Expresso das ilhas, edição 645 de 9 de Abril de 2014
Editorial
As relações entre o governo e
as câmaras municipais e entre o Estado e os municípios andam numa espécie de
montanha russa de subidas íngremes e descidas bruscas. É tudo sorrisos e
promessas em momentos como dias do município ou cimeiras entre primeiro-ministro
e autarcas. Noutros momentos são problemas à volta de transferências de
receitas e participação nos impostos, ou então disputas de terrenos ou ainda
tensões entre os órgãos municipais e os serviços desconcentrados do Estado. O
último episódio girou à volta dos parquímetros na Cidade da Praia. Na semana
passada a ministra da Administração Interna foi chamada ao Parlamento para ser
ouvida sobre a actuação da Polícia num caso em que a entidade gestora dos
parqueamentos bloqueou carros em alegada transgressão.
Os vários momentos desta
aparente interminável “novela” dos parquímetros deixam bem claro a dificuldade
das partes envolvidas em encontrar uma plataforma comum onde convergissem os
mútuos interesses de regulação do trânsito na Praia, de procura de eficiência
na utilização dos espaços públicos, de melhoria da qualidade de vida dos
residentes e de afirmação da autoridade pública. Todas as cidades confrontam-se
com a necessidade de regular a circulação e estacionamento de veículos nos seus
pontos centrais. Fazendo os utentes pagar é via dissuasora normalmente
encontrada. Diminui-se o tráfego e a concentração e cria-se mais uma fonte de
receitas.
Na Praia, a possibilidade de,
por um lado, a Câmara Municipal ter mais receitas e de, por outro, os
parquímetros gerarem descontentamento parece que foi vista como terreno fértil
para mais um caso de guerrilha política. Sucederam-se designadamente apelos a
boicotes dos parquímetros, revelações de omissões na legislação de
enquadramento das competências dos municípios quanto à gestão do estacionamento
nos centros urbanos e disputas quanto ao papel da Polícia Nacional e da Guarda
Municipal na fiscalização das regras de estacionamento. A ministra da
Administração Interna ainda apimentou a polémica declarando à imprensa na saída
da audição parlamentar que “se ela tiver
um carro e ir ao Platô, não paga o parquímetro”.
Tensões entre órgãos de
soberania ou entre o poder central e o poder local são normais e esperadas. As
fronteiras no que respeita às competências de uns e outros nem sempre são
precisas e há situações de sobreposição que podem constituir-se em fonte de
conflito. Tensões institucionais são uteis ao sistema político se se situam no
quadro dos checks and balances e dos
pesos e contrapesos que devem assegurar o seu equilíbrio e regular
funcionamento. Quando tensões evoluem para o estádio de guerrilha, de desgaste
de partes do sistema e mesmo de bloqueio, a capacidade de realizar o bem comum
fica comprometida. A lealdade institucional deixa de existir e ineficiências
graves se criam com a má utilização dos sempre escassos recursos públicos. A
desautorização mútua de agentes dos vários níveis da autoridade do Estado deixa
vazios de poder que todos acabam por pagar no aumento das incivilidades e da
própria criminalidade.
Muito já se perdeu nos
embates entre os governos e as câmaras nestes anos de democracia. Quantas
oportunidades de negócios ficaram para trás por causa de disputas de terrenos?
Como se abalou a imagem da Câmara de S. Vicente com o episódio do cerco durante
horas das suas instalações pela Polícia. O quanto se tem fragilizado os órgãos
municipais eleitos com a perda de receitas como a taxa ecológica e o
envolvimento directo do governo nas questões locais através de associações
comunitárias pré-seleccionadas. É evidente que, em tal ambiente, dificilmente
os órgãos municipais eleitos pelo voto popular poderão administrar e defender
os interesses específicos das populações como seria de esperar.
Os recursos do Estado são
desproporcionalmente superiores aos dos municípios. Este facto confere uma
responsabilidade maior ao governo em manter relações com o poder local na base
do respeito escrupuloso pelas suas atribuições e competências. O pressuposto
para a existência dos municípios é que as populações têm interesses específicos
que não se esgotam no interesse geral. A Constituição garante-lhes o direito de
autonomamente e através de órgãos eleitos fazerem avançar esses direitos
cabendo ao governo simplesmente a tutela da legalidade. É óbvio que num quadro
desses não cabe qualquer pretensão de uma tutela de mérito ou tentativa de
responsabilização política fora dos mecanismos previstos no sistema de governo
local.
Comparando com os quinze anos após a independência em que não houve
poder local, é evidente que o ressurgimento das câmaras teve um papel essencial
na criação de condições e meios para a resolução de muitos dos problemas das
pessoas. Cientes disso, as populações legitimamente esperam que o governo
aceite e respeite as suas opções na eleição das câmaras. Querem também ter
garantias que a relação do Estado com os municípios não é, em nenhum momento,
contaminada pela actuação local dos partidos nacionais, estejam eles no governo
ou na oposição.