sexta-feira, março 11, 2011

Precipitação?

Para qualquer observador, parece apressada a tomada de posição da direcção nacional do MpD em relação às eleições presidências. Pela via da revisão constitucional de Fevereiro de 2000 optou-se por separar as duas eleições legislativas e presidenciais por um período de seis meses. O objectivo era evitar o contágio de uma eleição pela outra e assim acabar com a quase inevitabilidade do Governo e do presidente da república virem sempre do mesmo quadrante político. As necessidades de equilíbrio, arbitragem e moderação no sistema político podiam ser melhor satisfeitas retirando esse quase determinismo nos resultados eleitorais. Os partidos, face aos resultados eleitorais das legislativas, teriam tempo para melhor decidir quanto às presidenciais que viriam depois. Naturalmente que para o partido vencedor o ideal é manter viva a euforia da vitória para, meses depois de governação, conseguir galvanizar os eleitores e eleger um presidente da sua escolha. Por isso apressa-se a escolher o seu candidato com um mínimo de atrito interno e rapidamente reúne o partido a sua volta para limitar perdas no suporte de militantes e eleitorado. Uma outra abordagem tem os partidos vencidos. Não estão no governo, interessa-lhes um maior equilíbrio do sistema político e sabem que o tempo pode jogar a seu favor. Nos meses que se seguem pode-se verificar o desencanto de certos eleitores devido ou a promessas que tardam em ser cumpridas ou a sinais de excessos do novo governo que indiciam que lhe faria muito bem ter um travão na presidência da república. Na expectativa de lidar com um cenário político diferente do que tiveram nas legislativas os partidos na oposição analisam as razões da derrota e procuram de entre as individualidades disponíveis o candidato que melhor perfil tem para prevalecer sobre outros candidatos na nova conjuntura política. E aí não tem razões para pressas desnecessárias. Por isso, que a decisão da DN em analisar a questão presidencial surpreende primeiro, porque não estava inicialmente agendada e depois porque dificilmente se descortina razões para antecipar ao PAICV numa matéria dessa natureza. A publicação das sondagens da Afrosondagem mostrando candidatos do mesmo quadrante político do MpD em clara desvantagem em relação aos do PAICV devia ser motivo para um compasso de espera. E outros estudos de opinião poderiam, entretanto, ser feitos com vista a uma decisão final mais abalizada, menos apaixonada e mais consensual.

quinta-feira, março 10, 2011

Pulsão para denegrir o Poder Local

As eleições municipais ainda estão a mais de um ano e meio de distância mas o governo e o PAICV já se movem para intensificar a guerrilha contra as câmaras administradas pelos partidos da oposição. O Ministério de Descentralização serve-se de inspecções discricionárias similares à feita a S.Vicente em resposta a denúncias do Paicv para lançar descrédito nos órgãos municipais. A interpretação da tutela da legalidade pelo governo tende a descambar para intervencionismo que fere o princípio de autonomia e desrespeita a vontade popular expressa no voto dos munícipes. O carácter partidário de muitas dessas intervenções revela-se no facto de serem seguidas por notícias na imprensa e por posicionamentos da bancada do PAICV já a acusar de desvios com base em dados dos relatórios dos inspectores que só eles têm acesso. O programa “Casa para todos”, o foco de muita propaganda eleitoral, tem sido instrumental nessa ofensiva. A ofensiva começara antes das eleições, procurando atirar culpas sobre as câmaras pela falta de emprego, pela quebra na dinâmica económica e pelas deficiências em serviços públicos como água e energia. No pós-eleições persiste-se na mesma linha e, ainda sem a sociedade ter gozado do merecido relaxe e descanso da polarização política excessiva, procura-se já aumentar a crispação. Renova-se com especial intensidade o denegrir do Poder local. Vão nesse sentido certas intervenções de governantes, as denúncias de corrupção dos chefes locais, a sintonia com os media que propagandeiam essas acusações e as tentativas de manipulação de instituições públicas ligadas à investigação criminal. Tudo isso acontece porque os municípios são espaços de exercício plural do poder político. Para quem quer erigir-se em Poder sem limites os municípios com as suas competências e recursos próprios são adversários a neutralizar. Pela via legislativa consegue-se a erosão de algumas competências. Pela promoção directa de associações comunitárias e outras criam-se poderes paralelos, não eleitos mas com recursos e que não se responsabilizam perante o Tribunal de Contas e os munícipes. Pela via de acusações de corrupção e de gestão danosa desprestigiam-se os órgãos municipais perante a população. Tais manobras também servem para justificar a gestão directa pelo Estado das doações da comunidade internacional normalmente parceiras dos municípios e para o encaminhamento subsequente dos fundos para associações de escolha do governo. Como dizia Hillary Clinton num discurso em Julho do ano passado na Cracóvia, Polónia, há democracias em que os governantes não se vêem subservientes ao seu povo mas querem fazer o povo subserviente a eles. E que para isso esforçam-se por criar a sua sociedade civil, uma colecção de ONGs, associações comunitárias, organizações juvenis, etc dependentes em recursos e instrumentos de uma agenda maior de controlo social. Nota-se o artificialismo desse associativismo estatal quando por outras vias se avalia o capital social existente, o grau de civismo e a confiança dos cidadãos na relação com os seus pares. O nível é muito baixo como mostram os dados de Cabo Verde recolhidos pelo Afrobarómetro. A pressão governamental para tudo controlar corrói o tecido social dando origem a fenómenos já reconhecidos de medo, intriga social, de falta de carácter e de dignidade, de corrupção, de extorsão política e de venda de votos. São fenómenos que não se pode ignorar.

terça-feira, março 08, 2011

Cumplicidades, dez anos atrás

As várias cumplicidades à volta do veto presidencial, designadamente a não publicidade do veto, a não fundamentação do mesmo, a sonegação de informação, as ausências para não decidir e, finalmente, as desculpas esfarrapadas para não deliberar fazem lembrar acontecimentos de há dez anos atrás. Também estava-se perto do fim da legislatura e o PAICV tinha saído vencedor nas eleições legislativas. No dia 1 de Fevereiro de 2001, a meio da campanha eleitoral presidencial, o então presidente Dr. Mascarenhas Monteiro resolveu empossar um governo do PAICV. A legislatura não tinha terminado. Só viria terminar no dia 13 de Fevereiro com a sessão constitutiva da nova Assembleia Nacional. O País viveu um caso inédito de ter um governo que não correspondia à configuração de forças políticas no parlamento. De facto o MpD ainda detinha maioria absoluta e um governo que não fosse por ele formado não sobreviveria à moção de confiança necessária para ser um governo pleno e não de gestão. O então PR resolveu o problema jogando com os prazos. Empossou o governo do PAICV 13 dias antes do fim de legislatura mas ainda com uma folga de mais dois dias para completar os 15 dias do prazo de apresentação do seu programa do governo. De modo que quando o Paicv veio solicitar confiança para o seu programa já encontrou um parlamento cuja configuração de forças políticas lhe era favorável. O facto é que o então PR contornou o estipulado na constituição para a transferência de poderes na sequência das eleições legislativas. A Constituição é clara: Vinte dias depois de publicados os resultados eleitorais no Boletim oficial, inaugura-se uma nova legislatura na sessão constitutiva da nova assembleia nacional. O governo até ao momento em pleno uso das suas competências, demite-se automaticamente e passa a governo de gestão. Condição essa que irá manter até ser exonerado pelo presidente da república no mesmo momento em que é empossado o novo governo. Este, por sua vez, entra em gestão e só inicia efectivamente o mandato com a apresentação do programa ao parlamento e aprovação da moção de confiança. Em Fevereiro de 2001 a conveniência reinou. O então PR, em entrevista posterior, desculpou-se dizendo que o ex-primeiro- ministro, Dr. Gualberto do Rosário, pedira demissão e ele “não mandou arquivar”. Assim, mesmo sabendo que o Governo do MpD ficaria demitido automaticamente no dia 13 de Fevereiro com a nova legislatura, optou por exonerar o Dr. Gualberto do Rosário e empossar o Dr. José Maria Neves como Primeiro-ministro. Precisamente a meio de eleições presidenciais que viriam a ser declaradas ganhas pelo candidato apoiado pelo PAICV, por apenas 12 votos. Claro que é absolutamente legítimo perguntar-se até que ponto a posse do Governo antes de tempo e a meio da campanha influenciou os resultados das presidenciais. Particularmente quando se sabe como o Governo do PAICV moveu-se logo a seguir a sua posse. Fulgurantemente moveu-se para controlar a polícia, o processo eleitoral e a rádio e televisão. Os pontos nevrálgicos que todos que querem o poder ou querem projectar uma imagem de força ocupam para tornar bem visível o domínio que têm sob as coisas, as pessoas e os processos. Sabe-se o que aconteceu depois.

sexta-feira, março 04, 2011

Transparência nos assuntos do Estado

No Estado de Direito democrático exige-se publicidade dos actos dos órgãos de soberania. Assim é porque transparência na esfera pública é fundamental para se salvaguardar direitos fundamentais dos cidadãos, para se certificar que o Estado age de acordo com a lei e para se fiscalizar e responsabilizar os governantes. No mesmo sentido vai a consagração do princípio de separação e interdependência de poderes dos órgãos de soberania para se evitar concentração e abusos de Poder.

O veto do Sr. Presidente da República ao Estatuto dos Magistrados Judiciais e ao Estatuto dos Magistrados do Ministério Público não foi objecto de anúncio público por iniciativa da presidência da república. A Assembleia Nacional, o destinatário da mensagem do presidente da república falhou, por mais de duas semanas, em dar conhecimento aos deputados e ao público em geral da devolução dos diplomas vetados. Depois de se conhecer a mensagem do Presidente da República o país ainda está por saber quais os fundamentos do veto político.

A reforma da Justiça, por todos aplaudida, comportava um pacote de cinco leis a saber: A lei de Organização e funcionamento dos tribunais judiciários, a lei orgânica do Ministério público, a Lei de organização e funcionamento do Conselho Superior da Magistratura e os Estatutos dos Magistrados Judiciais e do Ministério Público. Para se conseguir acordo sobre a reforma de justiça os partidos políticos levaram dois anos em negociações árduas. De permeio fez-se uma revisão constitucional para clarear obstáculos significativos no caminho da instituição de um sistema judicial livre de interferência política e com juízes seleccionados na base do mérito e com recurso a concurso público.

Vetos do presidente da república são instrumentos necessários de equilíbrio e moderação do sistema político. Perante leis por promulgar o PR pode recorrer à fiscalização preventiva de constitucionalidade se tem dúvidas em relação à constitucionalidade das normas aprovadas. Noutras situações o PR pode vetar na base do que os entendidos chamam de “não conformação política” dos diplomas. Em todos os casos o veto é fundamentado para que o órgão legislativo, a Assembleia Nacional ou o Governo, ajam para confirmar ou fazer as alterações necessárias.

O insólito no caso presente é, primeiro, a falta de publicidade de um acto tão importante como é veto político do Presidente da República. Segundo, é o Presidente da Assembleia Nacional e a maioria parlamentar a bloquear uma Reunião Plenária para os deputados deliberarem sobre os diplomas que tinham aprovado por unanimidade. Não pega a desculpa de que a realização das eleições legislativas de alguma forma diminuiu o actual parlamento. Assim como o governo só entra em gestão no dia 11 de Março com o fim da legislatura também o parlamento tem poderes plenos até essa data. Noutros países os parlamentos legislam normalmente durante todo o tempo até à transferência de Poder e o início de um novo mandato.

Os actos rocambolescos à volta deste caso deixam transparecer interesses não explícitos e jogos nos bastidores. Actos que se tornam particularmente graves quando parecem mexer com os órgãos de soberania de um modo pouco consentâneo com o interesse público. Isso é inaceitável. A integridade e a dignidade das instituições da República devem ser preservadas a todo o momento.

Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 2 de Março de 2011

quinta-feira, março 03, 2011

Protagonismo externo deslocado

No domingo dia 20 de fevereiro o presidente Pedro Pires encontrou-se mais uma vez com o presidente da Guiné equatorial Nguema Mbasongo na ilha do Sal. O encontro, acompanhado de perto pela comunicação social estatal, mostrou o PR a protagonizar mais uma investida diplomática junto a esse país africano internacionalmente tratado como um pária. Nas palavras do PR a insistência nas relações com a Guiné Equatorial justifica-se com as potencialidades desse país e do que pode oferecer aos caboverdianos em termos de emprego, de investimento e de oportunidades de negócio. Uma linha similar de raciocínio foi seguida na aproximação feita à Líbia de Khadaffi que o levou varias vezes a Tripoli nos últimos dois anos. Os resultados não se viram e dificilmente os acordos eventualmente feitos irão concretizar-se agora que o regime autocrático vê-se ameaçado pela sublevação popular. Khadaffi está por um fio. O Nguema Mbasongo já está a tomar medidas severas de calar a imprensa nacional para não sofrer contágio do que se passa nos países do Maghreb e no Médio Oriente. Tem razões para se preocupar. O nível de corrupção e os abusos dos direitos humanos na Guiné Equatorial têm merecido repúdio geral. No ano passado a Unesco recusou-se a instituir um prémio internacional com o nome do presidente. E a CPLP não respondeu positivamente ao pedido de integração na comunidade linguística apesar da posição favorável de Cabo Verde expressa por Pedro Pires. Por tudo isso causa estranheza a visibilidade dada ao encontro do Sal dos dois presidentes na actual conjuntura de “caça” aberta a déspotas por todo mundo. Não parece que seja uma boa imagem para Cabo Verde. A condução da política externa pertence exclusivamente ao governo mas por razões não muito claras o Presidente da República envereda-se por um certo de protagonismo que aparentemente não se ajustam ao papel de simples representação externa da república que a Constituição lhe atribui. E os ganhos para o país não são visíveis como testemunham os casos citados. O envolvimento do PR na mediação do conflito da Costa de Marfim não beneficiou ninguém. Nem tão pouco faz algum favor ao país passar-se a ideia de que Cabo Verde esforça-se por associar-se a regimes como os da Líbia, da Venezuela, da Guiné Equatorial e de outros regimes autocráticos africanos. Actos do governo na condução da política interna e externa são sujeitos aos mecanismos de fiscalização política do parlamento nos termos da constituição. Se o governo se deixa ser secundarizado em certas iniciativas externas, é de se perguntar quais os motivos para isso e quem deve prestar contas dos fiascos já verificados. Solidariedades antigas construídas essencialmente para justificar mutuamente a imposição de regimes autocráticos aos respectivos povos não devem ser repetidas na nova era da democracia. Insistir nelas simplesmente sinaliza que os apetites de total controlo ainda continuam. Pior ainda, pode-se ficar a um passo de ver essas "solidariedades" transformadas em interferências externas particularmente no processo eleitoral para ajudar na vitória de governos "amigos". E isso é inadmissível. Por tudo isso accountability completa também é necessária nas relações externas.

quarta-feira, março 02, 2011

Desculpas do Sr. Presidente da AN

Finalmente, ontem, dia 1 de Março, foi possível reunir a Conferência de Representantes. Para isso foi necessário “forçar a barra” com um requerimento assinado por quinze deputados do MpD. Foi um reunião de desculpas de mau pagador e de mais uma exibição de cinismo e hipocrisia. O Presidente da AN explicou à Inforpress que “é muito difícil em termos práticos” a realização dessa sessão. O líder parlamentar do PAICV, por sua vez, diz que “se constatou que há muito pouco tempo para se realizar uma sessão antes da posse dos novos deputados”. Compreende-se assim todo o esforço feito na AN para esconder o veto presidencial dos sujeitos parlamentares e do público. Queria-se chegar ao ponto actual e fingir sinceridade ao dizer: não há tempo para reunir os deputados. A realidade é que se pretende que os deputados se calem perante o veto do presidente da República. Mas, em vez de levar os deputados a “conformarem-se tacitamente” com o veto, optou-se por vias escusas de sonegação de informação aos sujeitos parlamentares e de deliberada procrastinação de procedimentos regimentais que deviam seguir-se à mensagem do PR. Simplesmente para depois chegar à conclusão que é tarde demais nesta legislatura para agir. O presidente da AN ao justificar-se por não ter convocado uma reunião plenária 15 dias depois do veto, como manda o nº1 do artigo 174º do Regimento, afirmou que o diploma “já não é um proposta de lei ou um projecto de lei” e por isso não se põe o problema de caducidade. Em Portugal chama-se decreto ao diploma aprovado pelo parlamento mas ainda não promulgado. Mas, em Cabo Verde, não há uma designação especial e a referência que se encontra no Regimento é de iniciativa legislativa (artigo 175º n.3). E o Regimento é claro que as iniciativas legislativas caducam com o termo da legislatura. É essa também a posição dos constitucionalistas portugueses Gomes Canotilho e Vital Moreira quanto ao destino dos decretos vetados: “O veto não é definitivo, pois o PR pode vir a promulgar o diploma, se a AR proceder à sua confirmação. A Constituição não fixa prazos para a deliberação da AR pelo que se deve entender que o processo só caduca com o termo da legislatura ou dissolução da AR (Constituição Anotada (pg. 599. 3ª edição)”. Em conclusão, pode-se dizer que a democracia e o Estado de direito para funcionarem realmente precisam que as suas instituições tenham carácter e dignidade. Instituições que cumprem em pleno as suas competências e que não confundam lealdade institucional com cumplicidades na salvaguarda de orgulhos deslocados.

terça-feira, março 01, 2011

A Língua e o futuro

A Unesco escolheu o dia 21 de Fevereiro como o Dia da Língua Materna, por decisão datada de 17 de Novembro de 1999. Curiosamente, nesses mesmos dias verificava-se em Cabo Verde a primeira revisão ordinária da Constituição da República. Uma das novidades foi a introdução no artigo 9º, sob a epígrafe “línguas oficiais”, de um número 2 com o seguinte texto: 2. “O Estado promove as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa”. Estava dado o passo decisivo para o reconhecimento da língua materna caboverdiana e o comando para a criação das condições para uma posterior oficialização.
Cabo Verde é uma nação cultural e linguisticamente homogénea. A sua língua materna tem séculos de existência e nunca foi seriamente ameaçada por nenhuma outra língua. Nem mesmo pela língua que sempre foi oficial no arquipélago que é a língua portuguesa. A sua resiliência consta-se nas gerações de caboverdianos, em todos os continentes e em todas épocas, que a preservam e a acarinham e a passam às novas gerações.
Diferentemente do que acontece em muitas outras sociedades crioulas, o uso do crioulo não identifica estratos sociais nem é repudiado pelas elites ou por quem aspira ser parte da elite. Os titulares dos órgãos de soberania sentem-se livres de se exprimirem em crioulo a qualquer momento, os cidadãos tratam com a administração pública sem quaisquer impedimentos também em crioulo. O mesmo acontece com os depoimentos nos tribunais judiciais. A língua não é discriminada nem se discrimina quem dela faz uso no seu quotidiano e nas relações oficiais.
O crioulo é uma língua essencialmente oral. Cada ilha possui o seu variante. E goza dum campo extraordinário de expressão nas diferentes modalidades musicais caboverdianas como a morna, a coladeira, o funaná e o batuque. Os artistas caboverdianos levam a todos os pontos do planeta a sonoridade e a poesia que é capaz de exprimir. Todos os caboverdianos se identificam com a sua língua e não precisam fazer alarde dela para aumentar a sua auto-estima.
Controvérsias têm surgido à volta da problemática de padronização do crioulo escrito. E é natural que assim seja.
Processos similares noutros países duraram séculos e sempre rodeados de polémicas. No Luxemburgo, o processo levou décadas e ainda o nível de utilização da língua escrita é bastante baixo. Cabo Verde deve fazer o seu caminho com tranquilidade. Receios de hegemonia, de umas variantes sobre outras, devem ser respeitados e serenamente deve-se caminhar para uma padronização e um alfabeto que potenciem a língua ao mesmo tempo que preservam as suas raízes.
Importa manter um ambiente de concórdia em relação à língua e às condições a serem criadas até a sua oficialização futura, para que atenção da Nação se focalize no que é estratégico para o país em termos de competência linguística utilitária. Cabo Verde só poderá combater o desemprego e dar rendimentos e qualidade de vida crescente aos seus filhos se tiver sucesso na construção de uma economia de prestação de serviços dirigidos tanto para o mercado interno como para o externo. Isso exige conhecimento adequado de línguas estrangeiras.
O conhecimento do português é fundamental, não só porque é a língua oficial como também porque é a língua de alguns dos principais mercados tradicionais do país, totalizando quase duas centenas de milhões de pessoas.
Uma outra prioridade nacional deve ser o inglês, por razões óbvias. Neste dia de comemoração da língua materna, é de se regozijar com a relação tranquila que se mantém com ela e mobilizar os esforços para capacitar todos os caboverdianos com o domínio das línguas que os tempos e o sucesso na economia global exigem. Para que a Nação viva sempre e vença.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 23 de Fevereiro de 2011

domingo, fevereiro 27, 2011

Fim do nacionalismo autocrático

O mundo árabe tem mudado nos últimos dois meses a uma velocidade estonteante. Há menos de duas semanas Moubarak caiu após 30 anos de poder no Egipto. A Líbia parece estar a beira de se livrar do coronel Khadaffi, 42 anos depois de ter chegado ao poder através de golpe de Estado. São tempos extraordinários que estão a pôr autocratas por todo o mundo em alerta máxima. A ansiedade é forte em todas as capitais árabes. Noutros países com a China, Myanmar, Guiné Equatorial e Venezuela medidas cautelares estão a ser tomadas para evitar contágio e para prevenir tentativas de imitação dos métodos já provados de sublevação popular por meios não violentos. Os acontecimentos surpreendentes têm suscitado muita reflexão sobre a natureza desses regimes e a forma como neles uma pequena elite soube agarrar-se ao poder por tanto tempo. James le Sueur autor do livro “Argélia desde de 1989: entre o terror e a democracia” teoriza que muitos regimes na África e no Médio Oriente sofrem de uma espécie de Desordem temporal pós colonial. Subscrevem uma filosofia de governação segundo a qual autoritarismo é a única cura para os desafios políticos internos e externos que se colocam aos seus países. São forças políticas que emergiram das lutas de libertação nacional e que continuam a proclamar que os perigos de regresso ao passado ou de ser apanhado nas malhas do neocolonialismo estão presentes e que só sob a sua direcção e aceitando os seus métodos autoritários é que o país fica livre deles . Le Sueur num artigo de Fevereio de 2011 na revista Foreign Affairs cita varios líderes que sofrem desta “desordem temporal pós colonial” e que fazem o seu país sofrer por causa disso. Entre eles está obviamente o Robert Mugabe do Zimbabwe. Menos óbvio estão os que mesmo reclamando as suas origens libertadoras esforçam-se em maior ou menor de grau por disfarçar nas roupagens democráticas de ocasião os seu instintos autoritários. Posicionam-se claramente nesta última categoria os ex-movimentos de libertação nos PALOP. Mesmo em Cabo Verde onde nunca houve luta de libertação o PAICV, criado em Janeiro de 1981, cultiva uma cultura política contaminada precisamente por esse tipo de desordem temporal identificado por esse historiador americano. Uma “desordem” que nos quinze anos de partido único já custou muito ao pais em falta de liberdade, em oportunidades perdidas e em riqueza não produzida por ausência da livre iniciativa das suas gentes. Uma desordem que persiste, mas mais guardada, e que se manifesta na negação e quase criminalização da oposição e nos esforços extraordinários em manter a população sobre controlo, explorando vulnerabilidades sociais múltiplas. A queda em cadeia dos regimes ainda apanhados nesse desvio temporal mostra que já não há espaço para nacionalismos não inclusivos. Nacionalismos que não respeitam a diferença e a oposição e que insistem num contracto social onde as pessoas cedem controlo das suas vidas e retraem-se nas expectativas de futuro em nome de estabilidade muitas vezes suportada pela ajuda externa. James le Seuer no seu texto diz que Nelson Mandela soube ver isso e não se deixou levar pela raiva. Optou por um regime democrático e pelo esforço de inclusão de uma população anteriormente dividida pelo apartheid completo com julgamentos e perdões para quem os solicitasse nos chamados tribunais de verdade e reconciliação. Hoje todos sabem que foi a decisão certa.

sexta-feira, fevereiro 25, 2011

Briga de critérios

O Sr. Presidente da República decidiu dar veto político aos Estatutos dos Magistrados Judiciais e do Ministério Público aprovados por unanimidade dos deputados. Na carta ao parlamento que acompanhou a devolução dos diplomas o PR considera que “as soluções tecnico-jurídicas versadas nas disposições transitórias dos referidos diplomas entram em contradição com alguns princípios constitucionais nomeadamente o princípio de igualdade”. A justificação do PR dificilmente substitui a mensagem fundamentada que o artigo 137º nº1 exige nos casos de veto político. A mensagem não refere especificamente à norma ou normas em relação as quais tem diferendo. Alega dúvidas quanto à constitucionalidade de normas mas abstém-se de pedir fiscalização preventiva da constitucionalidade. Em vinte dias teria uma resposta do STJ enquanto Tribunal Constitucional e o problema seria resolvido com a Assembleia Nacional a fazer as alterações seguindo o acórdão dado. O PR optou por veto político, ou seja por questionar a conformação política dos diplomas com o seu ponto de vista pessoal e político. E é aí que se compreende porquê o problema está nas disposições transitórias. Em fins de 2008 e princípios de 2009 o governo fez uma fuga em frente para renovar o Supremo Tribunal com juízes de nomeação política. Deliberadamente quis ignorar que se estava já em processo de revisão da constituição com propósito central de isolar a Justiça de qualquer interferência política. O PR alinhou com a iniciativa do governo e nomeou uma juíza com 33 anos de idade e na categoria de 2ª classe (*) para o Supremo Tribunal de Justiça. Naturalmente que os envolvidos no convite e nomeação não desconheciam que o nº6 do artigo 8º dos Estatutos dos Magistrados Judiciais estabelece que “Findo o mandato os Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça desde que Magistrados Judiciais ou do Ministério Público serão colocados na mais alta categoria da carreira da respectiva Magistratura”. Fez-se a revisão constitucional em Fevereiro de 2010 e o caminho ficou aberto para se regular o acesso de juízes ao STJ por mérito e por concurso, o que viria a acontecer em Dezembro do mesmo ano. Fixados os novos critérios já não era possível manter a norma que mandava colocar automaticamente no topo de carreira os juízes do STJ. Com o novo estatuto dos magistrados judiciais (artigo 125º n.2), só podem candidatar-se para as vagas de juiz conselheiro no STJ os juízes desembargadores e os juízes de direito de 1ª classe. De facto, não parece razoável manter-se numa carreira profissional com forte pendor meritocrático como a magistratura judicial a possibilidade de progressão vertiginosa para o topo em consequência de escolhas discricionárias de natureza política e pessoal. Menos razoável ainda é tentar-se por veto político não fundamentado descarrilar todo um processo cuja aposta maior é uma Justiça mais independente, competente e célere.

*(BO nº 23 II Série de 25 de Junho de 2008)

Black Out na A.N.

O “black out” na Assembleia Nacional continua. O PAICV não compareceu á Conferência dos Representantes marcada para 9 horas de hoje, dia 25. Ao silêncio do Presidente da A.N., nestes 19 dias após a recepção do veto político do Presidente da República aos Estatutos dos Magistrados Judiciais e dos Magistrados do Ministério Público, veio juntar-se um Paicv ausente. O Gabinete do Presidente manteve-se todo esse tempo mudo mesmo sabendo que prazos para confirmação ou não do diploma começam a contar a partir da data de recepção da mensagem do PR (artigo 137º da Constituição e artigo 174º n.1 do Regimento da A.N.). A ausência do PAICV na conferência de representantes constituiu desculpa suficiente para o Presidente da A.N. não usar da perrogativa dada pelo 1 do artigo 174º do Regimento de convocar uma reunião plenária. O MpD é que terá que recorrer à essa mesma norma regimental para requerer a convocatória de uma reunião plenária com a assinatura de um quinto dos deputados. O “apagão” da A.N. é ainda mais grave porque é do conhecimento geral que a legislatura termina no dia 11 de Março com a sessão constitutiva da nova assembleia que resultou das últimas eleições legislativas. Ora, o n.3 do artigo 175º diz claramente que, em caso de veto político, se a “Assembleia Nacional não confirmar o voto, a iniciativa legislativa não pode ser renovada na mesma sessão legislativa”. Indo no mesmo sentido, o artigo 144º n.3 do Regimento diz taxativamente “a iniciativa legislativa directa caduca com o termo da legislatura”. Em caducando a “iniciativa” são anos de esforço para convergir posições numa matéria tão sensível e urgente como a Justiça que são atirados para o ar. E são meses outros de trabalho para se reiniciar o processo, provavelmente com outros protagonistas e numa outra conjuntura política. Face aos enormes custos envolvidos comparados com eventuais benefícios de se reiniciar o processo, benefícios que não se vislumbram porque o veto do PR veio sem fundamentação, o silêncio do Presidente da A.N e a ausência do PAICV indiciam cumplicidades cruzadas que só podem estar a esconder interesses no mínimo complicados. Assim são tratados os assuntos da República.

quinta-feira, fevereiro 24, 2011

Jogo às escondidas na República

Ontem dia 23 de Fevereiro, no noticiário das 13-14 da RCV, o deputado José Manuel Andrade, presidente da 1ª comissão, a Comissão de Assuntos Jurídicos e Constitucionais, confessou que o Grupo Parlamentar da PAICV desconhecia as razões do veto do Presidente da República aos Estatutos dos Magistrados Judiciais e do Ministério Público, aprovados pela unanimidade dos deputados em Dezembro último. No dia anterior também em declarações ao jornal Expresso das Ilhas e à RCV, o líder parlamentar do MpD confirmava que não tinha qualquer comunicação da Assembleia Nacional quanto ao veto do PR. A carta do PR que acompanhou a devolução dos diplomas só chegou aos grupos parlamentares ontem. Pelo documento na imagem ao lado vê-se que está datado de 4 de Fevereiro e que deu entrada no gabinete do presidente da A.N. no mesmo dia 4. O despacho do presidente para que cópias da carta fossem enviadas aos grupos parlamentares e ao presidente da 1ª comissão é do dia 9 de Fevereiro. Só quase duas semanas depois chegou às mãos das bancadas parlamentares. No entrementes, ninguém da presidência da A.N. respondia às solicitações de informações sobre a questão do veto. O “jogo às escondidas” só podia ter um propósito: retirar aos sujeitos parlamentares a possibilidade de, em tempo útil, tomar uma posição de confirmação ou não dos diplomas aprovados por unanimidade. Como pode o presidente da A N despachar “para consideração da Conferência de Representantes se depois não age para convocar esse órgão da assembleia? E não tem todo o tempo mundo nem mesmo os 120 dias contados a partir da data de recepção que a Constituição estabelece para o parlamento se pronunciar sobre os vetos políticos. A legislatura termina a 11 de Março e, por essa razão, a A N que aprovou os diplomas tem prazo até essa data para confirmá-los ou não. Ou seja com o fim da legislatura os diplomas caducam e todo o processo terá começar do início. Talvez seja o que alguns querem e no processo se tornam cúmplices de atropelos graves ao funcionamento das instituições da República. Importa por isso que os sujeitos parlamentares ajam com suficiente rapidez para a que a Assembleia Nacional, como representante de todos os caboverdianos no seu pluralismo e na diversisdade de seus interesses, se faça respeitar por todos os outros orgãos de soberania, pelos seus próprios titulares e pela sociedade. Há que reunir o Plenário antes do fim da legislatura para tomar uma posição sobre o veto do Presidente da República. Não há desculpa honrosa para que essa reunião plenária não aconteça.

quarta-feira, fevereiro 23, 2011

O veto do Presidente

O Presidente da República, Pedro Pires, decidiu vetar os Estatutos dos Magistrados Judiciais e dos Magistrados do Ministério Público. Do chamado pacote de leis da justiça, o BO de 14 de Fevereiro só trouxe três das cinco leis votadas pela unanimidade dos deputados. As outras duas foram devolvidas ao Parlamento. O complicado é que a devolução fez-se aparentemente sem a mensagem fundamentada do PR como manda o artigo 137 nº 1 da Constituição da República. O mais estranho ainda é o facto da Assembleia Nacional ter-se fechado em copas e não fornecer informações pertinentes sobre a matéria às lideranças dos grupos parlamentares. O veto do PR pode ser ultrapassado por votação da A.N. que confirme uma outra vez os diplomas devolvidos. É de relembrar que o pacote de Justiça, apresentado em Outubro de 2008 pelo governo passou um processo complexo de consensualização das posições das duas bancadas. Foi necessário proceder-se a uma revisão constitucional em Fevereiro de 2010 para que se pudesse prosseguir para uma convergência de posições sobre o sector de justiça. O que veio a verificar-se em Novembro e Dezembro de 2010. O veto do presidente arrisca a deitar por terra todo esse trabalho. O fim da legislatura com a inauguração do novo parlamento a 11 de Março faz caducar todas as iniciativas legislativas. O tempo mostra-se escasso e a aparente sonegação de informação aos actuais sujeitos parlamentares ameaça inviabilizar uma tomada de posição do parlamento. Legítimo é de se perguntar o porquê disso. Será que alguém no parlamento quer fazer do veto do presidente, dado sem fundamentação devida,, um veto definitivo. O parlamento pode fazer isso por si próprio, negando votar os diplomas outra vez ou chumbando a lei que aprovou dois meses atrás. O que não se pode fazer é fingir que nada está acontecer e deixar que o fim da legislatura salve a face a todos os envolvidos. Isso é inadmissível num Estado de Direito em que todos os actos dos órgãos de soberania devem primar pela transparência. O funcionamento do sistema político implica que os diferentes órgãos de soberania exerçam os checks and balances que deles é exigido. Não há subordinação de um órgão ao outro. A cumplicidade que parece estar envolvido neste caso chama atenção para a importância da eleição presidencial próxima no restauro do equilíbrio e moderação que o sistema exige.