sábado, janeiro 14, 2017

Mário Soares e a Independência

No meio da consternação geral pela morte de Mário Soares surgiu mais uma vez a polémica à volta da independência de Cabo Verde. Mário Soares, em 2010, numa conferência na UNI-Mindelo e anteriormente, em 1993, numa conversa com Aristides Pereira teria dito o seguinte: “Eu sempre achei que Cabo Verde não deveria ter sido independente” e teria “muito a ganhar” caso tivesse mantido a ligação a Portugal”. Imediatamente surgiram dos quadrantes políticos do costume vozes (Pedro Pires, José Maria Neves, Corsino Tolentino) a desvalorizar essa opinião. O argumento de base é que Mário Soares só fez essa afirmação porque não acreditava então na viabilidade de Cabo Verde como país independente. Acrescentam que depois ele veio a reconhecer o erro e a constatar que realmente a independência valeu a pena. Para qualquer observador atento da vida política nacional não espanta que a matéria tenha vinda à tona neste momento. Sempre que há oportunidade, faz-se a pergunta retórica se valeu ou não a pena a independência de Cabo Verde. Acontece todos os anos pelo 5 de Julho e a resposta é um inequívoco sim para a auto-satisfação  dos dirigentes do PAIGC que, em 1975, tomaram o poder e nele se mantiveram ditatorialmente durante 15 anos. Ultimamente têm-se procurado acrescentar à “glória dos libertadores” a imagem de visionários com referências a dúvidas então colocadas por personalidades e entidades estrangeiras em relação à viabilidade de uma vida independente das ilhas como aliás sempre se pôs em relação às Maurícias e à generalidade dos pequenos estados insulares. Para todos os outros que não os antigos “melhores filhos do povo” é evidente que discutir hoje se Cabo Verde devia ser ou não independente é uma questão ociosa. A independência é um pressuposto base da República e uma realidade incontornável. Mas manter polarizada a opinião sobre a independência ajuda a desviar a atenção para o facto que só a 13 de Janeiro de 1991 o povo cabo-verdiano exerceu realmente a sua auto-determinação, um direito que lhe tinha sido subtraído no processo de descolonização. E é essa lacuna prenhe de consequências graves que Mário Soares, o grande político da democracia portuguesa e amante confesso da liberdade, não podia deixar de lamentar quando as circunstâncias históricas forçaram a entrega das colónias aos movimentos de libertação cujos desígnios totalitários eram mais do que evidentes. Certamente que não tinha qualquer ilusão sobre a ditadura e o risco de guerra civil que logo à partida se anunciavam.  Por isso, não é a sua opinião pessoal quanto a Cabo Verde ficar, ou não, ligado a Portugal que é a questão de fundo, mas sim o facto de se ter efectivamente impedido o povo de exercer o seu direito à auto-determinação como estabelecido na Carta das Nações Unidas e nas  Declarações sobre a Descolonização de 1960 e 1966: “Todos os povos têm o direito de livremente determinar sem interferência externa o seu estatuto político e de realizar o seu desenvolvimento económico, social e cultural”.  Segundo esses mesmos documentos,  esse estatuto político pode ser independência, livre associação com outros Estados ou a emergência de outros estatutos políticos desde que de forma livre tenham sido escolhidos pelo povo. Como se sabe, os acontecimentos no país a partir de Dezembro de 1974 com a tomada da Rádio Barlavento e a prisão no campo do Tarrafal dos adversários do PAIGC impediram que esse “direito de escolha” fosse exercido. A proclamação da independência que veio a acontecer a 5 de Julho de 1975 constituiu uma forma da chamada auto-determinação externa, tomada pelo PAIGC em nome do povo e com a conivência das autoridades portuguesas, que deu a Cabo Verde o estatuto político de estado independente. Só no 13 de Janeiro de 1991 é que finalmente a auto-determinação interna pôde ser exercida, permitindo pela primeira vez ao povo de Cabo Verde eleger de forma livre e plural os seus representantes e governantes e de seguida criar o ambiente institucional necessário para a defesa dos direitos humanos e para a salvaguarda e consolidação da democracia.  Quinze anos tinham-se passado e compreende-se que Mário Soares, que tanto lutou para que o 25 de Abril não degenerasse numa experiência totalitária – a Cuba da Europa nas palavras de Henry Kissinger –   muitos anos depois continuasse a lamentar que a onda de liberdade e da democracia não tivesse chegado aos povos das ex-colónias no mesmo tempo que chegou ao povo português.  O distanciamento de Mário Soares em relação a Cabo Verde que, segundo a Inforpress, Corsino Tolentino atribui  à “nossa [da clique do PAIGC/PAICV] atitude de desafiarmos tudo e todos em defesa das nossas responsabilidades patrióticas”  talvez viesse realmente do incómodo de ver como através de uma pura estratégia de poder da clique e não de qualquer responsabilidade patriótica se mantinha um país sob regime ditatorial durante quinze anos. Só pode ser isso porque afinal Mário Soares era, como o próprio Corsino Tolentino reconhece, “um político da liberdade universal”.

 Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 789 de 11 de Janeiro de 2016.

sexta-feira, janeiro 13, 2017

13 de Janeiro, 26 anos depois

Na próxima sexta-feira comemora-se os 26 anos do 13 de Janeiro e, pela primeira vez, o Dia da Liberdade e Democracia será celebrado com uma sessão solene da Assembleia Nacional. Finalmente depois de várias tentativas em fazer o parlamento assumir o feriado nacional, criado por lei 16 anos atrás, vai-se conseguir que todos os órgãos de soberania se reúnam para assinalar o dia que marcou o início da caminhada para a construção da II República.
No dia 13 de Janeiro de 1991 teve lugar um episódio único na história de Cabo Verde e na vida de todas as gerações de caboverdianos. Todos dirigiram-se às urnas e livremente puderam escolher de entre os candidatos apresentados nas listas de partidos diferentes os seus representantes. Com a escolha dos representantes mostraram preferência por um programa de governação e deram indicação de quem deveria formar governo para conduzir o país nos cinco anos seguintes. Esse acto simples de votar fez de todos eles pela primeira vez cidadãos plenos na sua própria terra.
Anteriormente já se tinha votado em Cabo Verde. Votou-se na I República Portuguesa e também no Estado Novo. No processo de descolonização acordado com Portugal votou-se a 30 de Junho de 1975 para criar uma assembleia que além de redigir uma Constituição devia proclamar a Independência Nacional. Depois em 1980 e em 1985 voltou-se às urnas para eleger candidatos da lista do partido único. Em nenhum dos casos descritos o ambiente envolvente fora de liberdade ou de pluralismo. Mas depois do 13 de Janeiro todas as outras votações - 19 de Dezembro de 1995, a 14 de Janeiro de 2001, 5 de Fevereiro de 2006, 6 de Fevereiro de 2011 e 20 de Março 2016 – foram livres e plurais. O 13 de Janeiro marca, de facto, uma nova era, distinta de qualquer outra vivida no passado. Passou-se para uma era de real e completa participação política dos cidadãos, de governo pelo consentimento, de alternância política e de subordinação do Estado ao primado da Lei.
Como bem se pode imaginar, o 13 de Janeiro não caiu do céu. Depois de 15 anos de partido único o regime debatia-se com uma economia em fase de estagnação e sobressaltava-se com as movimentações de fora que culminaram na queda do Muro de Berlim e que pré-anunciavam a derrocada em cadeia de partidos e regimes de inspiração leninista. A direcção do regime ensaiou uma manobra de antecipação com a chamada abertura política de 19 de Fevereiro de 1990. A partir daí a sociedade, já desperta para a actividade política, entrou num crescendo de entusiasmo que nos meses finais do ano lançou um novo partido para uma vitória estrondosa nas eleições marcada para o 13 de Janeiro.
Para que o dia das eleições acontecesse todos os participantes tiveram que aceitar as regras do jogo e conviver com as tensões que o embate político plural sempre provoca. Foi uma caminhada sublime porque nunca dantes percorrida e que também na comemoração do 13 de Janeiro merece ser relembrada e tomada como exemplo. Demostra que é possível, na diversidade de posição e fazendo valer os interesses das partes, chegar a compromissos, negociar e contribuir para o que, num determinado momento, se afigura ser o melhor para o país. Deve-se sempre poder recorrer à memória desse momentos para não se cair na intransigência estéril ou sucumbir à tentação e à arrogância de sozinho já ter a solução perfeita para tudo.
26 anos depois o entusiasmo que acompanhava a “Terceira Vaga” da democracia está a ceder lugar ao cepticismo e ao cinismo. Mais facilmente se tende a acreditar em quem suscita paixões, acusa outros dos males nacionais e pretende oferecer soluções simples para questões complexas do que em quem aposta na livre troca de ideias, vê a importância da política e dos partidos políticos na manutenção do ambiente institucional actual e na construção do futuro e acredita na importância de regras aceites pelas partes como base essencial de confiança e de solidez das instituições. Por isso é que restaurar o parlamento para o centro da vida política do país é essencial para o futuro da democracia. É ali que com calma, lucidez e perseverança deve-se procurar valer todas as posições mas sempre atentos às regras de funcionamento que são a base para a renovação da confiança de todos no trabalho parlamentar.
Levar o parlamento a celebrar com a devida pompa e solenidade o 13 de Janeiro pode ser um passo essencial para se inaugurar uma nova forma de fazer política em Cabo Verde. A diversidade de posições e o embate de pontos de vista que proporciona são os ingredientes necessários para se evitar que se materialize uma deriva em direcção ao populismo e à demagogia - as duas ameaças que a democracia enfrenta nos dias de hoje. Mesmo sendo recente, a democracia pode encontrar em momentos da sua concretização prática a energia e a certeza de que tanto precisa para continuar a consolidar-se e a oferecer ao caboverdiano as possibilidades da cidadania plena e as garantias fundamentais para o exercício da liberdade. Para os políticos, a homenagem que agora se faz a Mário Soares deve-lhes servir de lembrança que apesar do aparente cinismo e hipocrisia que parece dominar as sociedades modernas certos elementos de referência mantêm-se de pé. E com eles que é que se avalia quem na memória colectiva ficará para a posteridade.
Texto originalmente publicado na edição impressa do  nº 789 de 11 de Janeiro de 2016.

quarta-feira, janeiro 11, 2017

MPD e PAICV em reuniões magnas

Os dois grandes partidos reúnem os seus órgãos máximos, respectivamente Convenção e Congresso, nos dois primeiros meses de 2017. No dia 8 de Janeiro os militantes do MpD votam em eleições directas o presidente e os delegados à Convenção que se vai realizar nos dias 3 e 4 de Fevereiro. O mesmo fará o PAICV a 29 de Janeiro estando o Congresso marcado para 19 de Fevereiro. Tudo indica que nos dois partidos haverá um único candidato a líder. No caso do MpD compreende-se que seja assim, visto que ganhou as eleições e o seu candidato é actualmente primeiro-ministro. No caso do PAICV a situação é mais complicada não só por causa da derrota nas eleições como também pelo facto de a presidente do partido não ter sido capaz de recuperar a coesão interna necessária nem para o partido ter melhor prestação nas eleições autárquicas nem tão pouco para apoiar um candidato presidencial próprio. Pelas mesmas razões no Parlamento a prestação do PAICV nos últimos meses como oposição tem sido abaixo do desejável na perspectiva de uma efectiva actuação da oposição no sistema político. Piorou a situação a reacção da líder que em vez de se demitir pôs inexplicavelmente o cargo à disposição. A farsa entretanto serviu para mobilizar os apoiantes e os lançar contra os que contestam todo o processo actual. E é nesta situação que vai ser a única candidata. É evidente que nestas circunstâncias dificilmente vai conseguir reconciliar as partes, recuperar a coesão do partido e conter o processo em curso de desinstitucionalização provocado pelos efeitos do populismo no seio da organização. Uma desinstitucionalização também a verificar-se no seio do MpD como testemunham estas eleições para a XI Convenção do partido. Se, de facto, é esperado que Ulisses Correia e Silva seja o único candidato a líder do partido já é não é normal que os delegados para a reunião desse órgão máximo do partido sejam somente aqueles que, tirando os delegados “naturais”, foram por ele pré-seleccionados. As eleições acontecem no mesmo dia, mas são distintas: uma feita com base no sistema maioritário e a outra seguindo o sistema proporcional de Hondt. Realmente, não se pode dizer que o universo dos militantes do partido estejam realmente representados no seu órgão deliberativo máximo com uma lista única de fiéis do presidente artificialmente alinhados  - a cada homem segue-se uma mulher e com 30% de jovens à mistura. Para além de artificial e de condicionado, onde fica o pluralismo e a diversidade que deve poder conservar o legado do partido ao mesmo tempo que lhe permite o embate de pontos de vista diferentes como forma de se dinamizar, de crescer no conhecimento do país e dos seus problemas e de explorar formas inovadoras para melhor implementar o seu projecto político. E isso sem falar que não é por se tratar de uma única candidatura que se deve assumir logo que uma parte já é o todo. Deve-se ter a preocupação em autonomizar a candidatura com uma estrutura própria, em revelar os elementos que a compõem, assim como o seu orçamento e as suas fontes de financiamento de forma a serem vistas como   perfeitamente distintas dos recursos do partido. A preservação do sistema de partido com democraticidade interna, pluralismo e diversidade é fundamental para a democracia representativa que é a única com exclusão de quaisquer outras que provadamente ao longo dos tempos garantiu a liberdade, o pluralismo e o primado da Lei. Nestes tempos em que o populismo nas suas múltiplas facetas de nacionalismo, moralismo, anti-elitismo e xenofobia atira-se contra as instituições democráticas e particularmente procura esventrar os partidos políticos é preciso estar alerta contra as promessas de mais democracia em forma de eleições directas, plebiscitos e sondagens de opinião. Mais não fazem que esconder projectos autocráticos com muita demagogia à mistura que no fim acabam por deixar os partidos exangues e as democracias enfraquecidas e prontas a ser dominadas por um “chefe”.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 788 de 04 de Janeiro de 2016.

Frescomar

Nos últimos dias do ano findo o país foi sobressaltado com o anúncio do despedimento de uma assentada de 301 trabalhadores da Frescomar, a esmagadora maioria mulheres. Na carta dirigida ao sindicato, a direcção argumentou que os produtos da empresa que gozavam da derrogação dos direitos de origem passariam a ficar mais caros em 25% a partir de 31 de Dezembro. A esse preço deixariam de ser competitivos nos mercados europeus e por isso a empresa viu-se forçada a interromper por tempo indeterminado a linha de produção desses produtos. Desde de 2008 Cabo Verde tem gozado de sucessivas derrogações dos direitos de origem sendo a última datada de Janeiro de 2015 e com prazo de dois anos. Com essas derrogações a Frescomar poderia importar cavala e  melvas de outros países e mesmo assim poder colocar na Europa as suas conservas como se o peixe fosse originário de Cabo Verde. A facilidade que é dada a Cabo Verde enquadra-se dentro do que se chama normalmente de “aid for trade” , ou seja, em vez de ajudar com  doações, abre-se o mercado para entrada em termos favoráveis dos produtos manufacturados nesse país com matéria prima local. Enquanto isso não acontece, vai-se permitindo que importe parte da matéria-prima de outros países. Como é lógico, a derrogação dos direitos de origem não pode ser permanente. O país para manter as exportações deve orientar as suas políticas para pelo menos atingir dois objectivos: ou consegue fornecer matéria-prima nacional desenvolvendo capacidade própria para isso, no caso, capacidade de captura de peixe, com ganhos para todos, ou torna as suas exportações competitivas com diminuição de custos de factores e aumento de produtividade. O problema com a Frescomar é que não se fez o suficiente nem num sentido nem no outro. As autoridades limitaram-se nas visitas múltiplas que faziam às fábricas de conserva a regozijar-se com o número de postos de trabalho criados e com os anúncios das derrogações sempre que os obtinham da União Europeia. A oposição também visitava e era muitas vezes porta-voz das insatisfações das direcções da empresa. Quando o governo mudou, o padrão manteve-se mas os papéis inverteram-se passando a nova oposição a ser os portadores das reivindicações. Era óbvio que a partir de certo momento houvesse aproveitamento daquilo que a Frescomar começou a representar para todos enquanto exportadora e empregadora de quase mil trabalhadores. Neste processo não deve ser indiferente a quem o governo anterior cedeu o controlo das três instalações de frio, duas em S. Vicente e uma na ilha do Sal. Grupos privados têm os seus interesses, desenvolvem as suas estratégias para os realizar e permanecem activos num sector enquanto têm retornos nos seus investimentos. Se lhes for permitido, em cima dos lucros vão acumular rendas resultantes das facilidades conseguidas de uma forma ou doutra. O governo é que deve ter também a sua estratégia e não se limitar a uma postura passiva ou a pôr-se na posição de retirar ganhos políticos instantâneos. O crescimento do sector privado nacional deve ser um dos objectivos a atingir e isso deve ser levado em devida conta a todo o momento designadamente no que respeita à disputa à volta da fábrica de farinha de peixe em S.Vicente.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 788 de 04 de Janeiro de 2017

terça-feira, janeiro 10, 2017

Promulgação do OE

O Presidente da República promulgou o Orçamento do Estado assim como os vários outros diplomas que resultaram das reuniões plenárias da Assembleia Nacional de Novembro e Dezembro do ano findo. Seria o esperado por todos não fosse a controvérsia que se instalou quando todos os sujeitos parlamentares e o país se aperceberam que o Parlamento estava a trabalhar com uma Ordem do Dia que não tinha sido aprovada e com o Presidente da Assembleia Nacional em situação irregular. Com o Presidente da República ausente no exterior, o PAN exercia o cargo de presidente da república interino e como tal encontrava-se suspenso das suas funções como deputado e portanto impedido de participar na plenária da Assembleia Nacional e ainda mais de dirigir os trabalhos da mesma. A questão que se coloca é se são legítimos os actos do Parlamento a funcionar desta forma irregular. O regimento da AN é taxativo a estabelecer que “o período da ordem do dia tem por objecto o exercício das competências constitucionais da Assembleia Nacional”. Sem ter a ordem do dia aprovada não se vê como o Parlamento pode exercer as suas competências e aprovar leis. Esta e outras questões resultantes das irregularidades constatadas deviam ser imediatamente confrontadas pelos sujeitos parlamentares. Viu-se depois que acordos do género “fazer uma resolução ad hoc para ultrapassar requisitos formais não cumpridos” como os da marcação da fixação da ordem do dia, considerado pelos constitucionalistas como um “um problema político de maior importância”, não podiam levar a lado nenhum. O resultado foi que a bola foi passada ao Presidente da República. Segundo o constitucionalista Jorge Miranda o “PR sempre pode impugnar a constitucionalidade de diplomas, por preterição de requisitos formais” mas parece que o Presidente Jorge Carlos Fonseca não considerou que havia matéria para isso. Na sua mensagem de Ano Novo à Nação justificou a promulgação da Lei do Orçamento do Estado dizendo que  “nenhum problema de constitucionalidade se vislumbra no diploma”. Refere-se ainda na sua justificação a “interesses” e à necessidade de concentrar no “essencial” que seria dotar o Governo de instrumentos indispensáveis para realizar os projectos sufragados pelo povo. Mas, se bem entendemos o  sistema político, também os deputados que concordaram ou discordaram com os procedimentos na Assembleia Nacional foram eleitos pelo povo para, no contraditório, enquanto representantes do conjunto dos cidadãos no seu pluralismo e na diversidade de interesses e diferentes programas partidários, realizar o bem comum e dotar o governo dos instrumentos necessários. A vida parlamentar com todas as suas regras e procedimentos é para isso e não simplesmente para a “afirmação e dinâmica da vida interna das organizações e grupos políticos”. A democracia tem os seus mecanismos de equilíbrio e o direito das minorias em disputar as posições da maioria não deve ser interpretado como desvio do “essencial”. Já que foi solicitada a fiscalização sucessiva da constitucionalidade é bom que haja uma posição do Tribunal Constitucional o mais breve possível. Como estabelece a Constituição quanto aos direitos do cidadão contribuinte é de suprema importância que não haja qualquer dúvida sobre a Lei do Orçamento, em particular, sobre a forma como foram criados os impostos e os termos da sua liquidação e cobrança.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 788 de 04 de Janeiro de 2016.

sexta-feira, dezembro 30, 2016

O ano da ascensão do populismo

Os acontecimentos de 2016 já o qualificam como candidato a ano charneira. Para muitos observadores, 2016 poderá vir a ser considerado pela história da mesma forma que é hoje visto o ano de 1945 do fim da II Guerra Mundial, o ano 1989 da Queda do Muro de Berlim, o ano de 2001 de Ataque às Torres Gémeas de Nova Iorque e do ano de 2008 da implosão do banco Lehman Brothers. Foram todos grandes momentos que redefiniram o mundo nos domínios político, geoestratégicos e económico com grande impacto a nível social, cultural e até civilizacional. Também 2016 promete ser o ano que vai dar início a uma nova era em que muito do que já se dava como garantido cede para novas formas de relacionamento entre os estados, novas prioridades no comércio entre as nações e um novo entendimento da democracia e de como se distingue do autoritarismo.
A democracia representativa é sem dúvida uma das maiores vítimas dos acontecimentos do Ano 2016. É só ver a deriva iliberal por que passam democracias recentes como a Hungria e a Polónia e o crescimento do movimento extremistas de direita e de esquerda com forte pendor populista em países como a Holanda, França e a Suécia. Ou então constatar como o populismo influenciou decisivamente os referendos no Reino Unido (Brexit) e na Itália ou contribuiu para a Espanha ficar mais de um ano sem governo. A cereja em cima do bolo da nova onda populista foi, sem dúvida, a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos da América.
Paixões diversas, ressentimentos e desconfiança em relação às “elites” e também em relação às instituições, a começar pelos partidos políticos, passaram a ser o que realmente move as pessoas e pesa no voto de muitos. Em vez de ponderar as razões nas políticas alternativas apresentadas pelos diferentes candidatos e partidos escolhe-se outro caminho onde a emoção, o medo e a falta de confiança no futuro galvanizam as pessoas à volta do chefe e das suas soluções. Hoje ninguém esconde que graças ao uso massivo das redes sociais para informação e comunicação a nível planetário vive-se num mundo da pós-verdade ou do pós- facto no qual a instrumentalização de notícias pode ser orquestrada até como política de Estado, como se suspeita foi o caso nas últimas eleições americanas. 
Em Cabo Verde também 2016 foi um ano especial. Realizaram-se três eleições entre Março e Outubro e com as vitórias do MpD nas legislativas e nas autárquicas terminaram os 15 anos de governo do PAICV e alargou-se a maioria autárquica do MpD para um nível nunca antes atingido. Apesar do protagonismo político nas eleições ter sido sempre apresentado com vestes partidárias não passaram despercebidos os sinais do populismo a mover-se energeticamente dentro dos partidos. Não é de estranhar. Também em Cabo Verde, por razões diversas, há queixas quanto à representação política e ao parlamento e há fortes críticas dirigidas aos políticos e aos partidos que são similares às feitas noutras democracias. Se se juntar a isso o desapontamento das pessoas pelos anos de estagnação económica depois de se lhes ter prometido uma agenda de transformação tem-se os ingredientes para o populismo se revelar nos discursos anti-política e anti-partido, no culto de personalidade dos líderes e nas soluções simples para problemas e situações complexas.
 Os efeitos do populismo continuam a fazer-se sentir mais de nove meses após as eleições. A desinstitucionalização que provocou no seio dos partidos com o acicatar das lutas entre as “bases” e as “elites ou barões” e com estímulo a ambições descontroladas não ficou por aí. Acabou por afectar as instituições democráticas do país. Veja-se o estado actual do parlamento, a eficácia perdida num governo limitado a doze membros e a divisão interna no PAICV que ameaça ainda por muito tempo limitar a actuação da oposição. Veja-se ainda o fervilhar na comunicação social de reivindicações, protestos e ameaças de greve. Não se viu semelhante durante os 15 anos do governo anterior. Talvez porque depois dos anos de ilusionismo caiu-se na tentação de pensar que as soluções seriam fáceis e rápidas quando justamente o que o país precisa é de um esforço colectivo e paciente para ultrapassar os muitos e complexos obstáculos que se colocam ao seu desenvolvimento.
Nos dois primeiros meses de 2017 os dois maiores partidos, MpD e PAICV, vão reunir os respectivos órgãos máximos, convenção e congresso, e eleger os seus líderes. Da forma como organizarem o processo eleitoral, em termos de representatividade dos delegados e de consagração do pluralismo interno, irá depender se continuará por mais tempo a tentação populista e a sua acção nociva. Uma acção mais evidente nos partidos de oposição porque aí sem o “cimento” do poder nota-se claramente o mal-estar nas hostes. Mas mesmo quando não é tão visível nada lhe impede de ser nefasta e de extravasar o partido e enfraquecer a democracia. In extremis vê-se na Venezuela o que o populismo pode fazer às instituições democráticas.
A verdade é que a democracia não existe sem partidos, mas os partidos têm que ser democráticos com liberdade e pluralismo assim como exige a própria Constituição. 2016 provou quão perigoso é o populismo. Para o bem da democracia não há que dar-lhe qualquer trégua em 2017.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 787 de 28 de Dezembro de 2016.

sexta-feira, dezembro 23, 2016

Modismos custosos

Discriminação positiva nos últimos tempos tornou-se a expressão preferida dos políticos e de grupos de interesses para justificar o encaminhamento de fundos públicos para as suas causas de momento. Pede-se ou promete-se discriminação positiva para ilhas, para municípios, para o turismo que não é “sol e mar” e até para o carnaval. Bem podia-se estar a falar de investimentos que se devia estar a fazer em sectores, em actividades ou certos pontos do território nacional na perspectiva de, entre outros objectivos, melhorar a produtividade e competitividade do país. Ou então da solidariedade que deve existir entre o Estado e o município e entre municípios de uma mesma região para colocar os mais pobres ou com maiores fragilidades num outro patamar na luta pelo desenvolvimento. Mas prefere-se falar de discriminação positiva porque tem provavelmente uma outra ressonância.
Por isso mesmo não vai tardar muito em que toda a gente desate a reivindicá-la para os seus projectos ou a torne numa exigência-chave da acção política. Já deu os primeiros sinais nas discussões do Orçamento do Estado e na determinação dos critérios de distribuição das receitas do fundo do ambiente e da taxa ecológica. Muitos não ficaram contentes com os resultados e abriu-se caminho para ressentimentos.
Compreende-se o rápido agarrar da expressão “discriminação positiva” se se tiver em conta que vai ao encontro de uma noção prevalecente na sociedade do igualitarismo de  nivelar por baixo e também de um modelo de desenvolvimento que põe a redistribuição à frente da produção. Se juntar-se a isso a tendência em recorrer à vitimização para reclamar direitos, justificar reivindicações e ganhar influência em embates políticos e eleitorais o quadro fica completo. O grande problema é que, seguindo por aí, o mais provável é que não se consiga diminuir as desigualdades, mas entretanto aumente o fosso entre as várias comunidades, populações ou ilhas. É tanta a preocupação em procurar recursos em forma de ajuda que não sobra muito tempo e motivação para implementar uma estratégia própria de crescimento e emprego suportada numa estrutura produtiva endógena.
A história económica de vários países demonstra que viver de rendas, sejam elas derivadas de vendas de recursos naturais como o petróleo ou da ajuda externa posta à disposição, não resolve os problemas das desigualdades ou das assimetrias regionais. A prazo acaba mesmo por agravá-las porque, à medida que se tornam mais escassos, tendem a concentrar-se numa elite política e administrativa à volta do Estado e na capital do país enquanto cinturões de pobreza se instalam nas periferias das cidades e o mundo rural progressivamente colapsa. Os ganhos conseguidos inicialmente não se mostram sustentáveis porque os recursos ou dádivas utilizados numa lógica redistributiva dificilmente são incorporados numa estrutura produtiva capaz de gerar retornos permanentes. Por outro lado, ao criar relações de dependência e de rivalidade entre pessoas e comunidades no acesso a recursos acaba-se por diminuir consideravelmente a confiança e espírito de cooperação essenciais nas sociedades produtivas.
A enfase na redistribuição tende a ver o país numa perspectiva estática. Quer-se resolver os problemas das pessoas lá onde se encontram, melhorando mas reproduzindo a vida económica existente. O empobrecimento progressivo das zonas rurais e a perda de população de ilhas como Santo Antão, S. Nicolau, Fogo e Brava e também do interior da ilha de Santiago demonstram que é uma tarefa raramente bem-sucedida não obstante os muitos milhões investidos em infraestruturas e em apoio a iniciativas que dificilmente sobrevivem ao fim dos projectos que lhes deram o impulso inicial. Com o argumento da discriminação positiva está-se a contribuir para aprofundar a ideia de que a situação actual é fruto de atitudes discriminatórias no passado que agora têm que ser combatidas com acções afirmativas. Para além de dar azo à procura de razões para a discriminação, algo complicado numa população homogénea em termos étnico-linguísticos, religiosos e culturais mas espalhada por nove ilhas diferentes, desincentiva ainda a busca de uma nova economia propiciadora de mais rendimentos e maior qualidade de vida. Ficando por manobras tácticas para ganhar localmente mais uns tostões, perde-se visão estratégica de como fazer o país crescer e prosperar.
Cabo Verde, um arquipélago de nove ilhas com potencial e vocação diferentes, não pode dar-se ao luxo de tratar igual o que é diferente. Já tem custos enormes em reproduzir as mesmas infraestruturas em todas as ilhas. Não tem que os aumentar obrigando-se a uma rigidez de tratamento no investimento em nome da discriminação positiva que limita a capacidade do país no seu todo de ganhar com as vantagens oferecidas por uma ou outra ilha em agarrar oportunidades de negócios. Como a história bem demonstra, a prosperidade sustentada do país depende da relação dinâmica e vantajosa com o mundo. Nove ilhas são nove possíveis interfaces de relação, mas nem sempre todas vão em simultâneo funcionar como motor principal.
Ao governo compete arbitrar sobre os recursos existentes e manter claras as prioridades de modo a que o país cresça e enriqueça e ofereça emprego à sua gente onde, dentro do território nacional, há que concentrar mão-de-obra para que as oportunidades e a maximização dos investimentos sejam os mais profícuos para todos. Não se deve deixar  enredar em malhas de exigências e ressentimentos que depois tolham os movimentos com prejuízos globais para o país. Muito menos deve activamente criá-las, abrindo a corrida  para a busca de exemplos de discriminação. Isso iria apenas aumentar a rivalidade entre as ilhas e regiões, produzir reivindicações irrazoáveis e contribuir para manter as pessoas na postura de dependência e frustração que já mostrou ser prejudicial ao país.

Texto originalmente publicado na edição impressa do  nº 786 de 21 de Dezembro de 2016.

sexta-feira, dezembro 16, 2016

Atitude ou método?

Volta e meia a questão linguística cria controvérsia em Cabo Verde. Às vezes é por causa do crioulo que se quer promover como língua oficial e/ou língua de ensino. Outras vezes é porque se ficou com a impressão que o português está a ser diminuído ou a perder importância. As reacções acaloradas aos posicionamentos nestas matérias não deixam de provocar alguma perplexidade. De facto, devia ser pacífico que tudo se fizesse para promover a língua portuguesa. Afinal ela é a língua oficial do país e logicamente o exercício pleno da cidadania por todos os caboverdianos exige o conhecimento suficiente da língua tanto escrito como falado. Quanto ao crioulo ele é indisputavelmente a língua materna dos caboverdianos. Supostas ameaças à sua existência apenas vislumbradas por aqueles que ainda se revêem em lutas identitárias e em actos de “resistência cultural” não deviam ser objecto de ansiedade.
A realidade nua e crua do sistema de ensino como diz a Ministra de Educação é que 44% dos alunos que iniciam o ensino básico não terminam o liceu. E uma das razões apontadas pela ministra são as insuficiências a português. Em resposta a isso propõe-se mudar a metodologia do ensino no sentido que mais se ajuste ao processo de aprendizagem de uma língua segunda ou de uma língua estrangeira. A última controvérsia surgiu aparentemente do facto de se ter aventado a hipótese de ensinar o português como língua estrangeira. Tomou-se isso como uma forma de diminuição do português e concomitantemente como mais um expediente para a promoção do crioulo no ensino. Mais uma vez a questão da eficácia no ensino da língua e de melhores resultados em todas as outras disciplinas ficou em segundo plano ofuscada por essas questiúnculas recorrentes. 
A escola pública obrigatória é uma criação das repúblicas. Desde os primórdios da revolução americana, os pais fundadores, em particular, Thomas Jefferson viu na escola pública o veículo fundamental para a criação de igualdade de oportunidades e para o aparecimento de cidadãos consciente dos seus direitos, capazes, com autonomia suficiente, de fazer bom uso da leitura, escrita e aritmética básica para tratar os seus assuntos pessoais e para evoluírem como indivíduos  e cidadãos e ainda de seguirem com devida atenção a acção do governo e evitar que a tirania e a irresponsabilidade se instalassem na esfera pública. A escola pública falha em Cabo Verde quando não é eficaz em dotar um número tão elevado de crianças da adequada competência linguística na língua oficial da República necessária para o exercício de uma cidadania plena.
Recentemente o ex-ministro António Correia e Silva reconheceu num texto publicado no jornal “A Nação” de 23 de Junho que “só sendo bem-sucedida no ensino da língua portuguesa a escola pública será inclusiva, deixando de ser reprodutora de desigualdades”. Num outro ponto do texto foi peremptório em afirmar que “um português acessível a todos é a via de emancipação”. É pena que não tenha convencido o governo a que pertenceu da importância central do domínio da língua portuguesa no sucesso na escola, na mobilidade social e na afirmação da cidadania. Durante estes últimos dez anos sentiu-se mais pressão em fazer avançar o crioulo como língua oficial e de ensino do que em encontrar uma resposta adequada à absurda situação de países, Portugal e Brasil, também com o português como língua oficial, a exigir aos estudantes caboverdianos provas de proficiência na língua portuguesa para admissão nas suas universidades. Lutas identitárias de há muito fracturantes da sociedade cabo-verdiana impediam a focalização no problema real que o sistema de ensino tem - défice de conhecimento do português – e a procura da estratégia certa para o resolver.
O mais natural é que na busca de maior eficácia no ensino do português se esforce por encontrar a melhor metodologia e a mais consentânea como a nossa realidade. Não se pode perder de vista que o espaço que muitas vezes o aluno tem para praticar a língua restringe-se à escola e que o seu principal, se não único interlocutor, é o professor. Por isso para o sucesso desse desiderato conta muito a atitude dos alunos, dos pais e da própria sociedade. Se todos tomam o estudo da língua como central na vida académica do aluno, as probabilidades de sucesso aumentam extraordinariamente. Mas se pelo contrário a relação com a língua é conflituosa, é vista como impositiva ou até como uma espécie de violência, dificilmente vai-se ter sucesso em ensinar a língua mesmo que se use o melhor método do mundo. Sabe-se, por exemplo, que em matemática se um aluno embirra com a matéria por causa de um professor ou de algum revés traumatizante sujeita-se a anos de insucesso se não se libertar da atitude preconceituosa em relação à disciplina. 
O problema com o português em Cabo Verde é também um problema de atitude com origem nas disputas fracturantes à volta da identidade cabo-verdiana que infelizmente o Estado, a comunicação social pública e as escolas têm alimentado ao longo dos anos. O esforço oficialmente desenvolvido de “reafricanização dos espíritos” retirou aos caboverdianos a tranquilidade quanto à sua posição no mundo que a geração da Claridade já tinha estabelecida. Oitenta anos depois é evidente que estavam certos. Recuperada a tranquilidade sobre quem somos e alargado o ensino português para o pré-escolar seguramente que uma outra atitude dos alunos e da sociedade fará do domínio do português o instrumental vital para o sucesso e a afirmação de todos como indivíduos e como cidadãos.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 785 de 14 de Dezembro de 2016.

sexta-feira, dezembro 09, 2016

Poder e responsabilidade

A relação do Estado com os municípios mudou. O Primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva, no discurso da semana passada na abertura do VIII Congresso Autárquico, mostrou-se pronto para cumprir as promessas de descentralização e de reforço da autonomia dos municípios. Antes, já eram conhecidas as normas do Orçamento do Estado que davam corpo à discriminação positiva dos municípios mais pobres e frágeis. Também já se sabia das novas regras que iriam determinar as transferências de receitas provenientes da taxa turística, da taxa ecológica e da taxa rodoviária. No BO do dia 2 de Dezembro, através de decretos-leis do governo, ficaram estabelecidas as várias formas como os diferentes municípios poderão aceder aos Fundos do Turismo e do Ambiente para investimentos em infra-estruturas e servir- se deles para financiar projectos, requalificar o espaço urbano e promover o turismo. Ainda na mesma linha, através do porta-voz do Conselho de Ministros, o governo manifestou a vontade de envolver os municípios na consecução dos grandes objectivos do ODS designadamente nos domínios de redução da pobreza, do acesso água, à saúde, ao saneamento e á energia, educação de qualidade, crescimento económico e redução das desigualdades.
Com tantos recursos transferidos e outras tantas competências ampliadas não é de estranhar o regozijo dos autarcas. Vêem a possibilidade de fazer mais e a oportunidade de ter um impacto maior na vida das pessoas. Uma enorme responsabilidade porém acompanha esses novos poderes e recursos, tanto da parte de quem os delega como também de quem os recebe. O governo, ao optar por envolver administração local na prossecução de um conjunto de objectivos, tem certamente em mira maior eficácia na prestação de serviços aos utentes e na implementação de políticas públicas e uma eficiência superior nos meios utilizados. O sucesso vai depender certamente da capacidade da administração local em responder com uma nova atitude e uma nova cultura de prestação de serviço aos desafios colocados. Afinal, em ultima análise, o que se pretende é que, como diz o governo, as pessoas sejam livres e autónomas, vivam com dignidade e sejam capazes de ascender social e economicamente.
Assume-se que o Poder Local tem o conhecimento e a proximidade das populações que o faz automaticamente menos burocrático, menos autista e mais pró activo em apoiar a iniciativa, a criatividade e a vontade de fazer. Mas assim como a proximidade pode ser de grande ajuda, quando há atitude certa, também pode constituir um empecilho se interesses outros surgem que põem em causa a isenção, imparcialidade e não discriminação partidária que se espera de qualquer serviço público. Os problemas que todos reconhecem existir na administração pública, com impacto directo na qualidade de serviços prestados e no ambiente de negócios, não estão apenas na administração central. Muitos dos mesmo vícios encontram-se na administração local, com resultados não poucas vezes mais perversos precisamente por causa da maior proximidade.  
O desenvolvimento do poder local a partir da II República trouxe benefícios inegáveis para todo o país. Logo à partida, pôde resgatar uma tradição de séculos das câmaras municipais nas ilhas no seu esforço de ordenamento do território, do saneamento básico e de construção das pedras basilares de uma cultura cívica. O nível de infra-estruturas conseguido e a qualidade de vida das populações atingido nos vinte e dois municípios são o exemplo eloquente do que se pôde realizar com transferências do Estado, com uma fiscalidade local mais dinâmica e com algumas iniciativas na cooperação internacional ao nível municipal. Salta, porém, à vista, para além dos sucessos conseguidos, também a tendência para a centralização do poder no município e a tentação de caciquismo. Órgãos que deviam ser de controlo da actuação do executivo, designadamente a assembleia municipal e a própria câmara, não poucas vezes se submetem aos ditames do seu presidente. Maior eficiência e eficácia ao nível local terá que passar necessariamente por contrariar essas tendências e conseguir maior accountability, ou seja maior responsabilização e melhor prestação de contas. A perspectiva de infusão de novos recursos e o alargamento de competências tornam este objectivo fundamental para se conseguir “soltar as energias das pessoas, libertar os operadores económicos de custos desnecessários e pôr a administração pública a prestar serviços públicos de qualidade”.
A massiva transferência de recursos já iniciada, com o claro objectivo de estimular a economia local, criar emprego e aumentar o rendimento das pessoas através de novos investimentos públicos, financiamento de projectos, compras locais de bens e serviços pelo Estado, deve ser vista como uma oportunidade para a estrutura produtiva nas ilhas e não numa lógica redistributiva pura. Essa lógica, sabemos, resultou de décadas de políticas de reciclagem de ajuda externa e é extremamente resiliente. Várias vezes foi posta em causa, mas acabou sempre por prevalecer. Tantas vezes já sobreviveu que não se sabe, à partida, se o novo esquema para o ultrapassar estará a matá-lo ou a alimentá-lo. O pior é quando deixa de ser solidariedade e se torna no veículo de influência eleitoral no país levando os políticos a utilizar os meios postos à sua disposição para conseguir votos e perpetuar-se no poder.
O relatório de competitividade do World Economic Fórum coloca Cabo Verde entre os países onde o que mais conta para o crescimento da economia é a eficiência com que se usam todos os recursos sejam eles humanos, de infra-estrutura, naturais, etc. A competitividade externa do país e a produtividade dependem muito do que se conseguir nesse domínio. Insistir no estímulo do mercado interno minúsculo e fragmentado pela via da redistribuição sem um cuidado especial pelos seus eventuais efeitos no aumento da ineficiência geral pode simplesmente ter efeito contrário ao pretendido. E o sonho da autonomia, do crescimento e de mais emprego, possível com uma capacidade produtiva endógena, pode continuar a ser simples miragem de um país que não consegue dar o salto para se soltar da chamada “armadilha dos países de crescimento médio”.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 784 de 07 de Dezembro de 2016.

sexta-feira, dezembro 02, 2016

Out of order

O orçamento do Estado para o ano 2017 era para ser o grande acontecimento da sessão do par­lamento em Novembro. Infeliz­mente, a apresentação do verda­deiro primeiro orçamento do novo governo foi obscurecido por um conjunto de incidentes e situações anormais ao longo do debate na plenária que deixou patente, pe­rante todos, a fragilidade da ins­tituição parlamentar. Além das já habituais, e muitas vezes sem sentido, interrupções de trabalho com interpelações à Mesa, veio-se a constatar que a Assembleia Na­cional esteve a trabalhar out of or­der, ou seja, sem que as exigências formais para o seu funcionamento estivessem a ser integralmente cumpridas. A Ordem do Dia não tinha sido de facto aprovada e o presidente da AN, a partir de um certo momento já suspenso do seu mandato de deputado por razões de ausência do país do presidente da república (artigo 131º da Cons­tituição), continuou a dirigir os trabalhos. No domingo seguinte, a televisão pública, TCV, não se coi­biu de apresentar trechos do deba­te do Orçamento do Estado com o trilho sonoro que acompanha a ac­tuação de palhaços no circo.
Nunca é demais salientar a gravidade do que ali se passou. A proposta de orçamento do Estado para 2017 estava agendada para ser discutida e aprovada. Para isso devia constar da ordem do dia aprovada por maioria absolu­ta dos deputados em efectividade de funções, ou seja, pelo menos por 37 deputados. O Presidente da mesa proclamou a Ordem do Dia aprovada com 36 deputados a favor, 26 contra e 3 abstenções, como se pode comprovar no vídeo da AN de 21 de Novembro, período da manhã (1:08:00). Deu por aber­to o período da ordem do dia, que é, segundo o regimento, o período durante o qual o parlamento exer­ce as suas funções constitucionais, sem que realmente tivesse sido aprovado. A questão que se coloca é se são válidos os actos seguintes, como sejam a votação e aprovação de leis, particularmente quando a dirigir os trabalhos esteve, durante algum tempo, um presidente em situação irregular porque estava suspenso das suas funções de de­putado.
O facto do parlamento e dos sujeitos parlamentares não con­testarem a validade dos actos pra­ticados durante a sessão pode não fazer com que o problema desapa­reça. Como diz o constitucionalista Jorge Miranda “o Presidente da República pode impugnar a cons­titucionalidade de diplomas, por preterição de requisitos formais”. Tratando-se do Orçamento do Es­tado, que deve vigorar logo a par­tir de 1 de Janeiro de 2017, há que evitar quaisquer contratempos ou dúvidas no processo da sua apro­vação e posterior promulgação pelo PR. Muito menos ainda per­mitir que o contribuinte alimente alguma desconfiança quanto ao processo em que se criam impos­tos e mecanismos de cobrança e liquidação dos mesmos.
O formalismo, ou o respeito pe­los procedimentos, é fundamental em democracia. Não é à toa que sempre que se procura minar as instituições democráticas, ou se quer impor a tirania de uma maio­ria, ou a vontade de um chefe, criam-se atalhos para não se se­guir escrupulosamente as normas, fazem-se apelos para não se perder tempo em debates e formalidades, aponta-se a conveniência de não cumprir com certos requisitos e cortam-se a meio deliberações com declarações de confiança na futura decisão de um pequeno comité, ou do chefe. A democracia entra em crise quando práticas semelhantes começam a verificar-se dentro dos parlamentos e no interior dos par­tidos. Essa acção corrosiva, muitas vezes provocadas por pressão de movimentos populistas tanto den­tro como fora, aumenta a disfun­cionalidade dessas mesmas insti­tuições num crescendo que conduz a ainda maior descrédito das mes­mas e maior adesão aos impulsos populistas.
O sucesso de movimentos po­pulistas em vários países, acom­panhado de subsequente degra­dação da democracia e das suas instituições, tem lançado dúvidas sobre a capacidade de resiliência da democracia. Com o que se pas­sa actualmente, por exemplo, na Hungria, na Polónia e na Turquia ninguém já diz que o processo de consolidação da democracia é ir­reversível. Também ninguém ga­rante que a América com Donald Trump, ou a França com Marine Le Pen, vão manter a mesma face democrática que hoje apresentam. O mundo actual da globalização, de fácil comunicação e alta conec­tividade e de mudanças disrupti­vas no mercado de trabalho devido ao passo acelerado de inovações tecnológicas cria muitas oportu­nidades, mas também frustrações, ressentimentos e ansiedades. As pessoas tornam-se mais facilmen­te permeáveis a fenómenos como xenofobia, racismo e misoginia e iludem-se rapidamente com ape­los anti-partidos e anti-política vindos de um auto intitulado chefe. A complexidade da vida, da econo­mia e da democracia é reduzida a uma visão simplista dos problemas para os quais há soluções a encon­trar, de preferência sem demasia­dos procedimentos e sem delibera­ções numa base plural.
Cabo Verde também não deve tomar a democracia como algo se­guro e garantido. As dificuldades demonstradas no funcionamento do parlamento, os efeitos visíveis de atitudes populistas no seio dos partidos e a prevalência em certos sectores de discursos anti-política e anti-partido não podem ser toma­das com ligeireza. Como também noutros países disfarça-se o ata­que populista contra a democracia representativa com propostas de democracia plebiscitária que põem uns contras outros, acabam com o pluralismo e promovem o apare­cimento de chefes e cultos de per­sonalidade. Um aviso do que pode trazer o futuro é o espectáculo que se assistiu do parlamento “out of order” e de uma TCV pública os­tensivamente a denegrir a imagem do órgão de soberania representa­tivo de todos os cidadãos.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 783 de 30 de Novembro de 2016.