sexta-feira, julho 15, 2016

Para uma nova administração pública

Mudanças e nomeações nos organismos do Estado têm monopolizado a atenção e o discurso político nas últimas semanas. Não é caso para espanto, considerando que um outro partido esteve 15 anos interruptos a dirigir a Pública (AP) e o novo governo esforça-se por se posicionar para melhor passar as suas orientações e atingir os objectivos preconizados junto ao eleitorado. Tensões são inevitáveis enquanto uns cedem lugares a outros, certas entidades desaparecem algumas novas são criadas e outras ainda são reestruturadas.
Isso passa-se mesmo em países como o Reino Unido que goza da famosa neutralidade do seu Civil Service. Na sequência de longos períodos de governo conservador ou trabalhista não se deixa de notar as “marcas” deixadas. Em Portugal nem a criação em 2012 da Autoridade de Contratação Pública com os seus concursos públicos para dirigentes da Pública evitou acusações de contracto de “boys and girls” pelo anterior governo ou impediu nomeações tidas do governo de António Costa vistas geralmente como partidárias. Noutros países assume-se mais ou menos frontalmente que há um número de altos funcionários ou dirigentes que são removidos ou emprateleirados conforme as alternâncias na governação. Nos Estados Unidos com o seu “spoil system” há mil e poucos lugares nomeados ao prazer do presidente e que deixam o cargo no fim da sua . Na Alemanha reservam-se por alguns anos “prateleiras douradas” para altos funcionários que foram cooptados para posições politicamente sensíveis por governos anteriores.
Cada país tem seu modelo de relação entre poder político e pública o qual na generalidade dos casos tem a ver com o seu específico percurso histórico e de desenvolvimento institucional. Há quem diga, por exemplo, que a quase ausência de restrições para a actividade política do funcionário português prescrita na Constituição é uma reacção à neutralidade política da AP que vinha dos anos do salazarismo. Em Cabo Verde fez-se um desvio: entre o salazarismo e a democracia houve o partido-Estado em que a pública deu uma viragem para o extremo oposto e foi completa e ostensivamente partidarizada. Dificilmente as soluções ideais para um serão também para o outro, não querendo isso dizer que não se possa aprender e mesmo apropriar-se das experiências dos outros.
A tendência geral nos estados modernos é a de convergir no mesmo objectivo: ter uma pública eficiente e eficaz, profissional, “amiga” da iniciativa individual e empresarial e fornecedora de serviço de qualidade aos utentes. Para isso, primeiro tem que encontrar formas de ser efectiva em seguir a orientação e implementar as políticas do governo legitimamente constituído e, ao mesmo tempo, ser profissional, isenta, imparcial e não discriminatória na prestação de serviço aos cidadãos. Não é tarefa fácil muito menos quando como em Cabo Verde ainda é bem presente uma cultura de partidarismo. O direito de acesso à Função Pública garantido pelo Constituição a todos os cidadãos não deve significar possibilidade de fazer carreira com base no cartão partidário nem direito de se excluir às directrizes legalmente transmitas pelo governo o e nem de se subtrair às exigências também constitucionais de isenção e imparcialidade. Para se conseguir esse nível de profissionalismo há que se fazer um esforço muito dirigido. Vários países optaram por formação dos seus funcionários ao mais alto nível em escolas especiais da do tipo Ecole Nationele d’Administration francesa ou College of Civil Service inglês.
A apreciação negativa da pública que se ouve de todos os lados designadamente de todos os partidos políticos, das organizações empresariais e de cidadãos comuns deve ser motivo suficiente para convergir esforços para se ultrapassar os constrangimentos actuais. Os ganhos de se conseguir uma confluência de vontades nessa matéria podem ser enormes porque pôr a AP no caminho certo irá afectar positivamente o ambiente de negócios e a competitividade do país. Torná-la mais eficiente e eficaz significará maior poupança nos recursos do Estado e mais qualidade nas despesas. Fazê-la mais profissional conduzirá a melhores políticas públicas e a mais accountability. Conseguir esses resultados porém implicarão reformas, legislação adequada e formação especializada. Não serão atingidos certamente com medidas unilaterais de entrega de cartões partidários e de outras medidas possivelmente limitadoras dos direitos políticos.
A verdade é com a economia mais dinâmica poder-se-ia entrar num círculo virtuoso que deixará para trás a cultura burocrática, centralizadora e não facilitadora de iniciativas que vem dominando o país desde dos seus primórdios. Ficará o caminho aberto para a cultura de serviço e de resultados que o país tão precisa e também para se adoptar uma atitude de mais cooperação entre as pessoas com impacto directo em mais civismo, mais confiança e menos conflitualidade.
          Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de  13 de Julho de 2016

sexta-feira, julho 08, 2016

Patriotismo inclusivo

Em mais um aniversário da Independência Nacional, o quadragésimo primeiro, as comemorações foram marcadas por ritos, cerimónias e discursos de exaltação patriótica que apelam ao renovar do patriotismo em particular junto das novas gerações. O espírito patriótico resulta da consciência de pertença a uma comunidade política nacional irmanada por princípios e valores da liberdade, da democracia, de justiça e de solidariedade. Renová-lo nas datas nacionais e mantê-lo vivo ao longo de todo o tempo é essencial para o ambiente político, económico, social e cultural, que se quer de afirmação do indivíduo, da promoção da diversidade, de livre manifestação de interesses, do pluralismo político e de incentivo à criatividade e que já mostrou ser indispensável para gerar dinâmica sustentada e atingir o grau de desenvolvimento almejado por todos.
O discurso do patriotismo tem experimentado nos últimos tempos em vários países um inesperado ardor e contundência que preocupa, porque em vez de reafirmar a unidade da nação e a importância da contribuição de todos para o bem comum, tende a dividir, a vitimizar uns e a culpar outros. Ouvir Marine Le Pen e outros políticos da extrema-direita europeia a apelar aos “patriotas” em contraposição aos que seriam os “globalistas” relembra processos de divisão nas sociedades e nas democracias que no passado desemborcaram em regimes totalitários, fascistas e comunistas, e em guerra mundial. Discurso similar ouviu-se durante todo o processo que levou ao referendo no Reino Unido. À volta da questão de imigrantes procurou-se dividir as pessoas exacerbando as diferenças entre as gerações e entre uma elite cosmopolita e europeia e outras classes mais nativistas e patrióticas. Viu-se o resultado no Brexit e no espanto e consternação pela saída do Reino Unido da União Europeia. O mesmo também está acontecer nos Estados Unidos da América com o fenómeno Donald Trump que já se posicionou com candidato do partido republicano para o cargo de presidente nas eleições de Novembro. As consequências de uma eventual vitória de Trump seriam simplesmente desastrosas a nível global afectando as relações entre os países, e a paz e a segurança mundial.
Robert Reich, ex-Secretário de Trabalho no governo Clinton e Chanceler na Universidade da Califórnia chamou recentemente a atenção para a ascensão de um certo discurso político que ele classificou de “patriotismo exclusivo”. Um discurso de certos sectores que se consideram os mais puros e defensores dos valores nacionais em contraposição com os que supostamente se vendem ao estrangeiro porque são cosmopolitas, ou são multiculturalistas ou tolerantes das diferenças raciais, sexuais e religiosas. Para eles as regras e as instituições democráticas e os princípios da liberdade e da igualdade de oportunidades não têm de ser respeitados a todo o momento em particular quando o que consideram altos valores se alevantam. Justificam o seu patriotismo exclusivo com o novo ambiente mundial criado pela globalização que destrói milhares de postos de trabalho nos países desenvolvidos, pelas migrações massivas que sobrecarregam os sistemas de segurança social e introduzem forte concorrência no mercado de trabalho e pelo terrorismo que cria insegurança e deixa os cidadãos desamparados sem a protecção do Estado. A fragilização e quase colapso dos partidos colocados ao centro, seja ao centro-esquerda seja ao centro-direita, têm sido acompanhados da ascendência dessas forças políticas situadas nos extremos da vida política com discursos que cada vez mais se reclamam deste patriotismo exclusivo.
Cabo Verde conhece bem as consequências de se persistir na reivindicação da condição de patriotas só para alguns quando há muito se deixou para trás a polarização política inicial dos tempos da independência. Em condições ideais instala-se um regime antidemocrático em que os autoproclamados “melhores filhos” acham-se no direito de governar sem necessidade de consentimento dos outros como aconteceu nos primeiros quinze anos da independência. No regime democrático que se seguiu ao 13 de Janeiro, a persistência de resquícios desse patriotismo exclusivo dificultou a consolidação do regime democrático, desincentivou o diálogo, impediu compromissos e não deixou muito espaço para negociações entre as forças políticas. Quantas vezes no embate parlamentar não se consegue avançar no debate e chegar a acordo porque uma das partes considera a sua posição patriótica e portanto superior, subentendendo-se que tem razão e que a outra parte estaria ao serviço de causas contrárias ao bem público.
É um facto histórico incontornável que as sociedades, que conseguem mobilizar as pessoas individualmente ou organizadas em empresas ou outras entidades ligadas à produção de riqueza para perseguir os seus interesses e realizar as suas ambições, ficam em melhor posição de colher os frutos do esforço de todos e de, colectivamente, fazer a comunidade avançar a um passo sem precedentes. Também sabe-se que contribui extraordinariamente para o sucesso nessa via, se no plano político de determinação da orientação a dar à sociedade, vigorarem os princípios da concorrência, da igualdade de oportunidades, do pluralismo, do primado da lei e da resolução pacífica de conflitos. O pressuposto básico para isso é que todos se sintam cidadãos em pleno, unidos pelos princípios e valores plasmados na Constituição da República.
É esse sentimento que constitui o patriotismo inclusivo que há que promover para que o desenvolvimento do país prossiga sem querelas inúteis. Porque ninguém é mais patriota que o outro e patriotismo não é argumento quando todos, seguindo as regras do contraditório, estiverem engajados na consecução do bem comum e do interesse público.
          Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 6 de Julho de 2016
        

sexta-feira, julho 01, 2016

Elites que falham II

O Brexit, a saída do Reino Unido da União Europeia, apanhou toda a gente de surpresa. O referendo marcado para 26 de Junho vinha causando alguma ansiedade, mas poucos pensavam que a decisão pela saída se concretizaria. Esperava-se que, apesar das paixões exacerbadas e da demagogia manifestadas ao longo do debate, o conhecimento antecipado das consequências negativas do corte com a Europa seria o factor determinante no posicionamento das pessoas. Infelizmente, não aconteceu.
Os argumentos da elite europeia não conseguiram demover os vários sectores da população que cada vez mais vêm-se manifestando insatisfeitos com a situação económica social de estagnação, com o desemprego elevado e com a evidência crescente das dificuldade das instituições da União Europeia em gerir crise sucessivas na região, designadamente a crise do euro, o terrorismo e o problema dos refugiados. O crescimento de forças políticas de extrema direita e de esquerda na Europa tem estado intimamente ligado ao nacionalismo, à xenofobia e aos ressentimentos provocados pelo rápido processo de globalização, pela percepção do poder crescente da Comissão Europeia e pelo presença de imigrantes vindos tanto de países recentemente integrados na União como de fora da União. As fracturas entre as elites e as populações ficaram completamente expostas ao longo de todo o processo que culminou com o referendo. Nem as ameaças externas que vêm despontado no horizonte, sob a forma do activismo russo na Ucrânia, o terrorismo jihadista e a eventual desintegração da Síria conseguiram unir as pessoas e evitar a deriva de posições que vem cavando o distanciamento entre as nações da Europa, entre as elites e o povo e entre os autóctones  e os emigrantes.
Historicamente o sonho de uma Europa unida nasceu de uma preocupação fundamental de conter ameaças externas, manter o equilíbrio interno e criar um ambiente de paz, justiça e liberdade propício ao desenvolvimento. Após a segunda guerra mundial o estabelecimento de um eixo franco-alemão envolvendo os Países Baixos e depois a Itália foi central para se ir além das rivalidades continentais que em mais de uma ocasião tinham provocado guerras totais no espaço europeu com destruição massiva de bens e pessoas. Fundamental nesse processo foi a presença americana, via NATO, a garantir a segurança necessária no quadro da guerra fria para que durante décadas a experiencia europeia evoluísse de um Mercado Comum para uma Comunidade Económica Europeia, integrando o Reino Unido em 1975.
 A partir de um certo momento o sucesso da experiência conjunta desses países, evidente na prosperidade conseguida e nos serviços prestados pelo Estado Social, entretanto construído, passou a ser uma referência no resto da europa e no mundo. Na primeira metade dos anos oitenta, países como Portugal, Espanha e Grécia, que durante décadas viveram sob ditaduras e que recentemente se tinham democratizado, foram integrados na Comunidade Económica Europeia (CEE), beneficiando de largos fundos estruturais para se colocarem no mesmo patamar dos outros. O mesmo processo iria depois verificar-se, na sequência da queda do Muro de Berlim em 1989, com os países da Europa do Leste que tinham estado durante décadas sob o manto do comunismo.
Chegado a este ponto, a Europa além de se confirmar como uma força para a democracia e um promotor da expansão de mercados e da sua regulação, mostrava-se como inovadora na criação de uma entidade supranacional onde países mantinham a identidade de estados ao mesmo tempo que se afirmavam mais europeus e cediam parte da soberania para instituições europeias. Tensões, inevitavelmente, desenvolveram-se à medida que se alargava o escopo da integração com a adopção do euro, a livre circulação e as transferências de poderes para a Comissão Europeia. Foram aceites enquanto reinou a prosperidade, mas ganharam uma outra dimensão quando veio a crise financeira em 2008, quando se perderam postos de trabalho com a globalização e apareceram imigrantes em massa. A falta de confiança instalou-se quando as lideranças mostraram-se incapazes de resolver os problemas. Piorou quando ficou patente que os sacrifícios exigidos eram distribuídos desigualmente, ficando os menos abastados com a maior carga. Em consequência alargaram-se as fracturas sociais e as divisões entre países. O Brexit é a primeira vítima disso. Outras estarão a caminho.
As incertezas geradas pela saída do Reino Unido vão ser consideráveis e afectam a todos. Cabo Verde não será excepção. 25% dos turistas que vêm a Cabo Verde têm origem no Reino Unido. A considerável baixa já verificada da libra em relação ao euro, a manter-se, certamente irá encarecer o destino Cabo Verde. A perspectiva futura de aumento das taxas de juro e de rendimentos menores dos britânicos poderá afectar o fluxo de turistas nos próximos anos. Indirectamente o país ainda poderá ser afectado porque provavelmente com o Brexit haverá menos crescimento económico e mais instabilidade na União Europeia e sabe-se que daí é que vem o grosso dos investimentos, das remessas e da cooperação internacional. Juntemo-nos a todos os que esperam que esta crise seja uma oportunidade para a liderança da União Europeia se colocar à altura dos problemas que confronta. É fundamental que a UE continue a ser uma referência mundial de democracia, de tolerância e de civilização.
               Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de  29 de Junho de 2016

sexta-feira, junho 24, 2016

Elites que falham

As declarações da Ministra Eunice Silva em S.Vicente pôs muita “boa gente” em pé de guerra. Disse que Cabo Verde não era só S. Vicente. Acrescentou que a ilha esta numa fase de expansão acelerada a qual precisa ser contida no quadro de um plano. À frente das câmaras da RTC estava a responder ao pedido de apoio do presidente da câmara municipal para mais infraestruturas na cidade. Pode não ter sido feliz na escolha das palavras ou na forma como se expressou, mas não devia haver dúvidas que quis realçar, por um lado, as dificuldades na partilha de recursos, sempre escassos, pelas diferentes ilhas e, por outro, apelar à racionalização da expansão da Cidade via um plano previamente concebido. 
As reacções às declarações da ministra foram excessivas mas também reveladoras. Traduziram muito do que está subjacente a um certo pensamento político no país e é caro a uma certa ideia de Cabo Verde. Deixaram transparecer logo a mentalidade redistributiva, que se tornou prevalecente no país, acompanhada do discurso vitimizador. Um facto que normalmente se nota mais em tempos de eleições quando se prima pelo discurso de vitimização das populações e também das ilhas e se fala de discriminação, de marginalização e de abandono. Pelo impacto das palavras da ministra percebe-se o alcance já atingido por essa forma de ver os problemas do país e que soluções são realmente expectáveis para certos sectores da sociedade. Não espanta que se queira mais esquemas de ajudas, mais transferências de fundos públicos e mais obras, de preferência infraestruturas com grande visibilidade. São, porém, soluções que até agora não impediram mais dependência do Estado, mais perda de massa crítica na população das ilhas, mais reforço da centralização e menos capacidade de aproveitamento de oportunidades. Pelo contrário. 
A realidade é que, depois de quarenta anos a viver enquadrado num modelo de desenvolvimento com base na gestão de fluxos externos designadamente doações, remessas de emigrantes, empréstimos concessionais e recentemente dívida externa, dificilmente se pode escapulir imediatamente para uma outra mentalidade que não aquela que valoriza a dependência e o espírito redistributivo. Os anos noventa foram os únicos durante os quais se pretendeu fugir desse modelo. As reformas políticas e económicas porém foram insuficientes para fazer emergir uma nova mentalidade de abertura ao mundo para conter as tendências autárcicas, uma cultura empresarial que contrariasse a cultura administrativa predominante e uma classe média autónoma que se diferenciasse da classe média criada pelo Estado e fosse a coluna vertebral de uma sociedade civil alerta e actuante. 
Nos 15 anos que se seguiram predominou o discurso ilusionista com foco na competitividade e no empreendedorismo. Serviu para camuflar a progressiva centralização do país apesar de alguma dinâmica nova devido ao turismo nas ilhas do Sal e da Boa Vista, mas não conseguiu instilar nas pessoas e nas instituições uma cultura de serviço e de resultados indispensável para combater a burocracia, para criar um bom ambiente de negócios e para incentivar a iniciativa privada. Esses anos terminaram com dívida pública pesada que agora constrange grandemente a possibilidade de futuros investimentos públicos para arrancar a economia e com crescimento anémico que desmotiva o investimento privado. Para além disso ainda ficou um lastro de chumbo: custo excessivo de factores designadamente energia e água, sistema de transportes marítimos e aéreos ineficazes e ameaçando colapso, infraestruturas em portos, aeroportos e estradas subaproveitadas, segurança pública comprometida, sistema de saúde aquém das necessidades e um sistema educativo inadequado e de qualidade duvidosa. 
É evidente que no novo ciclo político devia-se romper completamente com o modelo, a mentalidade e o discurso político que já pôs o país na situação difícil em que se encontra actualmente. Pelas reacções às palavras da ministra das Infraestruturas vê-se que isso ainda não aconteceu. Mas o tempo urge. As muitas incertezas no mundo de hoje deviam ainda ser mais um estímulo para se fazer rapidamente o corte e também para, parafraseando Marcelo Rebelo de Sousa, sem medo se “ver a realidade e decidir com visão e sem preconceitos”. 
O apelo feito às elites portuguesas também podia aplicar-se à classe política cabo-verdiana. Cabo Verde precisa de liderança esclarecida que não se enverada pelo discurso fácil e demagógico para ganhar eleições. Servir e respeitar o povo cabo-verdiano deve significar fazer discurso político plural com verdade e sem exploração desonesta das emoções primárias das pessoas. E isto aplica-se a todos tanto no governo como na oposição. 

                 Editorial do Jornal Expresso das ilhas de 22 de Junho de 2016 

sexta-feira, junho 17, 2016

Excesso de zelo ou zelo deslocado?

O Expresso das Ilhas e outros órgãos de comunicação social foram notificados pela Autoridade Reguladora para a Comunicação Social por “referências aos resultados de uma sondagem relativa às eleições autárquicas”. Na realidade, este jornal não publicou qualquer sondagem. E as informações contidas nas peças jornalísticas, vistas dentro do contexto, não dizem respeito às eleições autárquicas, mas sim a um processo interno de selecção de candidatos num partido, processo esse no qual o público ou o eleitorado não tem qualquer papel. Além disso, a sondagem não era para publicação, porque interna do MpD, e por isso não havia como o jornal poderia ter citado a data da primeira publicação ou indicação do seu responsável.  
A verdade é que o Expresso das Ilhas noticiou não uma sondagem mas sim um diferendo entre militantes do MpD que resultou das escolhas da comissão política desse partido para primeiro da lista para as câmaras municipais. A justificar o seu desacordo, os protagonistas referiram-se a sondagens internas desse partido que teriam sido encomendadas para efeito dessa selecção e que não teriam sido devidamente usadas. Não reproduzir os argumentos apresentados por se tratarem de dados de sondagens seria mutilar a notícia e defraudar o leitor. Tudo isso nome de quê e para quê? 
Compreende-se que a ARC se sinta no dever de proteger a opinião pública de sondagens e inquéritos de opinião feitos ad hoc com objectivos pouco claros para condicionar o público, particularmente em momentos eleitorais. Tratando-se neste caso de uma pré-selecção de candidatos num quadro interno de um partido político não se vê como os dados poderiam eventualmente afectar o comportamento do eleitorado mesmo que a sondagem fosse publicada. Nesta perspectiva parece desproporcional coartar a publicação da notícia do diferendo entre personalidades políticas apenas porque, em esgrimindo as suas razões, referem-se a dados de uma sondagem cujo potencial efeito no eleitor municipal daqui a 3 meses é praticamente nulo. 
Nas eleições legislativas várias questões sobre alguns artigos do Código Eleitoral suscitaram dúvidas porque, precisamente, constrangiam a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa. Na sequência de protestos de jornalistas e de órgãos de comunicação social, o Presidente da República, Jorge Carlos Fonseca, tomou a iniciativa de pedir a fiscalização abstracta e sucessiva da constitucionalidade de algumas alíneas do número dois do artigo 105º do Código Eleitoral e também de algumas normas dos artigos 106º e 108º. Ainda o Tribunal Constitucional não se pronunciou, mas espera-se que venha confirmar, citando o pedido do PR, que “a Constituição consagra o princípio da mais ampla extensão desses direitos à liberdade, reconhecendo a esses direitos à liberdade a máxima amplitude e acolhendo baixíssimos graus de limitação ou restrições”.  
Não se pode, de facto, em nome da defesa da opinião pública de hipotéticas tentativas de manipulação, pôr entraves sérios do género das contraordenações a jornais que podem chegar a dois mil e quinhentos contos simplesmente por estarem a cumprir a sua missão fundamental de facilitar aos indivíduos os meios para o exercício pleno do direito de informação, direito de ser informado e de acesso à informação em tempo útil. A história das democracias tem demonstrado que o exercício pleno das liberdades e a garantia do pluralismo são dos mecanismos mais efectivos para evitar a manipulação, esvaziar tentativas de condicionamento da opinião pública e manter plenamente informadas as pessoas. Tentar substituir o livre fluir de ideias, as manifestações abertas de interesses e as demonstrações de diversidade por uma regulação apertada do que se pode fazer ou dizer em nome, seja de preocupações de segurança, da procura do politicamente correcto e mesmo da defesa da moral normalmente não resulta em mais segurança, em mais tolerância e em mais civilização. Pelo contrário, tende a empoderar quem sempre manteve desconfiança epidérmica da liberdade. É importante que uma entidade nova como a Autoridade Reguladora para a Comunicação Social tenha sempre em devida perspectiva os objectivos fundamentais para que foi criada nomeadamente garantir o exercício das liberdade expressão e de imprensa e assegurar o pluralismo. Nos seus actos deve ter sempre presente que manter o sentido da necessidade, da proporcionalidade e oportunidade é fundamental. A eficácia e o sucesso da instituição dependem muito disso. 
       Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 15 de Junho de 2016

terça-feira, junho 14, 2016

Controlo da Administração Pública

O arranque de qualquer novo governo impõe logo à partida adequar a Administração Pública (AP) para melhor servir a orientação política e as grandes linhas de governação que foram sufragadas nas eleições legislativas. Constitucionalmente cabe ao governo dirigir a administração pública directa, superintender institutos e outras entidades da administração indirecta e tutelar a administração autónoma como os municípios e ainda o sector empresarial do Estado. Do antigo governo herda-se uma AP que durante anos tinha sido posta ao serviço das suas políticas interna e externa. A reorientação política acontece com a entrada em funções dos novos membros do governo e a ocupação de cargos de direcção na estrutura superior da administração por personalidades alinhadas pelas políticas que venceram as eleições. Se a administração pública for o Civil Service inglês, em que os funcionários não podem ser militantes de partidos e há o sentido de dever profissional de seguir e respeitar a orientação dada por quem foi eleito, as mudanças serão mínimas e verificam-se basicamente ao nível do governo. Se, diferentemente, a AP recebida foi partidarizada, as mudanças irão ser mais profundas e mais vastas em conformidade com o nível da partidarização encontrada. Não se pode estar a gritar contra a partidarização da AP pelo governo do UCS sem primeiro se assumir que recebeu um aparelho de Estado altamente partidarizado. E não é porque o governo anterior introduziu o regime de concursos públicos para cargos no Estado a menos de seis meses do fim do seu mandato que automaticamente todas as nomeações que fez nos quinze anos anteriores ficaram despidas de qualquer resquício de favoritismo político. Aliás, é o próprio ex-primeiro-ministro JMN a reconhecer que a partidarização excessiva contribuiu para o mau ambiente de negócios e para a falta de eficácia da AP em servir o público e as empresas. Já no passado tinha acontecido o mesmo. Num artigo de jornal em 1988, Renato Cardoso, então Secretário de Estado, foi peremptório em referir-se às “consequências desastrosas na eficácia da administração por afogamento da máquina do Estado no mar de intervenção omnipresente e omnipotente das instituições políticas”. A Cabo Verde, como a qualquer democracia que quer consolidar-se e criar as condições para produção de riqueza e para prosperidade geral do seu povo, é de suma importância que tenha uma AP que, assim como estabelece a Constituição de 1992, seja isenta, imparcial, não discriminatória, profissional e com uma cultura de excelência no serviço que presta aos cidadãos e à economia. A tarefa de construção dessa nova AP é gigantesca, considerando o lastro pesadíssimo do passado. A resistência maior vem da cultura institucional contrária aos preceitos constitucionais que absorveu ao longo dos 40 anos do Cabo Verde independente. O PAICV governou 30 desses quarenta anos, 15 anos logo à seguir à independência e 15 anos depois de 2001. Nos primeiros quinze anos de Partido-Estado a administração pública era um simples instrumento do PAICV. Os funcionários para serem recrutados tinham que prestar provas de conhecimento sobre os princípios e programa do partido e os comités do partido intervinham no funcionamento das repartições públicas. Em 1990, no período da transição política, os funcionários do partido foram integrados directamente na administração pública. É nestas condições que o MpD encontrou a AP em 1991 e que durante dez anos, com mais ou menos sabedoria e capacidade organizativa, tentou colocá-la à altura de um Estado moderno e democrático. A partir de 2001, porém, o PAICV voltou a governar e o processo de despartidarização é interrompido ou mesmo invertido. Em consequência, aumentou a promiscuidade entre o partido e o Estado e as pessoas e a economia ficaram cada vez mais dependentes de uma administração centralizadora, insensível e pouco profissional. Também notórias são as perdas de competitividade e os estragos no ambiente de negócios como bem revelam vários relatórios internacionais e queixas do empresariado nacional e de operadores estrangeiros. Cabe agora ao novo governo retomar a tarefa imprescindível de criar a AP que Cabo Verde precisa para se desenvolver e se modernizar. Mas, como era de esperar, o PAICV agora na oposição faz o seu jogo do costume: se não está no poder, põe-se no papel de vítima e acusa os outros de partidarização. Esse jogo não deve, porém, ser impedimento para a reforma da AP que o país precisa urgentemente.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 758 de 08 de Junho de 2016.

sexta-feira, junho 10, 2016

Crise e oportunidade

Em citações de várias personalidades há um convite par se ir para além das manifestações da crise e ver as oportunidades que se abrem no novo ambiente criado. Para o economista americano Paul Romer a “crise é uma coisa terrível de se desperdiçar”. Para John Kennedy “numa crise há que ter cuidado nos perigos mas também há que reconhecer a oportunidade”. A situação nas Forças Armadas, que na sequência do assassinato dos oito militares e três civis no Monte Tchota, levou à demissão do chefe de estado-maior qualifica-se como sendo de crise com profundas implicações no futuro das FA, mas também como uma oportunidade para melhor as posicionar no sistema de defesa e segurança de Cabo Verde.
No programa apresentado ao Parlamento, o novo Governo propõe organizar “as forças de defesa à volta da unidade de fuzileiros, uma unidade de engenharia militar e uma guarda nacional paramilitar dotada de acesso a meios marítimos e aéreos”. O problema com esta proposta é que tem sido na essência feita desde os anos 90 e nunca se concretizou. Alguma resistência institucional impediu que a Guarda Costeira ou a unidade aeronaval ocupasse a centralidade pretendida. As funções que a Guarda Costeira poderia ter no domínio da busca e salvamento nunca foram cabalmente assumidas. O policiamento das águas e das costas não se verificou com a eficácia desejável por falta de meios, mas também por não ter o estatuto de uma força de segurança e ser parte das Forças Armadas. O mesmo aconteceu no controlo das pescas nas águas de Cabo Verde.
Entretanto, o país tornou-se um ponto procurado por traficantes porque tem as costas desguarnecidas. Pescadores e população em geral preocupam-se com a depredação dos nossos mares, pesca excessiva do tubarão e falta de controlo geral dos acordos de pesca. Todos puderam constatar com dor a falta que faz ao país não ter um sistema eficaz de busca e salvamento que consiga chegar com rapidez a qualquer ilha em caso de acidentes no mar ou de qualquer emergência. Por outro lado, viu-se como a dispersão das competências da Autoridade Marítima por várias instituições que nem sempre sabem dialogar entre si e em tempo útil contribuiu para uma situação difícil na navegação marítima com consequências graves como o afundamento de navios e perdas de vida humana.
Impunha-se uma mudança de fundo que não se verificou. A Guarda Costeira continuou a ser filha do deus menor dentro das FA. A Polícia Marítima e a Polícia Fiscal passaram a integrar a Polícia Nacional num processo em que relatórios de segurança nacional publicados nos quais se constata falta de coordenação e de eficácia na acção das forças. Na Protecção Civil viram-se as dificuldades com que se debate na forma como funcionou na sequência da erupção do vulcão da Ilha do Fogo. A própria cooperação internacional é prejudicada porque não encontra interlocutores com estatutos, prioridades e objectivos bem definidos. É só ver as Forças Armadas a receber no mês de Fevereiro equipamento anti-tumulto da cooperação brasileira, quando o mais lógico seria  ir para a polícia, até porque, de facto, precisavam de rádios para as comunicações como se veio a constatar no caso do massacre do Monte Tchota. 
A crise actual deve ser analisada para se ter a compreensão dos problemas e suas origens e na sequência disso aproveitar para fazer as mudanças necessárias. Parece evidente que para termos uma Guarda Costeira adequada para o país ela deve ser retirada das Forças Armadas e poder crescer como instituição autónoma e cumprir as missões que o país dela espera. Os seus principais interlocutores em termos de cooperação, a Guardia Civil espanhola e a Guarda Costeira americana nenhuma delas pertence às Forças Armadas dos seus países. São forças de segurança com poderes de polícia. Certamente que facilitaria muito a cooperação se tivessem o mesmo estatuto.
A autoridade marítima do país poderia ser consolidada numa única instituição integrando a Guarda Costeira, Polícia Marítima, Capitania dos Portos, Instituto Marítimo e Portuário e até a futura escola do mar. Com isso talvez os nossos mares fiquem mais seguros, os nossos portos mais regulados, os navios melhor inspeccionados, os nossos oficiais e marinheiros melhor preparados, e os nossos mares e costas mais eficazmente policiadas. É preciso fazer da crise nas FA uma oportunidade para agir. O que se tem agora já provou tragicamente que não funciona. 
                  Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 8 de Junho de 2016

quinta-feira, junho 09, 2016

Ainda a propósito de estatuto especial…

A possibilidade de atribuição de um estatuto administrativo especial a alguma parte do território nacional é um sinal de que alguma flexibilidade pode ser introduzida na organização administrativa do país para melhor a adequar às suas necessidades de desenvolvimento. Cabo Verde como país arquipélago tem um mercado interno fragmentado e custos enormes em infraestruturas de desenvolvimento por ser obrigado a repetir portos, aeroportos, estradas, sistemas de energia e outros, em todas as ilhas. Estes custos multiplicam-se se a abordagem dos problemas locais de desenvolvimento for feito no estilo rígido de “tamanho único” ou “modelo único”. Um exemplo é tentar resolver os problemas complexos de Santa Maria, na ilha do Sal, enquanto cidade turística, com a criação de um novo município quando se sabe que algumas das possíveis soluções não são de competência das câmaras municipais. Uma outra via a explorar seria a criação de uma outra entidade que poderia administrar a cidade turística com poderes delegados tanto do Estado como dos municípios. Na perspectiva de desenvolvimento já se experimentou aqui em Cabo Verde com sociedades de desenvolvimento e zonas francas. Uma outra ideia que tem ganho crescente atenção no mundo é a das Charter Cities, cidades com estatuto próprio, promovida pelo economista americano Paul Romer. Nessas cidades, questões designadamente de planeamento urbano, segurança, marketing e desenvolvimento de vantagens competitivas e até de incentivos fiscais são assumidas directamente pela direcção da cidade num quadro de delegação de competências. Independentemente do formato encontrado, o importante será deixar espaço para alguma flexibilidade na gestão do desenvolvimento das ilhas que não fique só pelos municípios ou outras estruturas como as regiões administrativas, limitadas que são necessariamente pela sua condição de autarquias.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 757 de 31 de Maio de 2016.

quarta-feira, junho 08, 2016

Estatuto administrativo especial

Nas festividades do Dia do Município o Primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva retomou a questão do estatuto administrativo especial para a capital da República, como estabelece o n.2 do artigo 10º da Constituição. A dificuldade em cumprir esse preceito desde que foi introduzido na revisão constitucional de Novembro de 1999 é que não se chegou a acordo sobre o conteúdo do mesmo. Do legislador constituinte não se consegue nenhuma ajuda pois o artigo foi proposto sem uma justificação e logo de seguida aprovado sem debate prévio. Remete-se tudo para a lei, mas as dificuldades em termos conceptuais e de encontrar casos similares no direito comparado não são poucas. Capitais com estatutos administrativos especiais normalmente só se encontram em estados federais como os EUA com a sua Washington DC, o Brasil com a capital federal na Brasília, assim com Abuja na Nigéria, Bruxelas na Bélgica ou Berlim na Alemanha. Estados unitários não têm a necessidade de construir a ideia da “capital da nação” para promover o sentido de unidade do país. Mas há casos especiais como a Espanha que mesmo sendo um estado unitário tem regiões políticas com graus elevados de autonomia justificando aí um estatuto administrativo especial para a cidade de Madrid. No caso de Cabo Verde, seguindo o exemplo desses países, poderia eventualmente justificar-se se paralelamente houvesse um movimento de grande autonomia político-administrativa para as ilhas e a criação de uma segunda câmara para o parlamento. Isoladamente e fora desse contexto a proposta de estatuto administrativo especial para a Praia tem sido explicada por alguns dos seus apoiantes como forma de beneficiar a capital com a transferência de mais recursos do Estado. Que faria jeito à cidade ter mais recursos é um facto, mas difícil de justificar num ambiente em que de vários quadrantes vêm críticas acesas contra a crescente centralização na capital em detrimento do resto do país. Neste aspecto não deixam margens para quaisquer dúvidas os dados do INE publicados em Agosto de 2015 (PIB por Ilhas) que revelam a grande concentração de recursos na Praia: 39% do PIB nacional enquanto o interior de Santiago vive com o PIB per capita abaixo da média do país e ilhas como Santo Antão, Brava, Fogo e S. Nicolau labutam com a economia estagnada e a perder população. Praia tem ainda problemas difíceis designadamente de segurança, saneamento, habitação, transportes, que em boa parte são derivados das migrações internas causadas muitas vezes pela vã esperança de pessoas do interior de Santiago e das outras ilhas de captar a prosperidade gerada pela alta concentração dos recursos do Estado. Aumentar esses recursos com novas transferências não será provavelmente a melhor forma de resolver esses problemas. Para isso contribuiria muito mais se as ilhas conseguissem uma maior dinâmica num quadro de expansão rápida da economia privada impulsionada por investimentos nacionais e estrangeiros. Por outro lado, falar de estatuto administrativo especial para a capital pode indiciar, a exemplo do que se passa em capitais federais, alguma partilha com o governo de certas competências normalmente exclusivas dos órgãos municipais. Neste sentido pode configurar alguma perda de autonomia municipal. Quanto às transferências extraordinárias justificar-se-iam com dados concretos demonstrativos de perdas sofridas pelo município da Praia por ser capital da República, a exemplo do que é previsto no estatuto administrativo de Madrid. E mesmo assim nas condições actuais de Cabo Verde ter-se-ia que contabilizar os benefícios e os custos da capitalidade para se ter uma ideia certa de como agir e quais deveriam ser os montantes a transferir.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 757 de 31 de Maio de 2016.

terça-feira, junho 07, 2016

Manter para poder mudar

A recondução ao cargo do conselheiro de segurança nacional do governo anterior deixou muita gente perplexa. Se tinha sido algo desconcertante o Primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva convidar para o cargo de ministro da Administração Interna o então director dos Serviços de Informação da República nomeado pelo governo de José Maria Neves, este último acto de UCS parece sugerir que não haverá mudanças de fundo em todo o aparatus de Segurança no país. Em relação à actual estrutura de forças, no programa do governo não há uma única palavra. Assume-se que continuará a mesma, mas paradoxalmente espera-se que chegue a melhores resultados do que os conseguidos até agora. Aquando da aprovação das leis estruturantes do sistema de defesa e segurança, em 2005 e 2006, o MpD questionou as opções apresentadas pelo então governo, propôs outras e previu que não iriam funcionar, que não deixariam as forças policiais melhor preparadas para combater o crime e responder a emergências nacionais e que afectariam negativamente as Forças Armadas. O governo do PAICV preferiu ignorar as objecções do MpD e aprovou sozinho toda a legislação sobre a segurança. O resultado, todos conhecem. O Príncipe de Lampedusa professava uma teoria que era preciso “mudar para ficar tudo na mesma”. Parece que por aqui a ideia é de manter as coisas no seu lugar e querer mudança e resultados. Vamos ver como serão cumpridas as promessas de mais ordem e tranquilidade para as pessoas e mais segurança para o país.  
 Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 757 de 31 de Maio de 2016.

sexta-feira, junho 03, 2016

Vêm aí as autárquicas

O governo marcou as eleições autárquicas para 4 de Setembro. As eleições presidenciais terão ficado para Outubro para se fechar o ano excepcional das três eleições seguidas que se repete de 20 em vinte anos devido a diferenças no tempo de mandato: cinco anos para as legislativas e presidenciais e quatro anos para as autárquicas. Está iniciada a contagem para o segundo evento eleitoral deste ano. A corrida dos candidatos aos órgãos autárquicos porém começou há muito.
O ano de 2016 também é excepcional porque marcou o fim de três mandatos seguidos do PAICV com uma vitória marcante do MpD em todos os círculos. Quando é assim, a expectativa geral dos actores políticos é que as outras duas eleições também vão registar diferenças grandes na votação num e noutro partido. A experiência de outras eleições em Cabo Verde não confirma esse efeito de contágio. Não obstante, é praticamente impossível controlar a energia de muitos entusiastas e candidatos, uns, sem partido, e a aproximarem-se da actividade política pela primeira vez, e outros, recém- entrados para a organização e já a correr por posições vantajosas no partido e no Estado. A corrida passou para um outro nível quando foram introduzidas sondagens na selecção de candidatos. Tornar-se numa celebridade local e nas redes sociais estabeleceu-se como o grande objectivo de quem quer ficar bem posicionado nas sondagens do seu partido e futuramente aparecer nas listas de candidatos do seu partido.
A opção por sondagens na escolha de candidatos em vez de primárias pode não ter sido uma boa ideia. As primárias têm a vantagem de contrapôr projectos políticos alternativos enquanto as sondagens focalizam-se no indivíduo independentemente da forma como ganhou notoriedade. A experiência das autárquicas, mas não só, acautela para a excessiva concentração na personalidade do líder pois, em caso de triunfo eleitoral, será mais fácil reclamar a vitória para si, limitar a influência do partido e do eleitorado que o elegeu e tornar-se cada vez mais autocrático. Para os votantes, a campanha ficará mais pobre porque em vez de ter a discussão de perspectivas políticas diferentes para o município, assistirá ao confronto  de personalidades, todos tentados a oferecer soluções populistas e demagógicas.
Uma das conclusões que se pode retirar das últimas eleições é que se esgotou a capacidade de manipular o eleitorado com dádivas de botes e arcas frigoríficas, bolsas de estudo, verguinhas e cestas básicas. Provavelmente porque agora é maior o número dos que ficam descontentes com o processo do que os que são beneficiados. Razão também para abandonar essas práticas ao nível local onde têm um poder condicionante do eleitorado superior ao que se verifica à escala nacional. A evidência demonstra que práticas do género tendem a manter-se e a tornar-se mais perniciosas se a gestão camarária for autocrática , o que não augura nada de bom se a política local ficar cada vez mais dependente de personalidades que, se eleitas, tendem a colocar-se acima do partido e a escapar ao controlo dos apoiantes.  
As câmaras para além de prestarem os serviços básicos aos munícipes devem ser os facilitadores e promotores da iniciativa individual e da actividade privada no seu território. O desenvolvimento do seu município vai depender em última análise da capacidade local de produzir riqueza e não das transferências do governo. Saber como jogar os vários ingredientes endógenos para atrair investimentos, incentivar a criatividade e a imaginação das gentes, atrair visitantes e turistas, juntar-se à cadeia nacional de produção e melhorar o capital humano deve ser objecto dos diferentes projectos políticos que deverão ser apresentados para as eleições autárquicas.
O desenvolvimento das ilhas foi uma das questões dominantes das eleições legislativas de 20 de Março. A estagnação económica dos últimos anos agravou consideravelmente a situação nas ilhas e provocou migrações internas complicadas que criaram outros problemas. A reorientação da política do Estado no sentido de maior descentralização, de maior dinâmica económica de base empresarial e mais proactiva no aproveitamento das vantagens do país é fundamental para se inverter a actual situação de crescimento anémico e desemprego excessivo. Precisa porém de ser complementada com acções enérgicas a nível municipal e das ilhas que promovam uma nova atitude como cidadão, como trabalhador e como prestador de serviço, que diminua a dependência das pessoas e que incentive a excelência em tudo o que se faz. Espera-se que o processo político que vai desembocar nas autárquicas seja profícuo em revelar os diversos caminhos para se atingir esses objectivos.
                  Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 31 de Maio de 2016

quarta-feira, maio 25, 2016

Mudar de paradigma

No dia da celebração de mais um Dia da África a atenção volta-se para os extraordinários desafios com que ainda o continente se confronta no seu processo de desenvolvimento. Num relatório do Banco Africano de Desenvolvimento publicado no dia 24 a previsão de crescimento económico para 2016 é 3,7% do PIB dos 52 países do continente e de 4,6 % em 2017 se houver recuperação da economia mundial e um novo impulso no mercado das “commodities”. Considerando o estádio em que se encontra a economia africana, 3,7% é uma taxa de crescimento demasiado baixa para responder às necessidades de criação de postos de trabalho e para satisfazer as expectativas futuras de mais rendimento para as populações. Aparentemente até agora a África não conseguiu acertar com um modelo de crescimento capaz de a colocar no caminho do desenvolvimento acelerado que durante décadas seguidas foi experimentado por vários países asiáticos entre os quais Singapura, Coreia do Sul, Taiwan, Malásia e China.
Para Kingsley Moghalu, um economista nigeriano a escrever no Financial Times da semana passada, o problema com a África é essencialmente de modelo económico. Segundo ele, teima-se em seguir um modelo que mais se adapta a economias mais maduras. Pretende-se que a África salte a etapa de industrialização e organize-se como uma economia pós-industrial. A realidade como ele próprio reconhece é que o PIB dos 52 países africanos nem chega ao PIB do Brasil. Também reconhece que dificilmente se pode dar a volta à situação porque a economia africana não está integrada nas cadeias globais de produção. O grosso do capital estrangeiro que entra vai para as indústrias extractivas e o continente, sem mecanismos de protecção dos seus mercados, continua a ser inundado com produtos industriais baratos vindos de países como a China.
Do relatório do BAD  African Economic Outlook 2016 diz-se que até 2050 mais de dois terços da população africana estará nas  cidades. Podem visualizar-se facilmente os custos da rápida urbanização em termos designadamente de desordenamento urbano e da falta de infraestruturas (estradas, energia e saneamento, comunicações). Mais difícil será vislumbrar eventuais ganhos que poderiam vir do aumento de produtividade no campo, ou em se ter população já urbanizada pronta a sustentar um ritmo rápido de industrialização ou então a integrar uma economia de serviço com padrões elevados. A maior parte dos países não está preparada para isso e as razões prendem-se com as políticas desadequadas de muitos governos. Seguem, segundo Kinsley Madugo, certas ortodoxias que não atribuem ao Estado o papel importante que pode ter em modelar uma economia de mercado, não vêem a importância central da industrialização em retirar da pobreza centenas de milhões de pessoas e não querem fazer uso de mecanismos permitidos no quadro da OMC para proteger por algum tempo indústrias nacionais nascentes. E cita o exemplo da Etiópia e do Ruanda que estão a industrializar-se rapidamente para demonstrar que é possível fazer diferente.
Ter uma visão de desenvolvimento, um modelo de crescimento claro e inteligível para todos é fundamental para qualquer país. Não se pode ficar na ambiguidade, ao sabor de modismos alimentados por vezes por organizações internacionais ou apanhados por uma lógica simples de utilização de fluxos externos no quadro da ajuda externa. Ir por aí é seguir um caminho que mais cedo ou mais tarde leva ao crescimento anémico e à incapacidade de acrescentar novos postos de trabalho e de elevar grande parte da população de forma permanente para um nível acima da pobreza. Precisamente o que está a acontecer a Cabo Verde neste momento.
Impõe-se então mudar o paradigma, adoptar um outro modelo e desenvolver outras políticas. Mas para se ser bem-sucedido é fundamental que a nação conheça o modelo e se engaje na sua implementação. A discussão do programa do Governo no Parlamento no início desta semana deve ser visto como um dos muitos momentos que o Primeiro-ministro e os seus ministros terão para explicar o novo modelo. E porque para a Oposição parece que ainda não está claro que as opções são tão diferentes das que propôs e implementou quando era governo, é fundamental que o novo modelo seja assumido com vigor mas com clareza e com crítica profunda ao modelo anterior que conduziu o país à estagnação. Só assim se poderá vencer as resistências à mudança. Só assim se poderá mobilizar forças na sociedade para se adoptar um outro modelo e trilhar um outro caminho de maior dinâmica com resultados transversais na economia e na sociedade.
A África não pode continuar a ser o continente que segundo Kingsley Moghalu detém mais de 75% das matérias-primas e apenas participa em 2% do comércio mundial e tem 1% da capacidade de manufactura. É verdade que há ganhadores na forma como a sua economia  tem sido estruturada ao longo dos anos, mas certamente que não é a generalidade da sua população nem os muitos jovens sem perspectivas de emprego e que sonham com a emigração para a Europa. Há que mudar o paradigma, procurar um outro modelo e fazer chegar o desenvolvimento a todos, para o bem da África e de toda a humanidade. A prosperidade de uns pode e deve beneficiar todos os outros. 

                Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 25 de Maio de 2016