que merecer o consenso de todas as forças política, o que dificilmente acontecerá. É maior a tentação de aproveitar-se politicamente das dificuldades de quem está a governar em gerir os transportes aéreos do que em equacionar estrategicamente os problemas do sector numa outra perspectiva, ainda que mais vantajosa para o país. Prefere-se ficar pelos tacticismos eleitoralistas do que servir-se do exemplo dos outros arquipélagos da Macaronésia na resolução do problema para uma nova abordagem.

Os transportes marítimos que anteriormente não eram alvo da atenção dispensada aos transportes aéreos e não tinha o mesmo peso nas disputas políticas passou ao centro da atenção com a instituição do serviço público de carga e passageiro. Resultou de um processo posto em movimento num governo do PAICV e continuado no governo do MpD após 2016 que culminou numa concessão atribuída à CV Interilhas. Assim como os transportes aéreos sofriam dos mesmos problemas de escala. Claramente que a fracção da população do país que pode viajar horas seguidas pelo mar muitas vezes revolto que rodeia as ilhas não auguraria um volume de receitas apreciável e a possibilidade de ver esse número crescer estaria limitada pela pequenez da própria população. Por outro lado, a carga gerada pela estrutura produtiva do país, já de si limitada, é constrangida pela logística ainda deficiente de distribuição que a podia potenciar.

Instituído o serviço público é evidente que teria de ser subsidiado. E se aos subsídios não se acrescentasse a exclusividade de operações inevitavelmente a subvenção do Estado teria que aumentar em particular porque o mais lógico seria que os outros operadores autorizados convergissem nas rotas mais rentáveis. O clamor que se ouve hoje quanto aos valores a serem pagos não é acompanhado de um debate sobre o modelo adoptado para os transportes marítimos e sobre seus pressupostos económicos e financeiros que, considerando e escala das operações, seriam frágeis. Nega-se a exclusividade quando aparentemente tinha ficado implícita a partir do momento que, com aplauso geral, os armadores nacionais foram convidados a participar na concessionária e se estabeleceu que não seriam concedidas novas licenças para operar no sector.

Com todos estes elementos montados num determinado sentido e o discurso político focado num outro não duraria muito que tudo isso viesse a explodir num mar revolto de reivindicações. São indeminizações milionárias por parte da concessionária, sem que tenham sido feitos os investimentos previstos no caderno de encargos. São exigências de cumprimento por parte do público agora com as espectativas elevadas de horário e frequência de navios em todas as rotas. E são as manifestações de indignação nas redes sociais levadas ao paroxismo com ajuda algorítmica e movidas em boa parte por conveniência política. A verdade é que no fundo não se discute o modelo do serviço público e não se antevê o que poderá vir a acontecer se se efectivar o fim da concessão.

O governo, fiel ao seu discurso de sempre, procura anular o acórdão do Tribunal Arbitral sem uma saída obvia para o imbróglio. O país queda-se à espera de um olhar mais realista e pragmático para os seus problemas.  

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1239 de 27 de Agosto de 2025.

quinta-feira, agosto 28, 2025

Crises enfrentam-se com boa liderança e atitude certa

 

Cabo Verde vive com a trágica perda de vidas humanas, de recursos e de propriedade verificada a 11 de Agosto em S. Vicente, um desses momentos de calamidade que ficam na memória das gentes das ilhas. Ao arquipélago não é estranho desastres naturais. Secas periódicas durante séculos provocaram fomes terríveis e marcaram a fisionomia, a cultura e a atitude deste povo. De tempo em tempo o desastre não resulta das secas, mas de chuvas em excesso revelando os extremos do clima a que o país está sujeito devido à sua localização geográfica. Os últimos acontecimentos são um lembrete que a tendência é para piorar tanto na frequência como na intensidade dos extremos.

Em geral, face às dificuldades nunca faltou o espírito de entreajuda e de solidariedade, como mais uma vez se constata na actual tragédia, nem se instalou nos cabo-verdianos um espírito fatalista ou conformista. A atitude sempre foi de procurar uma via para não sucumbir ao destino de “morrer de sede ou morrer afogado”. Se antes a saída resumia-se praticamente à emigração ou para os afortunados a possibilidade de estudar e conseguir um lugar na administração pública, no Cabo Verde democrático e ligado ao mundo, oportunidades outras podem ser potenciadas. O mesmo afecto ao país e o inconformismo perante a adversidade que animava essas escolhas deve agora suportar uma nova atitude que, focada no crescimento e no desenvolvimento inclusivo do país, sirva de base para a construção da resiliência necessária a choques externos, tanto os naturais como os criados pela conjuntura económica e política.

Cabo Verde não é um país fácil, nem é tarefa fácil levar uma nação a crescer e a desenvolver-se de forma sustentável. Pela história económica das nações vê-se que, no geral, não interessa se o país é grande ou pequeno, populoso ou não, rico ou não em recursos. As dificuldades são maiores nos países insulares onde, a outros constrangimentos, somam-se vulnerabilidades várias, designadamente de conectividade e dimensão do mercado. Não é à toa que as ilhas são vistas à partida como inviáveis e na generalidade são sustentadas por ajuda internacional massiva ou por subsídios substanciais das “metrópoles” continentais. Regozijar com pretensa viabilidade ainda nos escalões inferiores de desenvolvimento não passa de puro ilusionismo que qualquer choque externo põe completamente a nu.

Dois factores destacam-se por fazer a diferença em matéria de crescimento económico: a liderança do país e a atitude da sociedade expressa num esforço dirigido para aumentar o capital social (confiança e cultura cívica) e no empenho em proporcionar um salto qualitativo ao capital humano. São dois factores que se distinguem ainda por resultarem fundamentalmente de vontade e de processos internos de cada país. De facto, é uma escolha colectiva se se deixa apanhar em malhas ideológicas, perder em nostalgia ou refugiar na vitimização. Ou pelo contrário, se se orienta pelos factos, pelo conhecimento e pelo realismo quando confrontado com os problemas do país.

Também é escolha própria exigir da liderança o comprometimento efectivo com o bem-público, níveis elevados de competência para o exercício de funções e visão que integre realisticamente objectivos de curto, médio e longo prazo. Optar no sentido oposto por procurar favores, acesso e facilidades na relação com lideranças políticas nos diferentes níveis inevitavelmente conduz à degradação governativa. Reforça-se a dependência, põe-se em causa a fiscalização e o controlo democráticos e premeia-se a incompetência. A capacidade do país de responder aos problemas em geral e aos choques externos em particular diminui e fica mais difícil projectar o futuro. A tendência é para se cair num estilo de governação marcada pela “gestão corrente” em que reais alternativas parecem não existir mesmo quando há alternâncias no governo.

Quando assim é o quotidiano ou o costumeiro só é interrompido brutalmente em caso de calamidade, como foi agora o caso das chuvas torrenciais em S.Vicente ou da pandemia da covid-19 em 2020. E aí as insuficiências de gestão, as faltas de investimento e as más práticas em geral vêm à tona. Abre-se uma crise e no horizonte das possibilidades para a ultrapassar também aparecem oportunidades para sair do status quo e inovar para o futuro. O problema é se, ao conseguir gerir a crise com recursos especialmente mobilizados, que acabam por servir de paliativos para suavizar os seus priores sintomas, se perde a motivação para enfrentar e resolver as questões de fundo.

Em meio de uma crise aberta tende a reinar a lógica do curto prazo. Da parte da situação quer-se apresentar soluções de impacto imediato e passar a imagem de indispensável na resolução de crises. Da parte da oposição não se quer perder a oportunidade de apontar culpados e de explorar emoções provocadas por acontecimentos trágicos para desencadear ondas de indignação dirigidas ás autoridades. Como é evidente, os problemas que levaram à crise ou a exacerbaram não são enfrentados. Aliás, muitos deles vêm de longe, já sobreviveram a vários ciclos eleitorais e até a outras crises. Com o fim da emergência, ganham mais um tempo de vida.

O tipo de confronto político que existe em Cabo Verde não favorece o diálogo seguido de compromissos em questões muitas vezes fundamentais. Alternâncias na governação não produzem necessariamente soluções diferentes e estáveis como se pode constatar, por exemplo, no domínio dos transportes aéreos e marítimos, na política de habitação, na segurança, na reforma da administração pública e na educação. Pior ainda, acontece ao nível do poder local em que a prática da governação na base da “campanha permanente” tende a reforçar o caciquismo dos presidentes de câmara municipal (CM) e a dissuadir qualquer possibilidade de fiscalização ou escrutínio dos actos da CM pelos munícipes.

É evidente que, sem um esforço para o desenvolvimento de uma cultura cívica ao nível local, o caminho fica aberto para o incumprimento das posturas municipais, para o uso abusivo do espaço público e para o desrespeito pelas normas de construção e de ocupação do terreno. Os custos são evidentes nas incivilidades que se normaliza, no lixo que se acumula, na fisionomia cinzenta das cidades sem casas pintadas e nas habitações inadequadas e perigosamente assentadas. Aumentam ainda com epidemias provocadas por mosquitos e, na época das chuvas, com as enxurradas que invadem casas, arrastam pertences das pessoas e põem vidas em perigo. Por isso, quando o inesperado acontece, os quase 200 mm de chuva em poucas horas, é a tragédia que se assistiu em S.Vicente.

Uma das lições a tirar da devastação provocada na ilha é a necessidade de dar uma maior atenção à gestão dos municípios de forma a impactar positivamente a segurança e qualidade de vida dos munícipes. Os custos de não fazer isso com a devida urgência tendem a subir em espiral com as alterações climáticas e o aumento da frequência de fenómenos extremos. Há que também considerar a importância de se inventariar a capacidade logística a nível de cada ilha e do país para responder a emergências em qualquer ponto do território.

Globalmente Cabo Verde estará em melhores condições de enfrentar situações de desastre se souber conter o desgaste das suas instituições democráticas sob pressão populista proveniente dos vários quadrantes. Se em tempos normais é de maior importância ter uma liderança de excelência, em tempos de crise pode ser uma questão de sobrevivência. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1238 de 20 de Agosto de 2025.

sábado, agosto 23, 2025

Fazer das crises oportunidade para construir confiança e enfrentar desafios futuros

 

Nas primeiras horas de madrugada de segunda-feira, 11 de Agosto, a ilha de S. Vicente foi submetida a um desses fenómenos climáticos extremos que sempre em Cabo Verde se rezou para não acontecer. Um sistema de baixa pressão em trânsito pelas ilhas de S. Nicolau, S. Vicente e Santo Antão fez cair sobre a ilha de toneladas de água ceifando vidas. Morreram oito pessoas entre as quais quatro crianças, e houve devastações que atingiram casas, infraestruturas e veículos. A consternação geral da população pelo sofrimento das famílias afectadas, pelos bens perdidos e pelas dificuldades de acesso a bens essenciais não deixou de ser acompanhada de um sentimento que calamidades semelhantes estão a tornar-se mais frequentes e que há que se preparar para as enfrentar.

A posição geográfica de Cabo Verde, a sua condição de arquipélago, a sua orografia e a sua origem vulcânica tornam o país altamente vulnerável a desastres naturais. Neles estão incluídos secas, inundações, tempestades tropicais, deslizamento de terras e queda de rochedos, mas também extremos de calor, erupções vulcânicas, erosão marinha das costas e outras consequências da elevação do nível das águas do mar. As alterações climáticas, que tendem a acelerar com a elevação da temperatura média do planeta nem sempre de forma linear, estão a aumentar a probabilidade de situações extremas do clima se manifestarem. A aconteceu agora em S. Vicente, mas que já se vinha notando em anos anteriores em outras ilhas. O choque do que nessa ilha se passou deve ser um impulso para uma nova atitude a ser assumida, tanto pelas pessoas como pelas autoridades locais e nacionais, para fazer face a situações que, de raras e improváveis, estão cada vez mais a se tornarem frequentes e perigosas.

O Banco Mundial num relatório sobre o clima e desenvolvimento em Cabo Verde, de Janeiro de 2025, chamou a atenção para o facto de, perante a realidade das vulnerabilidades do país, as mudanças climáticas poderem resultar em prejuízos económicos e sociais substanciais, em particular no sector turístico. Na falta de acção para as contrariar, outros sectores poderão ser afectados, como é o caso da agricultura e pecuária e também as pescas, levando num horizonte de 2050 ou de 2040 a taxas no PIB de 3,1 a 3,6 % inferiores ao que em condições normais seriam expectáveis. A par disso, ainda segundo esse relatório do BM, os prejuízos poderão estender-se às infraestruturas e aumentar a necessidade de investimentos de longo prazo, de importação e de financiamento externo. Também poderão afectar negativamente o rendimento familiar e a luta contra a pobreza.

São razões suficientes para evitar que, ainda com a memória fresca da pandemia da covid-19, se trate a calamidade que se assistiu em S. Vicente como um déjà vu e, em consequência, depois de passado o choque e ultrapassada a comoção geral, esquecer tudo e voltar à velha rotina de sempre. De facto, é de se optar efectivamente por mudar a atitude e não se comportar como das outras vezes em que o país foi confrontado com problemas únicos ou com efeitos de políticas particularmente insatisfatórias ou mesmo nefastas. Impõe-se que assim seja porque as incertezas são maiores, com as novas tensões geopolíticas, e os imprevistos acontecem de forma cada vez mais impactante, com consequências que não devem ser varridas para debaixo do tapete.

Infelizmente, a tendência que se nota actualmente nas democracias é de aumento das incertezas em relação a tudo, com a contribuição entusiástica de indivíduos e de grupos, servindo-se do megafone das redes sociais, propiciado pelas plataformas tecnológicas. Procura-se pôr em causa normas e instituições, multiplicar identidades e desconstruir elos que mantém intacto o tecido social. Há quem queira substituir o pluralismo e a tolerância pela polarização deliberada da sociedade. Conseguido isso, é caminho andado para os extremos se retroalimentarem, para inviabilizar o debate democrático e permitir o populismo afirmar-se com a sua visão alternativa da realidade.

Nessa senda acaba-se mesmo por contestar os avanços reais realizados nos diferentes sectores da vida em sociedade, lançando dúvidas quanto aos dados estatísticos. É um facto que sempre se pode discutir o método seguido na obtenção dos dados, mas daí a construir uma autêntica teoria de conspiração, na qual outras instituições idóneas do país, os parceiros de desenvolvimento e as organizações internacionais estariam a ser enganados, vai uma grande distância. Tudo isso para contestar o crescimento económico que, não obstante o que é dito, não deixa de ser real, mesmo não sendo universalmente desejável e não impactando da mesma forma todos os sectores da economia e segmentos populacionais. Aliás, é fundamental que seja reconhecida uma base comum, insatisfatória como eventualmente possa ser na perspetiva das diferentes opiniões e dos diversos interesses, para se batalhar com políticas assertivas por um crescimento robusto e um desenvolvimento mais justo, inclusivo e sustentável.

Um dos resultados de se insistir nesse caminho de minar a coesão básica das sociedades democráticas é a fragilização que daí resulta face a quaisquer imprevistos, sejam eles produtos de alterações climáticas ou de causas naturais. Imprevistos que também podem derivar das novas práticas no comércio internacional e da guerra das tarifas, ou de mudanças na relação entre os Estados, que já não é mais na base do respeito mútuo de décadas atrás. Em voga agora estão os critérios “transacionáveis”, de vassalagem ou de lisonja do mais poderoso.

O mundo em fluxo de hoje exige das democracias um esforço dirigido para manter uma base de confiança e solidariedade sob pena de se sujeitarem a todo o tipo de pressões sem possibilidade de uma estratégia e vontade própria para as enfrentar. Mesmo perante imprevistos com base em factores naturais, a melhor forma de prevenção não deixa basicamente de passar pela via da consolidação da confiança nas comunidades: Ou seja, a adesão às normas de construção que aumentam as chances de sobrevivência em caso de tremores de terra e erupções vulcânicas, o respeito pela regras urbanísticas para evitar inundações e também a cidadania activa, que responsabiliza os autarcas pela manutenção do melhor ambiente sanitário do município e que apoia o combate à corrupção local.

Deixar-se apanhar despreparado pelos imprevistos e incertezas pode significar ceder espaço ao populismo para se apresentar como instrumento do restabelecimento da ordem e segurança na sociedade, deixando na sombra a proposta escondida de autoritarismo. Liberdade e segurança devem poder reforçar-se mutuamente no quadro da ordem democrática. Outrossim, crises criadas por causas naturais ou outras podem constituir oportunidades para provar e reforçar a importância da ordem democrática no processo de as enfrentar e resolver com ganhos para o stock de confiança e solidariedade na sociedade. Para isso liderança local e nacional têm que se pôr à altura do desafio. Desta calamidade deve poder emergir um S.Vicente revitalizado e mais confiante e um país mais solidário.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1237 de 13 de Agosto de 2025.

sábado, agosto 16, 2025

Não continuar a cometer os mesmos erros

 

Parafraseando a célebre frase de Georges Santayana pode-se dizer que “quem não aprende com os erros do passado está condenado a repeti-los”. Em Cabo Verde é cada vez mais clara a resistência em lembrar o passado e em aprender com os erros cometidos. Primeiro, porque o passado está amarrado a narrativas ideológicas institucionalmente reproduzidas que dificultam o desenvolvimento do espírito crítico por tornar inconveniente qualquer sinal de inconformismo com o que é ensinado e comunicado. Segundo, porque a defesa de um certo passado é a trave-mestra de um grande sector de opinião com grande expressão no debate político do país, condicionando efectivamente o presente e qualquer futuro que se pretenda criar.

O último debate sobre o estado da Nação foi mais uma demonstração de como as forças políticas não conseguem encontrar terreno comum para, com algum consenso sobre o ponto de partida, poderem construtivamente divergir quanto ao rumo do país, identificar os entraves ao progresso nos diferentes sectores e apresentar propostas alternativas. Ignoram-se os dados e uma avaliação honesta dos mesmos para não se entenderem quanto ao crescimento do país, em como responder às novas solicitações ao sistema de saúde, às crescentes expectativas sobre a educação e à persistente percepção negativa de segurança das populações e de que forma encarar a problemática da emigração e das migrações internas. Prefere-se ficar pelo jogo de comparar, numa perspetiva mais acusatória do que de retirar ensinamentos, obras e políticas de diferentes governos e na disputa de promessas com carácter claramente eleitoralistas e sem grande preocupação pelos custos e pela oportunidade.

Entretanto, à volta ganha força o populismo que quer fazer acreditar que é diferente das elites em confronto no parlamento e que até agora se fizeram representar nos sucessivos governos. Ainda beneficia da incapacidade de diálogo democrático que na casa parlamentar demostram para promover as suas propostas bombásticas, reagindo a qualquer reparo quanto à razoabilidade das mesmas e a serem factíveis com acusações de jogo das cartas marcadas. Com a denúncia do suposto logro em que os mais pobres são os prejudicados, o populismo justifica o seu caracter antielites e a sua recusa ao diálogo. Por aí, vê-se a convergência de forças anti diálogo democrático precisamente quando o país mais precisa elevar o seu crescimento e desenvolvimento para um outro patamar.

No impasse que se cria, não é só o populismo que floresce, também fica crescentemente difícil identificar e reconhecer erros, falhas ou imperfeições na definição e execução de políticas e proceder às devidas correcções. Aliás, nem o sistema político na sua globalidade beneficia como devia do feedback de posições contrárias, pois demasiadas vezes limitam-se a ser tacticismos com vista a ganhos políticos de curto prazo. O resultado é que o país acaba impossibilitado de reconhecer os erros no passado, de os procurar compreender e de os evitar no futuro.

No debate sobre o estado da Nação a problemática dos transportes marítimos e da empresa concessionária dos mesmos foi despoletada com a publicação nas redes sociais do acórdão do tribunal arbitral que deu razão à CVI e condenou o Estado a pagamentos num valor acima de 20 milhões de euros. Em causa estão questões como exclusividade nas rotas que o Estado não teria respeitado, a remuneração compensatória de 10% das receitas de operação que teria recusado a pagar e o excessivo custo dos afretamentos dos navios Chiquinho e Dona Tututa, um deles limitado a circular entre São Vicente e Santo Antão e outro com várias baixas para reparações que tornam complicado a programação da circulação entre as ilhas.

No meio de tudo isso reina alguma perplexidade em relação ao que aconteceu com o investimento em cinco barcos a ser feito pelo vencedor do concurso público. O mesmo acontece em relação à entrada de 10 armadores com 49% na empresa concessionária à subsequente diminuição do capital social da CVI de 300 mil para 50 mil contos, segundo os documentos vindos a público. Mais complicado ainda é o que resulta da justificação dada no voto de vencido do árbitro-vogal do Tribunal Arbitral a pedir ao tribunal que declarasse “a inexistência jurídica de todas as cláusulas negociadas após a aprovação da minuta do contrato de concessão pelo Conselho de Ministros”. Segundo o árbitro-vogal, resulta dos autos que o então Ministro dos Transportes “não tinha conhecimento das discrepâncias entre a minuta e o contrato de concessão” e que, por conseguinte, em relação a certas cláusulas do documento assinado estar-se-ia “perante o vício da falta de vontade negocial”.

O problema dos transportes marítimos como dos transportes aéreos e outros sectores importantes da economia de Cabo Verde tem a ver fundamentalmente com a natureza do país arquipelágico, de nove ilhas, população de um pouco mais de meio milhão de habitantes, fracos recursos naturais e distante 600 quilómetros do continente mais próximo. Problemas graves de escala limitam a possibilidade do mercado resolver os problemas. A insularidade impõe que se reproduzam nas nove ilhas portos, aeroportos e outras infraestruturas, designadamente, nos sectores de energia e água, de educação e saúde e de telecomunicações. Perante imperfeições e falhas de mercado o Estado tem que intervir numa realidade em que escasseiam recursos financeiros e o tempo dos financiamentos concessionais e das organizações multilaterais nem sempre se prestam para aproveitamento de oportunidades de negócios.

Parcerias público-privadas sempre podiam ser uma via para colmatar dificuldade de financiamento, de know how e de acesso a mercados com outra dimensão. O problema nessas operações, que pelas características do país são sempre arriscadas, é que o custo das mesmas acabe por ser suportado apenas pelo Estado. A probabilidade de isso acontecer diminuiria se houvesse uma maior consciência da realidade difícil do arquipélago , uma predisposição maior para aprender com a experiência e para capacitar o Estado de competência negocial e menos disponibilidade para ver o país num prisma essencialmente eleitoralista de curto prazo.

Infelizmente a tentação, também para conseguir ganhos políticos, sempre que algo não acontece de melhor forma, é de atribuir as falhas a actos de corrupção. Realmente podem existir, mas a verdade é que não se resolvem os problemas minimizando a contribuição de outros factores como má preparação nas negociações das parcerias, as dificuldades inerentes ao país, a quase impossibilidade de ultrapassar certos preconceitos herdados que opõem amantes da terra a vendedores da terra.

Risco de aproveitamento indevido vai sempre existir quando há interesses em jogo. Mas não há crescimento e desenvolvimento rápido e sustentável sem correr esse risco. A história dos 50 anos pós-independência demonstra isso quando aos primeiros quinze anos que terminaram em estagnação económica sucederam anos vibrantes dinamizados pela iniciativa privada, pela atracção de investimentos e pela liberalização da economia. Minimizam-se os riscos com o pensamento livre e sentido de responsabilidade de quem aprende com os erros do passado para que o país não continue a repeti-los. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1236 de 6 de Agosto de 2025.

sexta-feira, agosto 08, 2025

Não bloquear o diálogo democrático com discursos extremados

Na próxima quinta-feira, 31 de Julho, vai ter lugar na Assembleia Nacional o último “Debate sobre o estado da Nação” desta legislatura. Praticamente em período pré-eleitoral – as eleições legislativas irão verificar-se em menos de um ano – o debate vai acontecer num momento pós-pandémico, com sinais de clara recuperação e crescimento económico do país e de desafios e incertezas causadas por tensões geopolíticas várias. Tensões essas que ameaçam as cadeias de valor e de abastecimento existentes e levantam mesmo o espectro de guerras potencialmente disruptivas das trocas comerciais globais, podendo traduzir-se em choques externos profundos com efeito na trajetória de desenvolvimento do país.

A classificação de Cabo Verde pelo Banco Mundial como país de rendimento médio-alto, por um lado, é o reconhecimento do grau de sucesso alcançado, por outro, traz novos desafios e responsabilidades. Percebe-se isso na entrevista de 16 Julho a este jornal do Representante do FMI em Cabo Verde, Rodrigo Garcia-Verdú. Apontou que a retoma económica colocou o país 11% acima do nível pré-pandémico. Acrescentou que a queda de 40 pontos do rácio da dívida pública/PIB do PIB foi espectacular, apesar da dívida de 105% ainda se manter alto.

Também chamou a atenção para os riscos de alguma travagem no crescimento económico que podia pôr em causa esses ganhos, se faltarem investimentos em infraestruturas de suporte a grandes projectos, e para o risco que o sector empresarial do Estado poderá representar para as contas públicas, se houver mau desempenho. Considera ainda que o país tem uma boa gestão ao nível macroeconómico, mas acha que a nível microeconómico poderia ser melhor para atrair investimentos, diversificar a economia e obter ganhos de competitividade e produtividade.

A perspectiva que observadores internacionais e parceiros das organizações multilaterais têm do país é de maior importância em particular para investidores, empresários e turistas. Pode não coincidir por completo com o que internamente sustentam os vários grupos socio-políticos e económicos, o que se compreende. Mesmo com o país a avançar, nem toda a gente está completamente satisfeita com os resultados. De qualquer forma olhares de fora não têm que ser seguidos ou unanimemente aceites, mas podem ser úteis. Além de servirem para projectar uma boa imagem no exterior, também ajudam a calibrar os pontos de vista internos que tendem a ser expressos em muitos casos de acordo com interesses político-partidários estritos.

De facto, é normal que nem todos se revejam no rumo tomado pelo governo ou na velocidade como se está a dar respostas aos problemas. O expectável é que não haja concordância plena com as opções de políticas ou com o ritmo que as reformas estão a desenvolver-se ou com o nível de eficiência e eficácia na alocação e gestão de recursos. Para diferentes segmentos da sociedade as prioridades poderão ser diferentes e as abordagens divergirem com uns a pôr maior enfase na distribuição de recursos e outros a focar essencialmente na necessidade de crescer. As diferentes abordagens não devem, porém, conduzir ao negacionismo, impedindo que se constatem e se avaliem os aspectos bons e menos bons das mudanças realizadas numa governação e os objectivos conseguidos.

Para conciliar todos esses diferentes interesses e ir além das opiniões expressas para decisões que definem uma orientação para o país e o lançam para frente, é fundamental que se faça política, mas num ambiente de democracia, de pluralismo, tolerância e de comprometimento com o bem comum. Nos tempos actuais manter esse ambiente passou a ser cada vez mais difícil considerando que o seu esvaziamento ou distorção tornou-se no grande alvo das forças extremistas nas democracias.

Quer-se com a polarização extrema da sociedade e com discursos antielites interromper o diálogo democrático fazendo a sociedade dividir-se em dois blocos antagónicos, cada um com a sua versão da realidade. Assim, factos deixam de contar, não há busca da verdade e passa-se a ideia de que não há causa ou propósito comum porque o jogo é de soma zero. O que é adicionado a uma parte da sociedade, foi subtraído da outra.

Cabo Verde em período pré-eleitoral para as eleições legislativas de 2026 está perante esse tipo de pressão. Muitas das tácticas usadas por personalidades e forças políticas na comunicação pública e nas relações com as instituições acabam por contribuir para isso. As redes sociais, sem qualquer controlo de conteúdo e pelo contrário sujeitas aos algoritmos das plataformas que tendem a criar bolhas de opiniões similares, têm um efeito amplificador de posições extremas e prestam-se a serem instrumento de bloqueio para o diálogo construtivo e democrático. No momento em que o cidadão comum, a sociedade e o país mais precisam que se debruce sobre os problemas e se incentive debates sobre questões urgentes com profundidade e de forma equilibradas ficam em grande medida privados de o fazer.

Os países como as pessoas e outras entidades complexas, quando crescem e se desenvolvem, deparam-se com novos desafios, vêem problemas antigos não resolvidos a complicarem-se e a se tornarem quase intratáveis e ficam sujeitos a situações que podem configurar armadilhas, potencialmente impeditivas de progresso para um estádio superior de desenvolvimento. Claramente que Cabo Verde encontra-se nesse tipo de encruzilhada que tem de saber ultrapassar para poder progredir. Chegou a este ponto em boa medida porque cresceu, massificou o ensino a todos os níveis de escolaridade, aumentou extraordinariamente a esperança de vida e soube fazer do turismo um motor da economia.

Somam-se os problemas porque ainda o país não acerta em como tornar a agricultura e pecuária e também a pesca mais produtivas, em como encontrar nichos para a indústria e fazer da prestação de serviços a todos os níveis a grande aposta do país. O mercado ainda não está verdadeiramente unificado e as sucessivas soluções para os transportes aéreos e marítimos têm-se mostrado inadequadas e, com o acumular de passivos, mais custosas a implementar. Na saúde não se preparou estrategicamente e em tempo para responder às mudanças demográficas e epidemiológicas da população e às exigências do turismo. Não respondeu no momento certo às migrações internas com políticas de habitação quando a procura de mão-de-obra diminuiu a população em algumas ilhas e aumentou noutras, nem quando, com o aumento da escolaridade, os jovens desertificaram o mundo rural em direcção às cidades, à procura de emprego no sector de serviços.

Não explorou com rapidez necessária e sentido estratégico sectores do futuro como energias renováveis e utilização do digital para unir o país arquipélago de nove ilhas, ultrapassar a cultura centralizadora do Estado e dar aos utentes em todos os pontos do território acesso aos serviços prestados pela administração pública e municipal. É de se imaginar o muito que o país podia ter beneficiado disso para diversificar a economia e diminuir as vulnerabilidades perante choques externos. No mesmo sentido, o espaço que se criaria para uma classe empresarial autóctone com maior conectividade, com aumento de escala do mercado nacional e com ilhas actualmente a perder população, beneficiando de novos influxos.

Estas e outras questões precisam de resposta para que Cabo Verde possa crescer acima do potencial previsto nos próximos anos de 4 a 5%. O debate sobre o estado da Nação amanhã poderia ser um bom começo. No período até às eleições legislativas podia-se dar continuidade a isso com os partidos a apresentar propostas alternativas. Com a tentação para se bloquear o diálogo democrático vai depender da sociedade e de cada cidadão pôr um efectivo travão a essas manobras, não deixando que a cultura dos extremos se imponha. É a prosperidade futura do país na liberdade e democracia que está em causa. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1235 de 30 de Julho de 2025.

 

quinta-feira, julho 31, 2025

Responsabilidade de salvaguarda das instituições no respeito pela ordem constitucional

 

Ao longo das últimas semanas à volta das comemorações do dia nacional de Cabo Verde, o 5 de Julho, repetiu-se sempre uma pergunta em entrevistas, reportagens e pronunciamentos públicos: se valeu a pena a independência. A questão aparentemente não faz muito sentido considerando que ninguém disputa a independência e celebra-se o dia nacional com alegria de ser ter um país que vive na liberdade e com o orgulho de quem sabe que o povo soberano escolhe os seus governantes, há pluralismo, separação de poderes e o primado da Lei, e a justiça é assegurada por tribunais independentes. Quando repetida todos os anos a pergunta só faz sentido se é, de facto, um convite para, por um lado, se validar o processo de há 50 anos que desembocou na independência e, por outro, para justificar a ditadura de partido único que foi formalmente implantada no dia 5 de Julho.

Devia ser evidente que os objectivos no dia nacional de celebração da unidade da comunidade nacional à volta dos princípios e valores compartilhados são prejudicados quando o foco é posto no processo que atropelou direitos políticos de muitos, levou à prisão e deportação de outros e impediu que a generalidade da população pudesse livremente decidir sobre o seu futuro e o destino do país. Também não se pode ignorar que reabrem-se as feridas e cavam-se mais as fracturas na sociedade e nas instituições quando com essa questão “se a independência valeu a pena” se força as pessoas a aceitar a justificação que a ditadura era necessária em 1975 para depois houvesse uma abertura em 1990. Neste quesito nem se refreia de usar argumentos similares aos da época colonial de que era preciso dar tempo para que os povos se tornassem maduros para a independência. Não se tem pejo em afirmar que depois da independência são precisos anos de ditadura antes de se "abrir" a porta da liberdade e democracia ao povo.

Com o pretexto da necessidade de preservação da memória histórica, repete-se mais um acto que só teria sentido nos tempos da ditadura. Despeja-se integralmente a historiografia oficial do PAIGC como se tratasse de uma operação de agitprop (agitação e propaganda). Nas homenagens faz-se a idolatria dos combatentes da liberdade da pátria que, como se pode ver em várias cerimónias públicas, são os mesmos que vieram da Guiné em 1975 e protagonizaram a ditadura do partido, ficando alguns outros combatentes a fazer de pano de fundo. Não se sabe onde fica o resto da história do país, do seu povo e das suas personalidades como se tudo tivesse iniciado nas matas da Guiné. Na prática, ignora-se, distorce-se e cooptam-se pedaços da história para servirem de precursores da “luta de libertação”. Claro que aqui não há nada de novo quando a perspectiva imposta é a de um partido de vanguarda que forja nações mesmo a mil quilómetros de distância do território pátrio.

O problema é como isso pode acontecer numa democracia com pluralismo de pontos de vista, espírito livre e crítico e comprometimento com a verdade, sem que também as suas instituições sejam abaladas. No dia 17 de Julho, as Forças Armadas de Cabo Verde resolveram aderir ao esforço de preservação da memória histórica com uma conferência destacando os rostos da ditadura, notando-se a ausência do Presidente da República e do Governo. A data escolhida foi a do juramento de bandeira dos primeiros soldados incorporados nas Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP) que, como disse o então primeiro-ministro Pedro Pires, no seu discurso nesse dia, era um exército de revolucionários, de militantes do partido e que pertencia à mesma organização das FARP na República da Guiné-Bissau. A grande questão que se coloca é que particularidade da memória histórica é que as Forças Armadas de Cabo Verde apartidárias, defensoras da ordem constitucional e da independência do país, pretendem preservar com esse acto e eventualmente que mensagem querem passar.

Um dos princípios fundamentais das democracias é a subordinação das forças armadas ao poder civil democraticamente legitimado. Com isso, assegura-se o monopólio da violência do Estado e garante-se que o seu comando está sob quem tem legitimidade para o exercer no quadro estrito da legalidade democrática. Não se trata, portanto, de uma “milícia” ou de um braço armado do partido, para garantir, como dito no acima citado discurso, que tem que haver nesta terra disciplina e respeito pela Direcção do partido. Como baluarte da ordem constitucional e protector dos direitos fundamentais dos cidadãos, as FA não podem tomar como exemplo um exército cujos quartéis serviram em várias ocasiões (1977, 80, 81) de prisão e lugares de tortura e se viu envolvido na morte violenta de civis (1981). Proibidas de actividades políticas, as FA não deviam rever-se em dirigentes/comandantes instituídos por decreto do regime anterior que, reclamando-se da “luta de libertação”, legitimava a ditadura em Cabo Verde.

A última coisa que uma democracia precisa é de forças armadas a se verem anterior à república ou acima do Estado com base em alguma narrativa, seja da revolução do 25 de Abril em Portugal, de manter secular a república turca, de combater a corrupção em África ou de alguma luta armada. Para evitar esse tipo de situações é que, por exemplo, na Bélgica, o dia nacional, que anteriormente se comemorava a 27 de Setembro, dia da expulsão dos holandeses, passou para 21 de Julho que foi da entronização do rei após o juramento da lealdade à Constituição. Liberdade e responsabilidade caminham juntas em democracia e claramente que era de exigir a todos, que de uma forma ou de outra, são parte da história do país, o respeito pela ordem constitucional validada várias vezes nos últimos trinta e cinco anos pelo voto livre e plural de todos os cabo-verdianos.

O país pode estar num período pré-eleitoral e as lutas políticas mais aguerridas. Tem que haver, porém, consenso quanto aos fundamentos da república. A orientação futura da governação pode estar em discussão e é pela política que se vai traçar um caminho para a encontrar. Não é pela desestabilização das instituições, pelo instigar de lutas corporativas e pelo recurso a figuras míticas, personalidades e partidos providenciais, que se vai poder ponderar a complexa situação nesta fase de desenvolvimento, evitar as armadilhas e mobilizar as vontades para as reformas necessárias.

O discurso algo histriónico que se vem tornando norma, ampliado pelas redes sociais, mas cada vez mais assumido pelas forças políticas, tende a penetrar em todo o lado. Fustiga-se a justiça, agita-se nas escolas, desespera-se nos transportes e até às forças armadas quer-se incentivar o envolvimento em decisões estritamente políticas. O crescimento dos extremismos em todo o mundo devia servir de uma nota de cautela, mas afinal não é, como se pode comprovar em resultados sucessivos das eleições em diferentes países.

Provavelmente nem os seis meses das mudanças de Donald Trump, consideradas inacreditáveis até há pouco tempo, constituem choque suficiente para outros países se esquivarem de certas derivas complicadas. Cabo Verde também parece susceptível ao fenómeno. Aqui também há quem não mostre muita preocupação se, provocando reacções emocionais extremas perante todo e qualquer problema, não se acabe por tirar qualquer possibilidade de diálogo e de uma ponderação serena dos problemas do país. Infelizmente, os dias nacionais, que deviam cimentar o consenso para o dissenso poder prosseguir sereno e construtivo, são sequestrados nas tentativas de acerto de contas com a decisão do povo de viver livre e trabalhar para sua própria prosperidade e felicidade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1234 de 23 de Julho de 2025.

sábado, julho 26, 2025

Acabar com o confronto entre o crioulo e o português

 Controvérsias à volta do ensino da língua cabo-verdiana continuam. A introdução de um manual de língua e cultura cabo-verdiana no 10º tem levantado objecções várias de personalidades e particularmente de alguns membros da equipa de estudiosos que vem trabalhando no projecto de introdução do crioulo no sistema de ensino. O manual terá avançado uma proposta de escrita pandialectal, ou seja, com elementos das nove variantes do crioulo, que não lhes agradou. Daí o confronto entre as partes na comunicação social e outros fóruns que se arrasta há meses, nem sempre de forma mais cordial. A intenção recentemente manifestada de recorrer ao poder judicial para suspender o uso desse manual via uma providência cautelar provocou uma resposta do ministério da Educação através de uma nota de esclarecimento.

É curioso que precisamente quando os que muitas vezes se intitulam de activistas do crioulo perecem estar à beira da vitória, no seu propósito de introdução do crioulo no sistema de ensino, acontece essa fractura tão ostensiva. Aparentemente há quem preferira que com o suporte do alfabeto oficial se ensinasse nas ilhas a respectiva variedade e que não fosse para já adoptada uma escrita “padronizada”, mesmo com contribuições de todas as variedades. Os outros provavelmente mais apressados e considerando o objectivo maior da oficialização e correspondente uso na administração pública e nas escolas, teriam antecipado ao que a dinâmica do uso das variedades do crioulo poderia produzir no futuro.

Na nota do ministério de 14 de Julho, assumida pela Equipa Produtora do Manual, recusa-se, porém, a ideia de se estar a padronizar a língua cabo-verdiana. Afirma-se que as variedades são todas elas “dotadas de igual valor identitário e linguístico”, dignas de ensino e de escrita e partes integrantes do património linguístico. Ainda contrapõe-se que “não reconhecer este princípio equivaleria a hierarquizar as variedades segundo o número de falantes, conferindo supremacia à variedade de Santiago e relegando as demais para um plano secundário”.

A fractura exposta neste confronto poderá estar a indiciar outras intencionalidades que não as de simples promoção do crioulo. De facto, há quem pense que há motivações ideológicas e outras por detrás da pressa para se enveredar por uma oficialização imediata, sem que tenham sido criadas as condições para tal, entre as quais a escrita padronizada, e mobilizados os recursos necessários para toda a máquina do Estado prestar os seus serviços na nova língua oficial. Uma pressa que pelo tipo de activismo não parece dar a devida atenção aos alertas que vêm de diferentes quadrantes quanto às consequências negativas na aprendizagem e na aquisição de competências linguísticas por causa da tensão negativa artificialmente criada com a língua portuguesa, que é a oficial e língua do ensino.

É evidente para qualquer observador que os cabo-verdianos não têm qualquer problema com a sua língua materna. É falada por todos, ouve-se no parlamento, o presidente da república faz pronunciamentos em crioulo, os cidadãos podem depor nos tribunais e são atendidos na administração pública também na língua cabo-verdiana. Não pode, pois, ser tomada como inferior até porque é veículo permanente de expressão de sentimentos, de troca de informações e conhecimento e de expressão cultural em particular na música. Carece ainda de ser escrita e padronizada, mas é uma questão de tempo para qual se devia serenamente engajar-se, sem prejudicar o sentido da unidade na diversidade que tem sido apanágio do povo cabo-verdiano.

O confronto de posições que hoje dividem activistas e estudiosos em relação à proposta pandialectal da língua cabo-verdiana foi precedida de fracturas criadas quando se avançou como o alfabeto fonético do ALUPEC, sem a devida consideração pelas posições contrárias e pela existência de um manancial cultural-literário em crioulo, poesia e prosa, produzida por figuras de vulto, ao longo de décadas, usando um alfabético etimológico. A razão primeira para a escolha do ALUPEC era distanciar-se do português pela escrita quando a origem lexical das palavras em crioulo é em mais de 90% está na língua portuguesa. Claro que motivações ideológicas do género que se enquadram na política de reafricanização dos espíritos teriam que gerar fortes resistências. Posteriormente, reforçaram-se com as políticas identitárias que vieram à tona e passaram a municiar bairrismos e pretensões hegemónicas no país com potencial risco para o que Cabo Verde tem de mais valioso - a unidade do seu povo.

É claro que perante a latente resistência ao ALUPEC, isso só foi possível porque o Estado e na vigência dos sucessivos governos, por acção, inércia ou omissão, acabou por impor esse alfabeto. Em 1998 foi dado como experimental e em 2009 foi oficializado pelo decreto-lei do governo nº 22/09. Curiosamente, agora quer-se impedir o uso do alfabeto pandialectal alegando que contraria o decreto-lei de 2009. A questão que se coloca é se o regime ortográfico de uma língua deve ser imposto unilateralmente pelo governo pela via de um decreto-lei. Ou seja, se não deve ser objecto de uma lei da Assembleia Nacional que é representativa de todos os cabo-verdianos.

A alteração do regime ortográfico da língua portuguesa via acordo ortográfico de 1990 foi feita com a discussão e aprovação na Assembleia Nacional seguida da ratificação pelo presidente da república. A adopção de um regime ortográfico para o crioulo com vista à sua oficialização plena, devia, por analogia e tratando-se de matéria de soberania, ser feita através de uma lei da Assembleia Nacional, depois de submetida a profunda discussão pública, considerando que é matéria que em todos os quadrantes normalmente encontra resistência por parte de intelectuais, professores, escritores, jornalistas e outros segmentos da população. Infelizmente não foi e, tomado como uma imposição do Estado, acaba por gerar anticorpos.

Efectivamente, além de não ser abraçado por todos, torna-se um factor de divisão porque, tendo em conta as motivações iniciais de um afastamento deliberado do alfabeto português, retroalimenta as tensões criadas na sociedade cabo-verdiana com a política de reafricanização dos espíritos trazida pelo PAIGC no processo de independência. Com o crioulo visto numa luta identitária contra o português, particularmente pelos mais novos, não se pode esperar maior proficiência dos alunos na língua de ensino. E sem acabar com a hostilidade à língua portuguesa como se pode melhorar a qualidade de ensino nas ciências e na matemática e estimular a população a adquirir as competências linguísticas que um país do turismo e de prestação de serviços requer.

Cabo Verde completou cinquenta anos e devia ser o momento para o olhar criticamente, mas com firmeza, os desafios que tem de enfrentar, as reformas que deve fazer e a atitude que deve assumir para não só manter o país a crescer como fundamentalmente para dar o salto para um novo estádio de desenvolvimento. Nesse sentido, é da maior importância a aposta no capital humano, o recurso que realmente o país dispõe, e está inteiramente nas suas mãos potenciar. Mas para isso, resolver o problema da língua é central. Tanto a música em crioulo como a literatura em português contribuíram para a emergência da consciência da nação. Se nem em Angola, no Brasil ou nas outras antigas colónias não há conflito identitário com a língua portuguesa porque haveria de existir em Cabo Verde, onde a nação é vista consensualmente como anterior à independência.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1233 de 16 de Julho de 2025.