O Presidente da República na sua página de Facebook anunciou
que recebeu “numa única audiência” os
três bastonários e a actual bastonária da ordem dos advogados. Já os tinha
recebido nos dias 8, 9 e 13 de Março. Parece que o PR está numa onda viva de
consultas ao sector de justiça. Desde
que nos princípios de Março de 2017 terminou o mandato da Drª Teresa Évora no
cargo de presidente do Conselho Superior de Magistratura Judicial (CSMJ)o PR já
teve vários encontros, todos noticiados na sua página de facebook, com os
outros membros do conselho, individualmente. Como se sabe da Constituição (art.
223º) o CSMJ é formado por nove personalidades: Um juiz designado pelo PR;
quatro cidadãos, não magistrados e não advogados, eleitos pelo parlamento e quatro
juízes eleitos pelos seus pares. O presidente do CSJ é designado pelo PR, de entre os juízes, mediante proposta dos restantes
membros desses órgãos. A questão que se coloca é se o PR com todas essas
audiências, a seu pedido, aos membros do CSMJ não estará a passar a imagem de
que está a fazer lobby junto dos
membros do conselho em antecipação à proposta que terão que lhe apresentar para
presidente do CSMJ. Uma interferência dessas não seria curial. O CSMJ é o órgão
constitucional de gestão e de disciplina dos juízes. É evidente que no seu
funcionamento deve ser completamente autónomo e estar livre da influência do
poder político. Não é a toa que o governo não indica qualquer individualidade para
o CSMJ e os advogados não podem ser eleitos para o cargo de conselheiro. A
nomeação de um juiz pelo PR e a eleição
de quatro membros pelo parlamento é para “atenuar
a ausência de legitimidade democrática dos juízes". Não vão com uma
agenda predeterminada. Há que dar a devida atenção ao princípio de separação
dos poderes.
Onde há exercício de poder, há possibilidade de abuso. Combatem-se os abusos e limitam-se as impunidades com salvaguardas legais e institucionais que funcionam como contrapesos ao poder e também com uma consciência cívica apurada, suportada por uma imprensa livre. A democracia é o melhor dos sistemas políticos não porque as suas regras não são susceptíveis de abuso mas por que nela o Poder é de facto vários poderes que se equilibram em tensão permanente. O ambiente que daí resulta é o em que a igualdade dos indivíduos perante a lei e a defesa da dignidade humana e da liberdade estão devidamente asseguradas. Para que assim seja é fundamental que as forças de repressão na democracia que detêm o monopólio da violência sejam clara e eficazmente controladas. E em caso de abuso os efeitos devem ser identificados e reparados, os agentes responsabilizados e a força policial corrigida nos seus procedimentos e filosofia de actuação.
Violência policial em Cabo Verde é uma realidade que não escapa a ninguém. Relatos que aparecem na comunicação social em particular na televisão são demasiado frequentes para não deixar indiferente qualquer cidadão. As justificações das autoridades em resposta às denúncias são em geral de uma fragilidade confrangedora especialmente quando procuram pôr a polícia em posição de vítima. São tomadas muitas vezes com cepticismo considerando a desproporção de força a favor da polícia e a dúvida popular tende a subsistir quanto ao que realmente se passou porque, em geral, fica-se por saber se foram cumpridas as promessas de esclarecimento cabal do assunto. Os resultados dos inquéritos quase nunca chegam a público. Não estranha pois que a percepção geral é que há violência policial nas esquadras e que suspeitas de mortes por causa dessa violência têm algum fundamento.
Reforçam ainda mais essa percepção casos como o de Pensamento da semana passada em que um infractor depois de alegadamente espancado por um policial e deixado ficar numa esquadra durantes mais de 12 horas morre, como consta na certidão de óbito, de “choque hipoglicémico e de politraumatismos”. A polícia, em conferência de imprensa, com imprecisões e contradições passou a imagem de estar a fugir à assunção plena das suas responsabilidades. E obviamente que repetir mais uma vez que iria instaurar inquérito interno para apurar responsabilidades dificilmente poderia trazer algum conforto aos familiares e aos cidadãos que estivessem a seguir o caso. Um facto novo porém foram as declarações do Ministro de Administração Interna a garantir sindicâncias externas à actuação da polícia e a pedir a intervenção do Ministério Público para dirigir investigações ao caso.
O relatório do Departamento de Estado americano sobre os direitos humanos do dia 3 de Março comunga da mesma percepção que parece existir entre o público a propósito de certas actuações da polícia. Há referências a brutalidade policial para com detidos, fala-se de casos em que não são responsabilizados os agentes e recordam-se situações em que o governo parece não ter mãos sobre as forças de segurança. O facto de ao longo dos anos esses relatórios terem repetido as mesmas preocupações deixa entender que não se está a fazer o suficiente para pôr cobro a uma prática que, sabe-se de outras experiências de abuso de poder, não encontra cura por si própria e só tende a agravar-se. A descrença na justiça que é gerada apenas retroalimenta a desconfiança entre a população e as forças policiais o que torna mais difícil o combate contra a criminalidade, põe em perigo os agentes da ordem pública e deixa indefesos os cidadãos apanhados no fogo cruzado entre polícias e bandidos.
O aumento significativo da eficácia de todo o sistema de justiça é fundamental para recuperar a confiança na sociedade cabo-verdiana e os níveis de civilidade essenciais para uma baixa permanente do nível da criminalidade no país. Polícias, procuradores, juízes, directores de cadeia e agentes de reinserção social devem perceber que só se terá justiça efectiva com demostrações de brio e profissionalismo por parte de todos os elementos do sistema e com viva consciência de todos da importância do respeito escrupuloso pela lei e pelo processo devido (due process) em todas as situações. Corre-se em sentido contrário quando em vez de se verem como partes de um sistema, derivam para posturas de culpar uns e outros desarticulando-se e desresponsabilizando-se no processo. Pior ainda, é quando se cai na tentação de fazer justiça por conta própria porque se tem a percepção de que parte do sistema não está a fazer o seu papel e presumíveis criminosos são soltos e ficam incólumes.
Impõe-se mudar este estado das coisas. Reequilíbrios têm que ser impostos e os órgãos de fiscalização interna e externa devem funcionar seja nas polícias, seja nas magistraturas de forma a ultrapassar a cultura corporativista que tende sempre a instalar-se e fazer valer-se para cima do interesse público nos corpos profissionais. Do Ministério Público em particular, que, como diz o Presidente da República, no discurso de tomada de posse do actual PGR, “está colocado no vértice da pirâmide de fiscalização da legalidade”,espera-se “coragem de poder desagradar e causar incómodos, (…) mesmo em relação àqueles que pensam estar acima dela, julgando que as suas acções não estão submetidas à sindicância”.
O comunicado do Ministério Público sobre a “Morte de indivíduo detido na esquadra policial” e a conferência de imprensa do Ministro de Administração Interna sobre a mesma matéria de ontem, dia 7 de Março, marcam uma mudança de atitude no sentido que o PR apontou e que todos os cidadãos esperam. É fundamental que se avance para coarctar quaisquer tipos de abusos de poder, complacência com certas práticas e espírito corporativista para que todo o sistema judicial se ponha à altura de eficazmente e em tempo útil proteger os direitos de todos e satisfazer o desejo colectivo de justiça essencial para uma convivência na paz e na liberdade.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 797 de 08 de Março de 2017.