domingo, março 07, 2010

Obsessão pelo controlo da memória

Em 1986, o jornal governamental, o Voz di Povo proclamou em manchete: “Aos 50 anos Claridade entra oficialmente na História de Cabo Verde”. O regime de partido único finalmente tinha decidido integrar na historiografia oficial o Movimento Claridoso de Baltasar Lopes da Silva, Manuel Lopes, Jorge Barbosa e António Aurélio Gonçalves. Ao fim de dez anos o regime já se sentia suficientemente seguro para cooptar, na sua versão da história das Ilhas, essas personalidades e as suas contribuições fundamentais para a afirmação da caboverdianidade.

Aristides Pereira, o então Presidente da República, discursando no Simpósio Claridade, mostrou como as coisas deviam ser vistas: “o Movimento Claridoso encontra as suas raízes num terreno laborado por uma plêiade sucessiva de homens de cultura, que vinha pugnando pela afirmação da caboverdianidade, (...) cuja obra se deve apreciar e acarinhar até chegar a Amilcar Cabral (..). A lenta mas segura gestação do nacionalismo caboverdiano” Dessa e de outras muitas declarações similares fica claro que, para o Regime, o ponto de confluência da história do País é Amilcar Cabral e, por extensão, o PAIGC e o PAICV. Também fica claro que factos históricos só têm significado e são reconhecidos como tais quando servem, justificam e confirmam a luta de libertação, apresentada como ponto de origem de tudo: da Nação e do Estado.

O Partido único, enquanto força dirigente, precisa dessa validação permanente para se legitimar no Poder e para negar aos cidadãos a Liberdade e o direito de escolher quem os deve governar. Nesse sentido, memórias devem ser rearranjadas, outras memórias extirpadas, outras ainda implantadas, para que a realidade e a ficção se confundam e ninguém saiba quando termina uma e começa a outra. È uma luta permanente. Daí a obsessão pelo controlo, o policiamento do que é dito e feito, a substituição da informação pela propaganda e o assenhorear das iniciativas e de tudo o que é inovador.

O controlo de memórias foi mais penoso para Cabo Verde do que noutras paragens. A badalada luta de libertação não aconteceu em Cabo Verde. Aristides Pereira, no Relatório aos órgãos superiores do PAIGC em Agosto de 1976, em Bissau, deixou claro qual era a real situação do Partido, antes do 25 de Abril de 74: “Pouco implantado no arquipélago, a organização resumia-se a algumas células em Santiago, no Mindelo e em S.Antão. “(…) a massa militante englobava, por ordem decrescente de importância, estudantes, alguns pequenos funcionários e poucos trabalhadores”. Imagine-se o esforço titânico necessário para incutir numa população que a sua história passada é só aquela que justifica e conduz inevitavelmente à luta de libertação. Uma luta que lhe dizem ter acontecido a mais de 600Km de distância mas que não viveu nem sentiu de forma directa. Relatos fidedignos apontam para um máximo de quarenta caboverdianos numa organização que se gabava de ter mais de 12 mil guerrilheiros. É quase surreal.

A instauração de um Poder absoluto logo após a independência imprimiu a esse esforço carácter urgente e impiedoso. Extraia-se legitimidade dos mitos criados à volta de Amílcar Cabral e da luta na Guiné. Nada podia contrariá-los. Nem o seu inevitável choque contra uma história de séculos e uma vivência social e cultural, distinta de onde o PAIGC nasceu e cresceu como organização político-militar. A pressão ideológica do Estado sobre a sociedade desembocou, pontualmente, em violência explícita, particularmente contra as elites intelectuais, culturais e sócio-económicas do País.

Prisões, humilhações, torturas e mortes verificadas em 1977, 1979, 1980 e 1981 em S. Antão, S.Vicente, Santiago e Brava são exemplos do muito que aconteceu nos primeiros anos de independência. Como também são certas leis, em particular a lei de Boato, 37/1975, e a lei 97/1976 dos cinco meses de prisão sem culpa formada, que só viriam a ser revogadas em Maio de 1990. São anos que não deviam orgulhar ninguém, muito menos o primeiro-ministro de um governo democraticamente eleito. A iniciativa infeliz do Sr. Primeiro Ministro de organizar a conferência “Os primeiro anos de independência”, tendo como conferencista o então primeiro-ministro e actual presidente da República, Pedro Pires, revela o quão o ainda se insiste na legitimidade histórica. Implicitamente está-se a reiterar que votos não chegam para governar. E que o País deve estar é com o partido demiurgo, o partido do fundador da Nação, o partido que trouxe a independência, construiu o Estado e, quinze anos depois, concedeu a democracia.

Por isso, é que para as crianças de quarta classe a história de 550 anos de Cabo Verde é resumida no seguinte: “O arquipélago de Cabo Verde foi durante séculos governado por Portugal. Era uma colónia. No dia 19 de Setembro de 1956, Amílcar Cabral fundou o PAIGC. Em 1963, o PAIGC começou a luta armada na Guiné. No dia 5 de Julho 1975 Cabo Verde tornou-se um país independente. No dia 13 de Janeiro realizaram-se as primeiras eleições legislativas”(pags. 44, 45 do manual de Ciências integradas 4º ano). É o mesmo simplismo de motivação ideológica que orienta o Governo quando encomenda um Monumento à Liberdade. Quer que se retrate a história do país em dois períodos: primeiro como país-vítima, nos temas colonização, escravatura, fome, emigração forçada seguido do período da redenção nos temas luta armada, independência, reconstrução e desenvolvimento. Significativamente fica ausente dessa interpretação da história a exaltação do processo de emergência de uma nova nação dentro do império português, sem complexos de vítima e capaz de conservar o seu carácter e desejo de liberdade mesmo confrontando-se com mais de seis décadas de regimes inimigos da liberdade e do pluralismo: os 45 anos do regime autoritário de Salazar/Caetano e os 15 anos do regime totalitário do PAIGC/PAICV.

A insistência na validade da legitimidade histórica, mesmo na era da democracia e do pluralismo, significa que o esforço para manter vivos os mitos anteriores não diminuiu. Pelo contrário, aumentou, pois agora, não só tem que manter a memória fictícia do envolvimento de Cabo Verde na luta armada, como também há que fazer acreditar que o partido/Estado em Cabo Verde era benigno e único do género no planeta. Ficções corroboradas por António Correia e Silva, no artigo do jornal “anação” de 25 de Fevereiro, ao afirmar que foi de vontade própria que o PAICV fez a abertura política. “Vontade” que só se manifestou quando todos tinham bem presente que dominós caiam por todo o planeta, na sequência das políticas de perestroika e glasnost de Gorbatcev, e que a queda do Muro de Berlim a 9 de Novembro de 1989 veio acelerar ainda mais o desmoronar de regimes de inspiração leninista. Alguém acredita que o PAICV, a 19 de Fevereiro de 1990, tenha dito: vamos cair também, mas não somos um dominó nem nos revemos em Lenine!?.

Manter esse nível de ficção, de fuga à realidade dos factos exige um esforço tremendo que se manifesta pelo menos a três níveis: da propaganda, da restrição da liberdade intelectual e de luta política constrangedora do pluralismo.

Da propaganda qualquer observador fica elucidado com o desabafo da jornalista Margarida Fontes no seu blog, odiaquepassa.blogspot.com:A questão é: para quê silenciar, se a propaganda é liberada nos mais públicos meios de difusão? Num país onde a propaganda flui com naturalidade, perante o silêncio da oposição que sonha fazer o mesmo quando ocupar o Palácio, o jornalista não passa de um lacaio vencido pelo cansaço… daí que eu defendo, criem um Gabinete de Propaganda do Governo (GPG) com legitimidade para ludibriar os cabo-verdianos e as cabo-verdianas, e extinguem (melhor, mudem os estatutos) dos órgãos públicos de comunicação, começando pela TV pública” (1/03/2010).

Quanto á liberdade intelectual, o violentíssimo ataque que publicamente o presidente da Fundação Amílcar Cabral desferiu contra a tese de doutoramento, “Em Busca da Nação” do investigador Gabriel Fernandes, no jornal “asemana” de 2 de Março de 2007, foi aviso claro para todos os estudiosos: Qualquer um pode correr o risco de ver uma tese ou um estudo acusado de “emprestar chancela académica a teses partidárias” se algum mito, dos que pululam na sociedade caboverdiana, for de alguma forma beliscado por factos, análises ou teorias.

Quanto à luta contra o pluralismo, ela é diária e violenta. Assume várias formas de acordo com as circunstâncias. Ás vezes é aberta, outras vezes é dissimulada, quase subtil. Os alvos preferenciais são o parlamento, o sistema de partidos e a credibilidade pessoal de quem ideias diferentes. Aos ataques seguem-se apelos a consensos. Mas a luta nunca pára. Mesmo quando o meio político adversário, de alguma forma, capitula perante a pressão dos mitos, a ofensiva continua. O PAICV não permite que Amílcar Cabral descanse acima dos interesses partidários de hoje. Proclama-se partido de Cabral e depositário dos seus ensinamentos e insiste que todos o devem aceitar na forma mitológica da sua preferência.

A política em Cabo Verde parece cativa da História. E é. Porque estranhamente, mesmo 19 anos após eleições livres e plurais, a ideia da legitimidade popular, como legitimidade única e válida na República, ainda não foi completamente aceite. Muitos procuram capitalizar sobre a legitimidade histórica para ganhar votos. O início das Comemorações do 35º Aniversário da Independência a 1 de Março para se prolongaram até Outubro, em ano pré eleitoral, deixa imediatamente a suspeita do aproveitamento dos recursos, das instituições e da autoridade do Estado para exaltar o papel do partido que se auto intitula partido da independência, com fins claramente eleitorais.

Isso é de facto inadmissível particularmente porque é acompanhado de uma ofensiva ideológica e propagandística com vista a liquidar a memória da década de noventa. Precisamente a década, em que o País conquistou a Liberdade e construiu as suas instituições democráticas. O uso abusivo do Estado para controlar as memórias e servir agendas partidárias tem que acabar. Para que haja real liberdade de expressão, liberdade de informação, liberdade intelectual e pluralismo verdadeiro em Cabo Verde.

segunda-feira, fevereiro 22, 2010

A Cidade de Eventos

Cabo Verde é dos países que menos ganha com o Turismo. Enquanto países como Maurícias, Seychelles, Serra Leoa e Mali retiram respectivamente 955, 1060, 1070 e 930 euros por cada chegada de turistas, Cabo Verde fica praticamente pela metade, por uma quantia de 505 euros. Mudar esse estado de coisas deve ser um imperativo nacional. O grau do sucesso conseguido em incorporar na economia local despesas feitas pelo emigrante, pelo turista ou visitante, dirá em que medida o Turismo está, de facto, a transformar-se num dos motores do desenvolvimento. As potencialidades do País no sector tornaram-se notórias com o fluxo turístico dos anos 2006, 2007. Mas logo a partir de 2008 apareceram sinais de quebra no fluxo, visíveis no número cada vez menor de turistas dispostos a regressar para uma segunda visita, devido à falta de visão e de acção estratégica das autoridades. A crise em 2009 só veio piorar um quadro que já se configurava negro, particularmente na ilha do Sal. Falhas verificaram-se em, pelo menos, três níveis: Primeiro, O governo falhou em garantir segurança pessoal e segurança jurídica em relação à propriedade. Segundo, o governo não se antecipou quanto ao impacto previsível que teria o influxo de dinheiro, as migrações internas e o crescimento rápido da população sobre a economia das ilhas, sobre o tecido social das comunidades tradicionais e sobre as infraestruturas de base, designadamente no domínio da energia, água, saneamento habitação e de serviços de sáude e formação profissional. Por último, não foi proactivo em promover as ilhas e em incentivar as suas populações a desenvolver uma cultura de serviço, a criar produtos culturais e de entretenimento próprios e atractivos e a organizar a economia local tendo em mira a qualidade, a fiabilidade dos métodos de produção e os standards de apresentação de produtos, exigíveis nos mercados externos. Ter turismo como motor do crescimento significa gerar e manter um fluxo turístico crescente em direcção ao País; significa seduzir turistas em voltar uma ou mais vezes e em divulgar uma boa imagem do destino a familiares, amigos e colegas; significa repercutir os efeitos do turismo na economia local e nacional através de empregos, de novos negócios e de prestação de novos serviços. Ou seja, há que gerar tráfico, há que o manter e renovar criativamente e há que o aproveitar para criar riqueza. Cabo Verde conta à partida com o fluxo dos emigrantes em férias. Todas as ilhas sentem o seu impacto na economia local e no rendimento e qualidade de vida de familiares. È um fluxo que certamente pode ser ampliado, reduzindo constrangimentos que ainda o condicionam. Pode-se por exemplo rever preços das passagens aéreas, ser mais imaginativo na organização de excursões ligados a eventos no país, modernizar os circuitos inter-ilhas de transporte e estimular e regular um circuito de restaurantes, pensões e hotéis dirigid0 para o turismo interno. A vinda dos emigrantes dos Estados Unidos e da Europa para o Carnaval 2010 de S. Vicente demonstra que é possível gerar fluxos turísticos externos com base em eventos nas ilhas. E tudo leva a crer que a promoção não tem que se limitar ao mercado das comunidades emigradas. Aproveitar o tráfico criado implica, porém, não cometer os erros cometidos no passado que contribuíram para que o País não fosse lançado para um outro nível de crescimento económico sob o impulso do Turismo.

terça-feira, fevereiro 09, 2010

Competência linguística estratégica

È objectivo de qualquer país ser ganhador no engajamento com o mundo. Nesse sentido aproveita as oportunidades existentes, faz valer as suas vantagens comparativas e caminha, criativamente, no sentido da evolução e crescimento da economia global. Para as grandes economias, sucesso significa rendimentos crescentes e maior qualidade de vida á medida que sobe na cadeia global de criação de valor. Para os pequenos países, é, antes de mais, uma questão de sobrevivência e de manutenção de relevância e competitividade no ambiente de rivalidades e interdependências do pós-guerra. Países como Holanda, Dinamarca e Suécia, compreenderam isso logo que se calaram as armas nos campos de batalha da Europa. Uma das grandes medidas tomadas foi usar o sistema de ensino para fazer as novas gerações fluentes no inglês. O facto de serem países com extraordinários legados históricos, e certamente orgulhosos da sua cultura e da sua língua, não constituiu obstáculo. Adoptaram, nas relações internacionais, a língua de um país, várias vezes, rival no passado. Consequência: ganharam, e muito. Os seus cidadãos distinguiram-se no comércio e na indústria, serviram nas instituições internacionais e brilharam nas ciências e nas tecnologias, contribuindo para os extraordinários avanços de segunda metade do século vinte. O exemplo foi emulado por outros pequenos países como a Irlanda que, não obstante o passado de dominação britânica e o seu apego à língua celta, apostou no inglês. Os retornos dessa e de outras apostas no sistema educacional fizeram-se sentir nas décadas de oitenta e noventa, lançando o país para crescimentos próximos de dois dígitos. O desemprego caiu estrondosamente e o rendimento per capita da Irlanda chegou a ser o segundo da Europa, logo atrás do Luxemburgo. No outro lado do mundo, a Índia, um país de grande passado histórico e cultural, foi sábia em manter o inglês no seu sistema de ensino e em investir fortemente nas ciências nos já famosos institutos de tecnologia da Índia (IIT). A entrada triunfal da Índia no outsourcing e offshoring de empresas TIC (tecnologias de informação e comunicação) através de call centers e outros BPOs imaginativos serviu para lançar o país como um gigante no fornecimento mundial de serviços do futuro.O sucesso desses países, e também das Maurícias e Singapura, que souberam implementar políticas de aquisição de competência linguística, consentânea com as necessidades de inserção dinâmica no mundo, contrasta com os que se retraíram na sua concha. O exemplo paradigmático disso é o Madagáscar. Depois de décadas de ensino em francês, antes e depois da independência, o regime de Ratsiraka forçou a introdução da língua malgache. A introdução dessa língua, sem os materiais didácticos necessários, levou à actual situação em que, segundo o Afrol News de 9 de Abril de 2009, nem professores, nem alunos dominam o francês, a língua usada nos exames de acesso aos níveis superiores do ensino. Também, assim com aconteceu noutros países como Aruba e Curação em que o papiamento, o crioulo local, foi autorizado como língua do sistema de ensino em certas escolas e o holandês noutras, verificou-se uma separação da população estudantil. Os filhos dos mais abastados foram para as escolas de ensino nas línguas europeias. Os mais pobres ficaram nas que o ensino é feito na língua materna. É evidente que em Cabo Verde, a opção só pode ser a abertura para o mundo. Mas construir uma economia de prestação de serviço exige competência linguística dirigida para o exterior, em especial, investimento no português, no inglês e francês. O português é a língua de ligação com a Europa mais próxima e também a língua do Brasil, com mais de 130 milhões de habitantes, e, em breve, a quinta maior economia do mundo. O inglês é a língua internacional de negócios, da ciência e da tecnologia. Fluência no inglês adquire especial relevância num País que quer o turismo como um dos principais motores da sua economia. O francês é essencial para se potenciar, com ganhos, a relação com a sub-região e o continente africano. Uma das grandes vantagens de Cabo Verde é ser uma nação homogénea do ponto de vista étnico, linguístico, religioso e cultural, não obstante a diversidade das ilhas. Por isso, o crioulo, com todos os seus variantes, não é factor de divisão. A língua não é discriminada. É falada por elementos de todos os extractos sociais e é o meio de comunicação usado na música, a expressão máxima da cultura nacional. Titulares de órgãos de soberania usam livremente o crioulo em cerimónias oficiais e os cidadãos interpelam os seus governantes e depõem nos tribunais na língua materna, sem quaisquer constrangimentos. A homogeneidade da nação caboverdiana é preciosa e rara. Não é o que se encontra em realidades aparentemente similares nas Caraíbas e outras ilhas crioulas. Essas sociedades ainda têm latentes conflitos diversos, resultantes de marcas deixadas pela sua história, como ficou demonstrado nas erupções de violência nas ilhas de Martinica e Guadalupe, em Fevereiro de 2009. (....)


domingo, janeiro 24, 2010

Fuga à responsabilidade?

Nas últimas semanas, autoridades e sociedade caboverdianas acordaram repentinamente para a violência juvenil. Na sequência de alguns crimes mais mediáticos, indivíduos, famílias e instituições lançaram-se numa espécie de catarse introspectiva à procura de razões pelo que vem acontecendo na cidade da Praia e noutros centros urbanos. O Chefe do Governo, confessou surpresa perante o fenómeno e rapidamente prestou-se a oferecer pistas para o enquadramento da questão. Em entrevista citada pela Inforpress, e registada no portal do governo, o Primeiro Ministro afirmou que “que a sociedade cabo-verdiana está excessivamente partidarizada e que o discurso dos partidos e dos políticos, pela sua agressividade, têm contribuído para aumentar o nível da violência na sociedade cabo-verdiana”. Questionado sobre o papel do Governo, o PM apressou-se a dizer que o executivo tem cumprido o seu papel, mas cabe às outras entidades (…) assumir as suas responsabilidades no combate à violência. Reacção típica! Sempre que o Governo é confrontado com algum problema liga a ficha da desresponsabilização. Aponta o dedo a outros, jura que está a fazer o seu melhor e exige que os governados assumam as suas responsabilidades. Aconteceu recentemente com a epidemia da dengue. Enquanto autoridade máxima da saúde esquivou-se em assumir a responsabilidade pela não tomada de medidas atempadas para a evitar. Isso não o impediu de culpar as câmaras municipais, ao mesmo tempo que fazia apelo a não politização da questão como forma de calar críticas à sua actuação. Comportamento similar tivera perante manifestações de insegurança da população. Nesse caso os culpados eram os “excessos garantísticos da Constituição da República” ou os tribunais e juízes que se recusavam a cooperar com a polícia na luta contra o crime. Um combate, segundo um governante, que não se compadecia com questões sebentárias do tempo da universidade. Nesse mesmo comprimento de onda, as culpas pelo elevado desemprego entre os jovens já os foi atribuído – não querem trabalhar - assim como também se procurou responsabilizar o sector privado nacional e os empresários pela insuficiente dinâmica do País. O Governo salva a si próprio, repetindo incansavelmente que já fez a sua parte e que não tem nada que assumir se os resultados da governação ficarem aquém do prometido. Nas acções de desresponsabilização do Governo um alvo é repetidamente fustigado: o pluralismo. Atribui-se aos partidos e aos políticos a responsabilidade pela crispação, a violência e a intolerância. Na entrevista, citada pelo Inforpress, o Primeiro Ministro defendeu que é preciso uma avaliação das atitudes, dos discursos e dos actos dos políticos, no sentido de se poder “valorizar mais a vivência democrática” no país, combatendo a “violência que existe na sociedade cabo-verdiana”. O problema é que quem faz essas declarações é um político e é o presidente do partido no Poder. É evidente que não está a fazer mea culpa ou a autoflagelar-se. O mais provável é que esteja engajado numa ofensiva contra outros partidos, contra outras opiniões e contra o direito de se exigir responsabilidade aos governantes. Só assim se compreende a mensagem passada que se o governo se submeter ao contraditório e a opiniões contrárias, a sociedade corre o risco de ver aumentada a violência no seu seio. O Artigo 12.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão estabelece que a garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita de uma força pública, Mas que (…) essa força pública é instituída para fruição por todos, e não para utilidade particular daqueles a quem é confiada. Ou seja, ao Estado dá-se o monopólio de violência. Mas essa violência só é legítima na defesa dos direitos dos indivíduos e enquanto servir o interesse geral. O Estado caboverdeano é um Estado fraco. Mas não é fraco por falta de recursos para o exercício da autoridade. Tem recursos suficientes. O que lhe parece escapar é legitimidade completa aos olhos da sociedade. A legitimidade que deriva da percepção geral de que o exercício do Poder serve, a todo o momento, o interesse público. E que está a ser ganha todos os dias a luta contra as tentações de se deixar instrumentalizar para atingir objectivos partidários, de se omitir ou de se intrometer em vários sectores para salvaguardar interesses particulares e de deixar-se arrastar para o fundo num mar de ineficiência e de ineficácia, sob o peso de nomeações políticas, de ambições incontroláveis e da incompetência decorrente da reivindicação de legitimidades outras, que não a democrática. Quando, como no caso grave do Zimbabwe de Robert Mugabe, não se vence diariamente essa batalha o resultado é a desgovernação, a crispação extrema da política e a violência social generalizada. No caso extremo da Somália tem-se um Estado falhado. O artigo 1º da nossa Constituição é peremptório quanto ao que é essencial para a perenidade da comunidade de homens livres: “o fundamento da Paz e da Justiça encontra-se no respeito pela dignidade humana e no reconhecimento da inviolabilidade e da inalienabilidade dos direitos do Homem”. Por tudo isso vê-se que é de extrema gravidade sugerir que, de alguma forma, a violência juvenil no País resulta da aplicação dos princípios que consubstanciam e norteiam a existência do Estado de direito democrático, como o pluralismo, a subordinação do Estado á Constituição e às leis e a liberdade de expressão e de informação. O Estado tem a obrigação central de assegurar a ordem e a tranquilidade públicas para poder garantir a Liberdade. Não pode passar a ideia de estar a perder batalhas contra o crime, omitindo-se no que obviamente são intervenções preventivas incontornáveis. Em três áreas, particularmente, o Estado caboverdeano vem pecando ao longo dos anos por falta de políticas consequentes: consumo da droga, consumo do álcool e o comércio de armas: Na droga, não confrontou o problema da cocaína barata, chamada popularmente de pedra, mas conhecida em todo o mundo como crack, e a sua ligação como os casso bodi. Os efeitos do crack são efémeros, mas fortes e altamente viciantes. Duas experiências com a droga podem ser suficientes para se tornar num tóxico-dependente, vendendo tudo, e mais, para alimentar o vício. A não assunção do que noutros países se chamou de epidemia de crack foi grave. Famílias ficaram por saber o que de facto afligia os filhos. A comunicação social tardou em passar a mensagem que se consumia uma outra droga, mais perigosa do que a padjinha. Redes de receptadores consolidaram-se nas ilhas para comercializar o produto das vendas de mercadorias roubadas. O grogue, mau e barato, disfarçado em caipirinhas, pontches, licores e estomperódes, tornou-se bebida de eleição dos jovens nos meios urbanos e também rurais do País. Disponível para consumo em mercearias, bares e balaios de vendedeiras de rua, e preferido por muitos pelos seus efeitos intoxicantes imediatos, o grogue falsificado tem conhecido um boom extraordinário. A produção cresceu muito e, na ausência de um esforço dirigido do Estado para pôr cobro à situação, também aumentaram exponencialmente os prejuízos causados. Os produtores do bom grogue sucumbiram no combate desigual, assim como também perderam o Tesouro, em receitas não cobradas, e o País, em exportações não realizadas, por incapacidade de colocar em mercados externos um produto de qualidade garantida. O alcoolismo, engendrado pela ausência de regulação, tem, por outro lado, provocado a sobrecarga dos serviços de saúde, a destruição de famílias, o corte a meio de vidas e carreiras e a diminuição da produtividade nacional em horas de trabalho perdidas. Certamente que não é estranho às explosões de violência juvenil o facto de se tolerar o comércio e o consumo ilegais de produtos, crack e mau grogue, indutores de alterações de comportamento. Particularmente, quando as leis e as autoridades são permissivas em relação ao acesso e porte de armas e é mínima a pressão social ou de grupo para não se andar armado e não ameaçar outros, brandindo armas. A experiência dos outros mostra que a proliferação de armas na população aumenta a probabilidade do seu uso para resolver conflitos pessoais e cometer crimes. A Polícia Nacional, segundo estatísticas oficiais, até 2008, apreendeu 1.961 armas (1.283 pistolas, 488 revólveres e 190 espingardas), sendo 8% de fabrico artesanal, os chamados boca bedjo. E pode ser só a ponta do icebergue. O Estado caboverdiano precisa passar à ofensiva e cobrir os flancos que tem deixado abertos no domínio da droga, do grogue falso e do porte de armas. É urgente que o governo faça avançar leis para controlar a venda, porte e uso de armas de fogo e de outros instrumentos letais. A questão do grogue tem que ser resolvida a bem da economia rural de muitas regiões do país, a começar pela ilha de S.Antão, mas com ganhos globais para os proprietários de cana, os produtores de grogue, os exportadores, e os consumidores. Na luta contra a droga não se pode descurar as interligações internacionais do tráfico mas deve-se procurar transformar as desvantagens da insularidade em vantagens, imprimindo uma maior flexibilidade à actuação das forças da ordem. Para o sucesso no combate ao crime e á violência não pode haver dúvidas sobre o seguinte: O pluralismo, a tolerância e a vivência democrática dependem muito da subordinação, sem ambiguidades, do Estado à Constituição e às Leis. E capital social necessário para controlar paixões, introduzir propósito alargado nas actuações individuais e justificar sistemas de compensação baseado no mérito emerge naturalmente do exercício da cidadania plena e da aquisição de cultura cívica. A nossa sociedade tem tensões de origem múltipla e a nossa esperança em as resolver reside em aprofundarmos cada vez mais a institucionalização da nossa democracia. Não em a denegrir e minar com tentativas de fuga à responsabilidade.

domingo, janeiro 10, 2010

Quando impera o “expedientismo”

No Boletim Oficial de 28 de Dezembro último, foram publicadas duas Resoluções do Governo, concernentes à problemática da energia, que autorizam a Ministra da Economia a negociar e a contratualizar com empresas portuguesas, dispensando concursos, público e limitado, e a adjudicar obras, em ajustes directos A primeira, a Resolução nº 43/2009, justifica a autorização com a necessidade urgente de elaborar e concretizar um plano energético renovável para o arquipélago de Cabo Verde, um Plano de Investimentos em infra-estruturas que viabilize as metas desse plano, um Atlas das fontes de energia renováveis, um quadro legal que viabilize e apoie esse plano. A segunda, a Resolução nº 44/2009, reage à possibilidade de uma situação de emergência energética nas ilhas do Sal e de Santiago a partir do verão de 2010. Dois dias depois da publicação das resoluções, a Ministra assinou com a empresa Tecnologia, Representações e Comércio (TRC) a instalação imediata de dois grupos térmicos de produção de energia como futuro back up de duas centrais de aproveitamento da energia solar, ainda por construir. Uma semana depois, no dia 5 de Janeiro, contratualizou com a empresa GeSto Energia, S.A do Grupo Martifer a feitura do plano para as energias renováveis e com a Martifer Solar a instalação de duas centrais fotovoltaicas. As múltiplas incongruências no processo, designadamente o facto de se optar primeiro e fazer o plano depois, ou então autorizar a negociação hoje e assinar contratos amanhã, justificam-se, na óptica do Governo. O dinheiro existe. Está disponível uma linha de crédito de 100 milhões de euros, avalizada por Portugal num quadro de apoio às suas exportações de bens e serviços. E se, de acordo com o preâmbulo da segunda resolução, só há uma única empresa portuguesa no sector “escolhido”, então, a “negociação” só pode ser instantânea. A dúvida é se Cabo Verde ganha com tais processos. Porque o País aumenta a sua dívida pública e obriga-se a soluções sem estudos prévios e fora de um quadro de políticas públicas adequadamente definidas. Por outro lado, dificilmente fica melhor preparado para construir o seu próprio sector exportador, quando está demasiado preocupado em ir ao encontro das necessidades dos outros em exportar. 2010 é um ano pré-eleitoral. O Governo, certamente, não olhará a meios para evitar que se retire todas as ilações de uma década de políticas desastrosas no sector de energia. Não quer que se lembre como manipulou as tarifas para a sua vantagem política, descapitalizando a Electra e quebrando a confiança de parceiros estratégicos. Ou como, por muito tempo, esquivou-se a assumir a responsabilidade pelo que se passava na empresa, não obstante ter negociado e assinado o contrato de concessão com Electra, acompanhado do plano de investimentos e do acordo tarifário. Para depois, em sucessivos actos, simultaneamente arrogantes e ingénuos, forçar a saída dos parceiros e deixá-los ir, ilibados de quaisquer responsabilidades na mobilização de 250 milhões de dólares previstos para o financiamento da Electra em 15 anos. Os parceiros ficaram livres até da responsabilidade pela amortização dos primeiros investimentos no valor de 70 milhões feitos sob a sua direcção. A emissão de obrigações pela Electra, em 2007, avalizada pelo Estado, não trouxe dinheiro fresco para o investimento na empresa. Serviu para o pagamento dos parceiros. Contraía-se uma dívida para pagar outra. As dificuldades conhecidas da empresa fazem do pagamento dos juros das obrigações um pesadelo e da restituição, em 2012, do capital da primeira série de obrigações, no valor de 1 milhão e 142 mil contos, uma missão quase impossível. Cabe ao Estado, enquanto avalista, assumir, em caso de não cumprimento. O problema é como reflectir isso no Orçamento, precisamente quando o défice orçamental se aprofunda, a dívida externa aumenta e as receitas tendem a decrescer. O episódio recente de entrada do INPS no capital da Electra dá indícios de como o Governo, provavelmente, vem contornando o problema. O INPS acode a ELECTRA em mais de 500 mil contos para fazer face a necessidades urgentes. No momento seguinte, perante a impossibilidade da empresa em pagar e do Estado em entrar com esse montante para não agravar o défice, o empréstimo é transformado em acções. O instituto de segurança social vê-se assim, constrangido a ser accionista, mesmo que o não confesse e recorra à possibilidade de rentabilidade futura da Electra para se justificar, quando tal depende de investimentos vultuosos por fazer e de garantias seguras, que não tem, da não manipulação política das tarifas. Entretanto, torna-se co-responsável por uma empresa que cada vez se atola em dívidas múltiplas à medida que, de expediente em expediente, o Governo procura driblar os problemas sérios da falta de investimento e de uma política energética global para o país. Há um mês atrás decidiu-se pelo break up da Electra em várias empresas. Segundo o comunicado do Conselho de Ministros de 26 de Novembro as novas empresas continuarão nas áreas de produção, transporte, distribuição e comercialização de electricidade e como concessionárias da rede de transporte e distribuição de electricidade e água. Com essa medida não se vê qual a alteração profunda de filosofia sobre o que actualmente existe, considerando que o País é um arquipélago e a descontinuidade territorial já faz a empresa funcionar como um aglomerado de entidades autónomas. A par com os custos acrescidos de gestão, a solução encontrada, aparentemente só abre o caminho para entrada de capitais privados nas ilhas de maior rentabilidade, deixando no sufoco, ou a mercê das disponibilidades públicas, as ilhas como menor potencial. Com tal projecto de reestruturação dá-se impressão de movimento quando o mais provável é que se está simplesmente a acomodar soluções já existentes na ilha do Sal e na Boavista e outras previstas no interior de Santiago. Uma abordagem diferente, em sintonia com o que se passa no mundo com a criação dos chamados smart grid, teria a rede eléctrica no seu centro. A rede é do domínio público e constitui um monopólio natural. Separando o sector da produção ter-se-ia uma empresa de transporte e distribuição de energia cujo negócio central seria comprar energia o mais barato possível, garantir acesso a produtores com base em energia eólica e solar, eliminar as ineficiências, perdas e roubos, e chegar ao maior número de consumidores. Tal empresa desenvolveria uma outra cultural empresarial, virada para a satisfação dos clientes e a contenção dos custos de electricidade, distinta da actual da Electra que é preponderantemente uma cultura de produtora de energia. O Governo, porém, parece preferir saltar de expediente em expediente e seguir o caminho de maior facilidade. Por isso é que governantes no sector já deram voz a toda espécie de soluções para a energia. Até a energia nuclear já teve o seu momento. Para além da energia eólica, que estudos diversos apontam um vasto potencial em Cabo Verde, têm-se referido a energia das ondas do mar, a geotermia. Agora de repente, via as Resoluções do Governo referidas, sabe-se que o interesse imediato vai para a energia solar e que duas centrais fotovoltaicas no total de 5 Megawatts vão ser adquiridos de Portugal. É interessante notar que Portugal neste sector está, relativamente, no início, enquanto que em relação à energia eólica (15,03% da electricidade), segundo o jornal Público de 6 de Janeiro, é o segundo país do mundo, logo atrás da Dinamarca (mais de 20%). Fica-se numa espécie de deriva no sector energético quando não se trabalha no quadro de uma estratégia que consubstancia uma visão compreensiva para o sector, defina as prioridades e estabeleça a sequência de acções num plano de execução. O resultado é que entram a condicionar as decisões, para além das restrições específicas das linhas de crédito, interesses outros designadamente os de apresentação rápida de obras em tempo de eleições. Sem falar de eventuais constrangimentos ainda existentes nas relações com a EDP, empresa que hoje se perfila como a quarta mundial em energia eólica. A leveza como se assume medidas no sector é, ainda, ilustrada pela forma como se procurou sensibilizar no sentido de poupança de energia. As acções centraram-se na iluminação e reduziram-se essencialmente a esses exercícios públicos de entrega de lâmpadas de baixo consumo às populações, presididos por ministros e outros putativos doadores. Um esforço no sentido de criação de incentivos para, nomeadamente promover a utilização de electrodomésticos de maior eficiência energética e substituir as soluções actuais de aquecimento de água por soluções solares passivas, criando vários postos de trabalho no processo e aumentando a renda familiar disponível, ficam em banho-maria. O resultado é que, em vez de políticas públicas claras, tem-se um manto de retalhos, cosidos ad hoc, onde reina a falta de transparência e interesses diversos se entrincheiram, elevando os custos e pondo em questão os objectivos pretendidos. Prejudicada fica também a própria forma como a população vê a actuação dos governantes e dos políticos em geral, quando, recorrentemente, soluções apresentadas como definitivas para os problemas rapidamente se revelam insuficientes ou insustentáveis a prazo. O cinismo quanto à actuação dos poderes públicos agrava-se ainda mais quando há omissões no discurso oficial como aconteceu recentemente em relação ao aeroporto de S.Vicente. Só depois da inauguração da capacidade do aeroporto em receber voos internacionais é que se veio a revelar que afinal tais operações só podem ser diurnas. A reacção quase de resignação perante mais uma expectativa frustrada - mesmo que se diga que não foi alimentada, mas também não foi contrariada - não deixa de ser debilitante para o espírito da combate, de perseverança e de crença num futuro melhor que se quer permanente nas pessoas. É o preço que se paga quando as autoridades insistem no “expedientismo”. Leva inevitavelmente a uma relação entre governantes e governados menos do que a honesta, prejudica a transparência e, em termos de resultados, os custos, muitas vezes, acabam por ser maiores do que os benefícios.

terça-feira, dezembro 29, 2009

Em prol do pluralismo

A sociedade caboverdeana ainda lida mal com o pluralismo. O exercício do contraditório e o confronto de ideias são, muitas vezes, tidos como perda de tempo. Consenso parece o nirvana nas relações na esfera pública. È celebrado mesmo significando na maior parte dos casos o desejo de uma parte em submeter a outra em nome de interesses profundos da Nação com os quais diz estar indissoluvelmente ligados. Encontros de socialização, organizado pelos poderes públicos e invariavelmente iniciados e encerrados por membros do Governo, tornaram-se no modelo preferido de interacção com a sociedade. Na generalidade dos casos não passam de um ritual onde se simula a discussão pública de matérias, já aprovadas pelo Governo. As dificuldades com o pluralismo advêm, em boa medida, do facto de, ainda, ser visto, em sectores poderosos de influência política e ideológica, como uma espécie de dádiva à sociedade. Diz-se que resultou de uma decisão da abertura política. A insistência nesse ponto responde à preocupação de justificar o regime de partido único e os seus dirigentes. Segundo eles a decisão no sentido do pluralismo só foi possível quando a sociedade se mostrou pronta para isso, ao contrário do que aconteceu nos primeiros 15 anos. Um dos problemas com esse argumento é que apresenta o pluralismo como um processo gradual. Daí, é um passo para se cair na tentação de o limitar, consoante o grau de maturação sócio-político que se presume existir no momento, de o dosear, em nome do pragmatismo na tomada de decisões, e, mesmo, de o sacrificar, pontualmente, por razões de Estado. Prejudica o aprofundamento do pluralismo a incapacidade de extrair na plenitude o sentido da sua consagração na Constituição de 1992. Pluralismo não é um ganho, muito menos, uma dádiva. Resulta directamente do respeito devido à dignidade humana de cada indivíduo. Suporta-se no reconhecimento da inviolabilidade e a inalienabilidade dos direitos do Homem como fundamento da comunidade humana, da paz e da justiça, assim como está estabelecido no artigo 1º, nº1 da Constituição. Realiza-se, quando se aceita que há um limite a partir do qual nenhuma autoridade, muito menos a autoridade política do Estado, deve procurar coagir a consciência do indivíduo para o levar a ser o que não é e o que não quer ser. Regimes totalitários distinguem-se pela sua profunda negação do pluralismo. E definem-se pela disposição em ir para além desse limiar e a partir daí encetar a construção do homem novo. A derrota estrondosa desses regimes, simbolizada na Queda do Muro de Berlim, revelou o quão a natureza humana e o desejo de liberdade são obstáculos intransponíveis nas tentativas de engenharia do homem novo. A desumanidade desses projectos ficou patente nas crueldades, nas humilhações e na miséria que fizeram passar largas centenas de milhões de pessoas, por todo o mundo, em fomes provocadas, massacres, prisões, torturas e campos de reeducação. O totalitarismo ficou desacreditado mas isso não significa que impulsos de natureza totalitária deixaram de se manifestar. Isso é visível em muitos dos ataques ao sistema de partidos, ao parlamento e a órgãos de comunicação social. Como bem disse o grande diplomata americano George Kennan, o busílis da questão é que há um bocadinho de totalitário enterrado algures, lá muito para o fundo, em todos e cada um de nós. Por isso mesmo é essencial manter uma democracia funcional, de respeito pelos direitos fundamentais e dotado de um Estado cumpridor da Constituição e das Leis. A centralidade da democracia em manter os checks and balances (pesos e contrapesos) nas manifestações da natureza humana é realçada pelo filósofo Reinhold Niebuhr quando diz: “é o desejo de justiça do Homem que torna a democracia possível, mas é a tendência do Homem para criar injustiças que faz a democracia indispensável. O contencioso à volta das origens do pluralismo em Cabo Verde dificulta a eliminação de valores e práticas, particularmente na actuação de instituições do Estado, que não o favorecem. Um exemplo recente é a comemoração do dia da comunicação social em Cabo Verde. Devia saltar à vista imediatamente que a tomada da Rádio Barlavento no dia 11 de Dezembro de 1974 não seria a melhor data para se celebrar a liberdade de expressão, a liberdade de informação e a garantia de expressão e de confronto de ideias das diversas correntes de opinião nos meios de comunicação social do Estado. Essa data marcou o fim das rádios e jornais privados e o início da institucionalização da comunicação social a uma só voz. O processo de centralização numa rádio nacional única, então desencadeado, nem poupou a rádio Voz de S. Vicente, nascida nesse dia. Não existe uma sensibilidade crítica quanto ao limite do que é permitido ao Estado e aos seus dirigentes fazer sem ferir o direito das pessoas à sua consciência, às suas convicções e às suas ideias. É-se particularmente insensível quando se trata da juventude e da infância. A Constituição da República em vários artigos condiciona, firme e claramente, a relação do Estado com os jovens e as crianças. Assim o artigo 49º alínea c) proíbe o Estado de programar a educação e o ensino segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas. No artigo 81º nº 4 garante aos pais o direito e o dever de orientar e educar os filhos em conformidade com as suas opções fundamentais. No artigo 74º do direito dos jovens restringe o apoio do Estado aos jovens exclusivamente à realização dos objectivos constitucionais (desenvolvimento da personalidade, gosto pela criação livre, sentido do serviço à comunidade e integração em todos os planos da vida activa). E mesmo assim não deve ser nunca de forma directa mas em cooperação com organizações de pais e outras organizações, designadamente juvenis, como estabelece o nº 4 desse mesmo artigo. Essas restrições constitucionais, que claramente proíbem a influenciação politico ideológica das crianças e jovens, são basicamente ignoradas. Notícias, reportagens e imagens televisivas dão conta de encontros, palestras, aulas nos liceus em que crianças e adolescentes são compelidos a ouvir discursos de dirigentes políticos vestidos da autoridade do Estado. È evidente que o que está na Constituição é uma reacção forte a toda a instrumentalização de crianças e jovens nas organizações de massa verificada durante o regime de partido único. Mas também é uma acção defensiva para garantir o pluralismo na sociedade evitando que futuros cidadãos sejam arregimentados em fase ainda frágil e permeável por forças poderosas alcandoradas no aparelho do Estado. O que aconteceu com o dia das crianças é elucidativo em vários aspectos. Até 2004 era festejado em todas nas escolas no 1º de Junho. A partir do momento em que voltou a ser feriado, as notícias do dia convergem invariavelmente para encontros de grupos de crianças com o Primeiro Ministro ou com o Presidente da República. Uma outra ameaça ao pluralismo é intervenção excessiva do Estado na divulgação do trabalho governamental. O Governo tem miríades de oportunidades no parlamento, em forum, workshops, cerimónias de lançamento de primeira pedra, visitas, inaugurações e entrevistas para transmitir a sua mensagem e divulgar o trabalho governamental com toda a transparência. Parece que não lhe chega. Resolveu montar uma máquina específica para fazer isso, mas sem qualquer restrição, mediação ou contraditório. Ou seja, resolveu forjar uma máquina de propaganda. Para isso pôs no Orçamento de Investimento o montante de 30 mil contos, acrescido de mais 3 mil contos em comunicação e imagem. Fica-se com uma ideia das prioridades do governo quando se compara esse montante com os 43 mil destinados a Cabo Verde Investimentos. Ou o trabalho, supostamente essencial para economia que é a atraccão de investimentos e a criação de novos empregos, não merece mais ou, então, para o Governo, o trabalho de propaganda está acima de outras considerações de momento. Por isso, também, é que não tem rebuços em destinar à propaganda 2 mil contos mais do que os 31 mil contos que o Estado transferia aos municípios para a actividade de Promoção Social. É evidente que a liberdade de informar, de ser informado e de acesso à informação é seriamente posto em causa quando o Governo torna-se excessivamente agressivo na sua comunicação com a sociedade. A comunicação social em Cabo Verde é frágil. Os três jornais são semanários e têm residência na capital. A informação radiofónica e televisiva é essencialmente feita através de órgãos públicos. Em tal ambiente, são inevitáveis os estragos quando o governo usa fundos públicos fabulosos para, em programas sofisticados de televisão, passar o seu ponto de vista do impacto das suas políticas, sem qualquer hipótese de competição de outras correntes de opinião. Sofre o pluralismo, inibe-se o cidadão que se sente coagido a seguir as posições do governo e mitiga-se a democracia com a proclamação de que as obras são patrióticas e portanto não sujeitas a críticas. No fim do dia, acaba-se sempre por sacrificar a verdade e em pôr em causa a relação honesta que os governantes devem ter com o País. Puralismo e tolerância andam de mãos juntas. Não há uma sem outra. Enfraquecendo o pluralismo, a intolerância aumenta, a crispação e a violência política atingem outros patamares. Nesta época de Natal que se quer de Paz e de Justiça é fundamental que todos se lembrem do dito: ninguém é inocente mesmo quando se acredita que tudo o que está a ser feito é com a melhor das intenções. Poder corrompe e a única forma de conter os seus nefastos efeitos é através da evolução gradual das instituições, com bem referiu o presidente John Kennedy. Essa evolução só é possível com pluralismo. O próximo ano será do recrudescer da agitação pré-eleitoral, que entrou antes de tempo com o surgimento da crise. Só será um ano proveitoso se se souber manter um ambiente plural gerador de tolerância para aceitar a diversidade de posições e interesses e para escutar diferenças de opinião. Um novo rumo irá ser traçado para o País. É essencial que os cidadãos não se sintam constrangidos na discussão das propostas e em fazer livremente as suas escolhas.

quinta-feira, dezembro 17, 2009

Cabo Verde 1989-90: Cai o 1º dominó em Africa

Comemorou-se no passado dia 9 de Novembro o décimo quinto aniversário da Queda do Muro de Berlim. As imagens desse extraordinário dia ocuparam mais uma vez os ecrãs das televisões em todo o mundo. Milhões reviveram os momentos por que passaram no seu próprio país até conseguirem libertar-se do comunismo. Muitos outros milhões lembraram-se como a queda do Muro lhes trouxe esperança. Como regimes totalitários em todos os continentes de repente deixaram de meter medo e multidões derramaram-se nas ruas clamando pela Liberdade, pela Democracia e pelo direito a uma vida melhor, mais próspera, mais justa. Ao longo do 1989, nos então satélites da União Soviética, a revolução democrática já se tinha posto em movimento. Na Polónia, Lech Walesa, o líder do movimento sindical Solidariedade desde 1980, já tinha causado brechas suficientes no regime, abrindo caminho para um primeiro governo não comunista, em Setembro. Hungria, nos fins de Outubro, precipitava-se rapidamente em direcção ao multipartidarismo. Quase duas semanas depois da queda do Muro de Berlim, em Novembro, Checoslováquia viveu a sua Revolução de Veludo e o fim do jugo soviético. Na Roménia a experimentação comunista iria terminar de forma sangrenta com o fuzilamento de Ceaucescu e da sua mulher no dia de Natal. O ano 1990 arrancou com as imagens macabras dos Ceaucescu a assombrar todos os ditadores por esse mundo fora. Em Fevereiro, na União Soviética, o partido comunista deixou cair da Constituição o artigo 6º que o consagrava como força e guia da sociedade e do Estado. Dias depois, em Cabo Verde, o então partido único, o PAICV anunciava a abertura política. Num comunicado emitido a 19 de Fevereiro predispôs-se a abandonar a sua condição de força dirigente da sociedade e do Estado, o célebre artigo quarto, numa revisão constitucional a realizar-se na legislatura pós 1991. Eleições pluripartidárias só seriam realizadas em 1995. Samuel Huntington, o grande cientista político americano, considerou as democratizações em cadeia que se verificaram na sequência da queda do Muro de Berlim como parte de Uma Terceira Vaga de Democracia, que iniciara 25 anos antes com o 25 de Abril em Portugal. Cabo Verde falhou em apanhar a onda democrática de 1974. Por isso, em 1990, era um dos dominós em queda, no quadro do que Ken Jowit, recorrendo á analogia dos dinossauros, chamou da Extinção Leninista, ou seja, o desaparecimento repentino, acelerado e compreensivo de regimes leninistas em todo o mundo. A assinatura do Acordo de Independência de Cabo Verde a 19 de Dezembro de 1974 culminou acontecimentos, verificados no arquipélago poucos meses antes, que serviram essencialmente para entregar os destinos do país nas mãos de um único partido, o PAIGC. Uma cumplicidade tinha-se desenvolvido entre a cúpula desse partido e elementos chaves do Movimento das Forças Armadas (MFA), próximas do partido comunista português. Na sequência da denúncia de uma intentona contra os dirigentes do PAIGC, nunca provada, desencadeou-se, com a ajuda da tropa portuguesa, um movimento de supressão da oposição, da liberdade de expressão e do pluralismo. As forças políticas, UPICV (União dos Povos das Ilhas de Cabo Verde) e UDC (União Democrática Caboverdeana) foram perseguidas e os seus dirigentes presos, enviados para o Campo de Tarrafal e posteriormente levados para o exílio em Portugal. As rádios calaram-se com a tomada da Rádio Barlavento em S.Vicente a 9 de Dezembro, passando a partir daí a transmitir a única voz do PAIGC. Para o Dr Almeida Santos, o negociador –mor da descolonização portuguesa e um dos signatários do Acordo, em entrevista concedida ao jornal Público de 11 de Abril de 2004, tudo se passou da seguinte forma:(…) os militares fizeram pressão para que houvesse descolonização rápida. Também houve um ultimato de lá para cá, a dar cinco ou oito dias para o Governo português entregar o poder ao PAIGC, sob pena de entregarem eles lá. (…) Chamei o Pedro Pires. Pedi-lhe que aceitasse uma consulta popular. Vocês ganham a consulta popular por 90 por cento e nós salvamos a face. Ganham a legitimação democrática do novo poder. Nunca mais será discutido. Se você o recebe da mão de militares, toda a vida será discutido. (…) Assinámos o acordo e ficou descolonizado Cabo Verde. Fiz uma lei eleitoral. Houve uma grande participação da população. Eles ganharam por 92 por cento. Elaboraram uma Constituição. Acabou. Salvámos a face". Com o Acordo consagrou-se o desvio dos caminhos da democratização iniciado pelo 25 de Abril. Enquanto Portugal ganharia uma Constituição liberal e democrática em 1976, Cabo Verde ficaria com um regime contrário ao exercício das liberdades e pouco eficaz em potenciar oportunidades e recursos disponibilizados para o desenvolvimento. Treze anos depois, em 1988, a cúpula do regime deparava-se com o fracasso das suas políticas económicas e com os sinais dos tempos evidentes nas políticas de perestroika (reestruturação) e glasnost (transparência) de Mikhail Gorbatchev na União Soviética. O III Congresso do partido, em 1988, com o lema um mundo em transformação, devia ser de fuga em frente. Perante a perspectiva de 40% de desemprego nas zonas urbanas num futuro próximo, expressa no Ante Projecto das Teses ao III congresso, pendia-se finalmente pela extroversão económica e pela atracção do investimento externo. Em resposta à pressão crescente para o exercício das liberdades ensaiava-se a introdução do conceito de sociedade civil, a par com a insistência nas organizações de massas. Mas, passado o congresso, tudo acabou por ficar, essencialmente, por aí: no campo das boas intenções. O partido voltou a insistir nos seus princípios leninistas de partido de vanguarda e de fidelidade ao centralismo democrático. A abertura económica viu-se bloqueada nas disputas ideológicas internas, reflectindo a desconfiança contra o sector privado nacional e o investimento directo estrangeiro. A ideia da sociedade civil, de acordo com João Pereira Silva, num artigo do jornal Tribuna de Março de 1990 ,“a questão política mais importante,... a questão da necessidade da existência de uma sociedade civil livremente organizada, [foi] ...resolvida por uma votação que cortou o debate a meio”. Uma segunda tentativa de fuga em frente viria verificar-se com a abertura política de 1990, sob a pressão irresistível de destruição do ecosistema que até ali tinha permitido a existência de regimes totalitários. Tarde demais. A dinâmica local e global era já outra e o regime iria cair a 13 de Janeiro de 1991. O facto de Cabo Verde esperar quinze anos para aderir à Terceira Vaga da democracia não custou ao País só em liberdades individuais. Também manteve incipiente a instituição de um Estado moderno e de Direito e impediu a constituição de um stock adequado de capital social e humano, hoje reconhecido como indispensável a um crescimento económico acelerado e à uma luta efectiva contra o desemprego estrutural. Países africanos como o Botswana e as ilhas Maurícias, que optaram por governos democráticos, um estado de Direito moderno e uma economia privada e de inserção dinâmica na economia mundial, deram saltos extraordinários. Dados oficiais coloca-os, hoje, respectivamente, nos 13000 e 12000 mil dólares per capita (PPP), enquanto Cabo Verde fica pelos 3400 dólares. Se se tiver em conta que, com a independência nacional, Bostswana partiu de uma base 80 dólares per capita e Cabo Verde de uma base de 200 dólares, vê-se o potencial de crescimento económico perdido. Poder absoluto, preconceitos ideológicos e falta de visão convergiram durante anos para atrasar o que podia ser uma evolução do País mais dinâmica, sustentada e abrangente. As sequelas desse atraso, não obstante as profundas reformas iniciadas a partir dos anos noventa, ainda se fazem sentir e constituem um extraordinário empecilho ao aproveitamento pleno das potencialidades do País e das oportunidades que recorrentemente aparecem. A Constituição da República, o contrato que une a comunidade de caboverdianos livres e obriga o Estado de Cabo Verde, os seus orgãos e os seus dirigentes, define como seus princípios básicos a soberania popular, o pluralismo de expressão e de organização política democrática e o respeito pelos direitos e liberdades fundamentais. A ética republicana exige que não se use a glorificação do passado como subterfúgio para imprimir uma nova vida a valores e princípios contrários à Constituição. Estão especialmente impedidos disso os titulares dos órgãos de soberania que juraram cumprir e fazer cumprir a Constituição. O passado deve ser visto à luz dos valores de hoje. Para que, quando evocado, a Nação se una, se engrandeça e se mobilize para construir o futuro de Liberdade e de prosperidade para todos.

domingo, novembro 29, 2009

Orçamento do Estado 2009 -discurso parlamentar

O Governo através da Sr Ministra de Finanças vem afirmando que o actual Orçamento do Estado é ambicioso e prudente. Na nossa opinião o que lhe falta em ambição sobra-lhe em imprudência. Compreende-se. É um orçamento que quer gerir expectativas e visa a sobrevivência política da actual maioria. Por isso, os fins justificam os meios. Ou como disse o Sr. Primeiro Ministro no ano eleitoral de 2005, é hora da chupeta.

A crise veio revelar que o Rei ia nu. As acções, omissões e teimosias do Governo já tinham desperdiçado oportunidades várias. Antes da crise já era evidente que o governo não iria cumprir a promessa da legislatura em fazer o país crescer a dois dígitos e baixar o desemprego para um dígito. Depois da crise temos este orçamento que insiste essencialmente nas mesmas políticas, com o agravante que agora endivida pesadamente o País para as aplicar.

A Sra. Ministra das Finanças compara favoravelmente a taxa de crescimento de Cabo Verde com a taxa de economias maduras com a dos Estados Unidos ou da União Europeia. Aliás com a generalidade dos países, com excepção da China e da Índia.

A falácia nesse raciocínio fica evidente quando se correlaciona taxa de crescimento e emprego. A América com a taxa de crescimento de 4, 5 % aproxima-se do pleno emprego. Enquanto que Cabo Verde com tal crescimento está longe do seu crescimento potencial e convive com desemprego a mais de 22%. Economias maduras crescem essencialmente com base na produtividade e na inovação, enquanto economias em desenvolvimento têm muito ainda a ganhar com a diminuição de custos de transacção e de contexto e com o aumento de eficiência dos seus mercados. Daí a disparidade das taxas de crescimento.

Crescimento está intimamente ligado ao modelo económico adoptado. O Governo insiste numa economia baseada no trinómio CONSUMO, AJUDA e IMPORTAÇÔES. Por isso o crescimento é raso, não se criam empregos suficientes e a pobreza não é reduzida. Com este orçamento, o governo mantém o modelo falhado, mas face à diminuição dos donativos mostra-se disposto a substituir AJUDA com DÍVIDA. Pior emenda que o soneto.

A Sra. Ministra de Finanças diz que os créditos são concessionais e há que os aproveitar. O problema é que só são concessionais na aparência. Têm taxas de juro baixas mas impõem condições custosas: restringem quem pode fazer as obras, onde se pode comprar bens e serviços e em quê se pode aplicar o crédito. Já avisava Adam Smith que “pessoas com a mesma actividade económica quando se encontram, inevitavelmente a conversa termina com uma conspiração contra o público ou então em alguma conivência para aumentar os preços”. Observadores vários põem em mais de trinta por cento o empolamento geral do custo das obras.

Mas há outros custos para o país. Custos a curto, médio e longo prazo. A curto prazo, perde-se no emprego que se podia ter gerado com uma outra gestão e uma outra escolha de prioridades para o uso do crédito. A médio prazo, Cabo Verde perde por não ter aproveitado uma oportunidade de infraestruturação para dar dimensão ao seu sector de construção civil. A longo prazo, sem empresas internacionalizadas e sem um sector de exportação activo, todos perdem com o sufoco das dívidas por pagar e com os custos de infraestruturas de racionalidade económica duvidosa ou marginal.

A Sra. Ministra das Finanças desafiou a Oposição a ir à Internet e ali encontrar imitadores das soluções de estímulo fiscal propostas. O problema é que todos dispensam tal originalidade que só tem sentido no quadro de uma economia com base em consumo, ajuda/dívida e importações. Para quem já viu que tem de crescer, e depressa, e de forma sustentável, o estímulo fiscal tem uma outra lógica. Vai para as empresas que criam emprego e incentiva o desenvolvimento de sectores de exportação de bens e serviços, sem descurar as necessidades dos mais vulneráveis em tempos de dificuldades.

Cabo Verde tem que abandonar o modelo CONSUMO, AJUDA/DÍVIDA e IMPORTAÇÕES e ir por um caminho que privilegie PRODUÇÃO, INOVAÇÃO E EXPORTAÇÕES. É o caminho certo para a solução rápida do emprego. Cabo Verde aprendeu isso quando arrancou com indústrias exportadoras e o desemprego baixou para os 17% em 2000. Recentemente voltou a confirma-lo com o Turismo. Mas como da outra vez a falta de visão deste Governo serviu para enfraquecer o sector exportador levando, primeiro, à perda de milhares de postos de trabalho na indústria e, mesmo antes da crise, à falta de dinâmica no turismo traduzida, designadamente, na baixa taxa de retorno dos turistas

O Orçamento do Estado ora apresentado peca ainda por falta de transparência designadamente no que respeita à relação com o sector empresarial do Estado (Electra, TACV, ASA, IFH) e o nível de risco com poderá incorrer a médio prazo,. A Sr. Ministra de Finanças, por exemplo refere-se a um subsídio de 100 mil contos á TACV como sendo a única intervenção financeira do Estado nessa empresa. Mas pergunta-se o que é o crédito de um milhão e mais de contos que a ASA vem concedendo á TACV, senão um subsídio do Estado disfarçado. Amanhã se a ASA tiver problemas será o Tesouro a acarretar com as consequências.

Como aconteceu aliás com a Electra. A empresa foi descapitalizada subsidiando o preço de energia e agua aos consumidores enquanto o Governo beneficiava das vantagens políticas de não alteração significativa dos preços mesmo após dois ou três aumentos do preço de combustível. O resultado viu-se na saída do parceiro estratégico, nos graves problemas no sector de energia e água que, ainda hoje, se debate com o problema de falta de investimento suficiente para suprir as necessidade do crescimento do país. O Governo há dias referiu-se aos 10 milhões de contos já investidos. A previsão no momento de privatização em 1999 era de 25 milhões contos em 15 anos. É evidente que se está muito aquém do que já se poderia ter feito com uma outra gestão que não a desastrosa feita por este Governo. Os custos disso tudo espalham-se por aí em produtividade perdida por falta de energia e em despesas não previstas na aquisição de grupos de geradores privados.

Concluindo, quero dizer que perante este orçamento e a insistência do Governo em políticas falhadas quem fica sem pernas para andar não são as críticas da oposição mas sim os milhares de caboverdianos no desemprego e que não vêm no trabalho temporário previsto a solução para os seus problemas.

domingo, novembro 08, 2009

A Crise, o Pós Crise e a Nova Atitude

O livro “A Crise, o pós Crise e a Nova atitude” é uma colectânea de textos escritos entre 2007 2 2009. O objectivo pretendido com a sua publicação é de contribuir para o debate sobre o futuro no momento em que ficou claro para todos que o País está a perder a luta contra o desemprego, a meio de omissões várias e de opções erradas. Fala da crise porque a crise marcou o fim de um período. Um período caracterizado pelo crédito fácil e pela expansão rápida do comércio internacional, e , por isso, cheio de oportunidades extraordinárias. O facto de ter chegado ao fim e a as oportunidades não terem sido aproveitadas devidamente obriga a pensar e a procurar saber o que falhou. Como é que num tempo de vacas gordas Cabo Verde não conseguiu diminuir o desemprego e crescer a níveis aceitáveis? . Como é que em vez de desemprego a menos 10%, como prometido no programa de governo de 2006, temos desemprego a mais 22%. Em vez de crescimento económico a dois dígitos, o País anda 5 %. Como é possível que os empreendimentos milionários, anunciados Governo, não se realizaram? O livro quer ser parte do debate necessário neste momento que é de viragem na economia mundial. Em muitos outros países debates similares estão a ser feitos. O mundo pós crise exige uma outra atitude. E é fundamental que se procure saber os contornos da nova atitude . Para daí, se encontrar os ingredientes certos que poderão trazer sucesso na luta contra o desemprego e permitirá o país crescer de forma sustentável e na liberdade. Vê-se pelos textos no livro que a forma de governar terá que mudar para que oportunidades não sejam desperdiçadas. Terá que mudar para que grande parte da população, e particularmente da população jovem, não perca esperança de ter rendimento próprio, derivado do seu trabalho. Terá que mudar para que as ilhas, todas elas, tenham dinâmica económica que lhes garanta voz , estabilidade social e demográfica, e protogonismo cultural para contribuírem para a diversidade na caboverdianidade e neutralizarem a ultracentralização no país. A relação Estado e economia tem que mudar. Governar não pode significar insistir numa relação controleira e parasitária da economia em que, de um lado, o Estado o emperra e, do outro, o Estado sufoca. Os cidadãos, as empresas não podem ficar sujeitos à ineficácia dos serviços do Estado, a começar pela morosidade da justiça. Perde-se, em direitos e em serviços não prestados com qualidade e em tempo útil. Conflitos não são dirimidos, nem direitos de propriedade e direitos contratuais ficam seguros. Quem governa deve assumir em pleno as responsabilidade de governação e sujeitar-se ao escrutínio de todos. E não meter-se num jogo de escondidas quando os problemas surgem ou fica claro as consequências de omissões graves. Quem, por exemplo, se responsabiliza pela não realização até agora de vários empreendimento de peso em S.Vicente. Ou o estado em que se encontra a ilha do Sal quanto ao saneamento, vias de acesso, e segurança ? quem não confrontou o problema das migrações entre as ilhas e não soube responder, em tempo próprio, aos problemas da habitação, de saúde pública, de fricções culturais e tensões inflacionistas? Quem geriu mal o sector de energia e água de obrigando o investidor a incluir nos seus cálculos a os custos do fornecimento instável desses factores? Quem não soube lidar com a imigração de tal forma que, segundo o documento do Governo sobre a Segurança, dos entre 15 a 20 mil imigrantes menos de 2 mil está legal no país e essa imigração é composta por gente sem qualificação profissional? Ouvindo o Governo, a culpa é de todos com excepção dele próprio. É culpa das empresas ,das câmaras e até dos jovens. Já se ouviu que eles não têm emprego é porque não querem. Este estado de coisas já deu no que deu. No excessivo desemprego e no crescimento económico abaixo do potencial. Há que mudar. Outros estão a fazê-lo por que sabem o mundo pós crise será uma realidade completamente diferente. E a prosperidade das nações dependerá de quem melhor souber adaptar-se aos desafios do que vêm aí. Deseja-se que o livro seja uma das muitas contribuições, a vir, espera-se, de todos os quadrantes, para uma assunção plena de uma nova atitude face ao mundo e às exigências de desenvolvimento de Cabo Verde.

sexta-feira, novembro 06, 2009

Ser ou não ser ilha

Ir para uma ilha ou morar numa ilha significa entregar-se a uma vivência com limitações mas também com gratificações. A ilha, separada do continente, não poucas vezes, é remota, isolada e de difícil acesso. Mas a presença constante do mar ameniza o clima e dá tranquilidade face a ameaças exteriores. A pequenez territorial e o isolamento vaticinam um ecossistema frágil e uma economia pequena e dependente. De tempos em tempos, a ilha vê-se arrebatada por desenvolvimentos políticos, económicos ou militares, verificados algures, e tem surtos de crescimento, para logo depois voltar ao ritmo habitual. Geralmente apresenta processos evolutivos, tanto de plantas e animais como ainda de grupos humanos, diversos dos do continente, fenómeno que Charles Darwin pôde comprovar nas suas viagens por ilhas e arquipélagos. Por tudo isso, e mais, a ilha entra no imaginário dos continentais como paradisíaca, oásis de tranquilidade, exótica e livre dos males que assolam os continentes

Ser ilha pode trazer algumas vantagens se a condição insular for traduzida em produtos que vão de encontro aos desejos de paz, sossego e entretenimento dos que a procuram. À partida, porém, é fonte de extraordinárias desvantagens devido à pequenez do território e à população geralmente diminuta. Quando, então, o País é arquipélago, as desvantagens crescem exponencialmente devido á necessidade imperiosa de se investir em cada ilha, repetindo infraestruturas já existentes noutras, como forma de viabilizar a sua ligação com um mundo mais amplo. 

As desvantagens são múltiplas e permanentes. As vantagens, pelo contrário, têm que ser identificadas a cada passo e com o olho atento nas tendências evolutivas do mundo global. Janelas de oportunidades devem ser exploradas no momento em que se abrem e agressivamente mantidas as qualidades da ilha que melhor a posicionam para as pôr em bom uso. Uma atitude positiva face ao mundo deve caracterizar o ilhéu, mesmo quando as desvantagens de ser ilha perdida no meio do mar ameaçam esmagá-lo. Não pode sucumbir ao fatalismo, à vitimização e à tentação de se erguer na dependência dos outros. Isso só leva ao assistencialismo não dignificante, ao crescimento das desigualdades, à medida que alguns apropriam-se desproporcionalmente dos fundos disponibilizados no quadro das ajudas, e à fraca atenção dada ao crescimento económico criador do emprego.       

A atitude certa deve ser diminuir o impacto das desvantagens. O mundo moderno dos transportes rápidos, das telecomunicações seguras e céleres e da internet como suporte universal de transferência de conteúdos fornece alguns dos meios para isso. Mas é preciso visão estratégica e políticas públicas adequadas para fazer com que actos individuais de expressão e afirmação, conjugados com o esforço de venda de bens e serviços pelas empresas e com o elevado espírito de serviço público das instituições do Estado , resultem numa economia dinâmica, competitiva e articulada com o exterior.

Potenciar as vantagens implica manter os ingredientes essenciais que levam as pessoas a optar por ilhas para férias, para estadias prolongadas ou para residência permanente. Segurança, saúde pública e ambiente sociocultural estimulante, mas sem choque cultural, são dos primeiros ingredientes a ter em consideração. As dificuldades do turismo em Cabo Verde, manifestas na fraca taxa de retorno dos turistas, estão intimamente ligadas às insuficiências que se notam, precisamente, nesses sectores. A insensibilidade das autoridades, face ao que exigia acção decisiva para ultrapassar as dificuldades, já custou muito ao País em oportunidades perdidas.

Cabo Verde não pode dar-se ao luxo de perder as suas poucas vantagens, por incúria ou por falta de compreensão da natureza das ameaças que o país pode vir a confrontar-se. De entre as potenciais ameaças sobressaem a ameaça demográfica e ameaça das epidemias por visarem a própria essência da nação e a sua existência futura.

Ter uma pequena população de 500 mil almas,  dispersa por nove ilhas, levanta sempre o espectro de uma ameaça demográfica. Particularmente, quando se tem um acordo de livre circulação com uma região com 200 milhões de habitantes cujo rendimento per capita é cinco ou mais vezes menor do que Cabo Verde. A ameaça torna-se real na ausência de uma política de imigração inteligente, criando  situações como as descritas no Plano de Segurança Interna do Governo (pgs. 50 e 51): (…) “Em 2006, estavam em Cabo Verde 15000 a 20000 imigrantes dos quais só 1800 eram residentes legais”.(…) “A esmagadora maioria destes imigrantes em Cabo Verde são homens entre os 17 e os 40 anos de idade, sem qualificação profissional e professam a religião islâmica”. (…)“Notícias da imprensa escrita, em 2008, davam conta da existência de cerca de 11 mesquitas em todo o Cabo Verde e da conversão, em média, de um caboverdiano/dia à religião muçulmana, especialmente mulheres, que a troco de dinheiro casavam com imigrantes, permitindolhes, pela via da naturalização, adquirir a nacionalidade caboverdiana”. (…) “Por dia, do total de cidadãos de Estados CEDEAO que entram legalmente em Cabo Verde por via aérea, quinze acabam por permanecer no território em situação irregular (dados respeitantes apenas ao aeroporto da Praia)”.”(…) “Na ilha da Boavista a presença de imigrantes, em 2006, tinha chegado a um número aproximadamente igual à população de Sal-Rei de 2500 habitantes”.

A epidemia do dengue que assola vários pontos do território nacional vem lembrar a fragilidade do País perante as doenças endémicas nos dois lados do Oceano Atlântico. Esse mais recente assalto do exterior a Cabo Verde não veio sem aviso. É um assalto de há algum tempo previsível, considerando que o mosquito aedis aegpti vem se proliferando pelas ilhas desde de Agosto de 2008, data em que a sua presença foi oficialmente reconhecida.

A falta de comprometimento das autoridades na preservação das vantagens das ilhas voltou a manifestar-se perante mais esta ameaça. Identificado o mosquito do dengue não se desencadeou um esforço nacional, dirigido e efectivo, para o eliminar. Nem se fez o suficiente para controlar a entrada de pessoas contaminadas e evitar que fossem picadas por mosquitos, contribuindo para a propagação da doença. As autoridades omitiram-se mesmo quando a população pressentiu que confrontava algo novo, identificando a doença como sacudim djam bem.. O Governo só viria a despertar quando o número de casos chegou aos milhares, ou seja, quando, provavelmente, a maioria da população da Praia já tinha tido contacto com o vírus. Isso, porque em oito a dez pessoas infectadas, em média, só uma desenvolve a doença.

Os problemas que vêm na esteira dessas ameaças têm sido atirados para debaixo do tapete, mesmo quando se experimenta na pele os seus efeitos em termos de quebra de crescimento económico, de desemprego elevado e de perdas de receitas. O Governo não assume as suas responsabilidades e deixa nas entrelinhas que tudo é efeito da crise. O facto, porém, é que, antes da crise, já se verificava forte quebra no fluxo turístico, em consequência de investimentos não realizados no saneamento, saúde pública e noutras infraestruturas e de medidas efectivas não tomadas no domínio da segurança e do controlo da imigração.

As autoridades têm que se mostrar proactivas na defesa do que nos distingue e nos dá vantagens como ilhas ao mesmo tempo que, seguramente, se deve diminuir as distâncias e os custos de comunicação com o mundo. As políticas públicas devem traduzir uma visão estratégica própria e não simplesmente ir ao reboque de políticas que se suportam em fundos vindos do estrangeiro, HIV/SIDA, cancro de mama e gripe das aves, colocando em segundo plano outras patologias que, provavelmente, andam a exigir mais atenção.

Em relação à imigração é evidente que qualquer política deve ter em devida consideração não só o número actual da população  e as taxas esperadas de seu crescimento, no curto e médio prazo, como também incluir tratamento diferenciado a ser dispensado às diferentes ilhas. A riqueza cultural do país depende da sua capacidade em manter a sua diversidade e em renovar as condições para que cada ilha continue a contribuir para a caboverdianidade. Isso tem que ser protegido.

Quanto às epidemias, a erradicação do paludismo e do dengue terá que ser considerado um desígnio nacional e estratégico. Tudo leva crer que é possível realiza-lo.

Nos anos 1960 o paludismo desapareceu de Cabo Verde. Na época usou-se muito o insecticida DDT, um produto que até agora é considerado o melhor para combater a malária. A Organização Mundial de Saúde, numa decisão tomada a 15 de Setembro de 2006, recuperou o DDT, após décadas de proibição, autorizando o seu uso pulverizado nas paredes das casas como repelente dos mosquitos do paludismo. Segundo Daniel Roberts, professor de medicina tropical, num artigo publicado no jornal New York Times de 20 de Agosto de 2007, experiências feitas indicam que, diferentemente de outras insecticidas que só funcionam no contacto com os insectos, DDT fornece repelência espacial, impedindo os mosquitos de entrar nas residências. No mesmo artigo ele sublinhou que o produto é particularmente efectivo para o mosquito da dengue e da febre amarela.

Somos ilhas, não podemos permitir que as vantagens em sê-lo desapareçam ou vão somar-se às desvantagens.

         Publicado pelo jornal A Semana de 6 Novembro de 2009