As opiniões no país continuam a dividir-se quanto aos efeitos sobre a dívida do Estado que eventualmente virão da extinção do Trust Fund e subsequente criação de um fundo soberano de garantia ao investimento privado. O Vice-Primeiro Ministro e Ministro das Finanças voltou a afirmar num encontro com empresários em S. Vicente que se vai avançar com a criação do Fundo Soberano “sem qualquer impacto sobre a dívida pública”. Dias antes o Governador do Banco Central (BCV) foi categórico a dizer que a “dívida pública vai subir, pelo menos a prazo”. A divergência em certa medida está no facto de o governo acreditar que a substituição dos títulos da dívida que o BCV detém neste momento (TCMF) pelos novos títulos TTRP emitidos pelo Tesouro irá acontecer perfeitamente sem fricção financeira, enquanto o BCV duvida que isso seja possível. E a verdade é que se realmente a substituição não proceder como previsto há consequências entre as quais o aumento da dívida pública.
A questão de fundo é que o BCV tem na sua posse títulos de dívida (TCMF) no valor de 4,7103 milhões de contos que deviam ser resgatados em Agosto de 2018 de acordo com a Lei nº 69/V/98 mas não foram. O valor do resgate ou devia ser acautelado pelo Estado ao longo dos vinte anos no fim dos quais os títulos atingiam a maturidade ou devia ser o próprio Trust Fund no valor total de 90 milhões de euros que desde 1998 vinha sendo gerido pelo Banco de Portugal. A intenção do governo em utilizar o activo dos 90 milhões num fundo soberano de garantia a investimentos imediatamente pôs o problema de como fazer isso e ao mesmo tempo assegurar o resgate de todos os TCMF. Se para outros detentores desses títulos como o BCA, a Garantia e o INPS soluções negociadas sempre podiam ser encontradas, já com o BCV pela sua própria natureza e autonomia outros condicionalismos tinham que ser levados em consideração. As outras entidades podiam aceitar substituir os seus TCMF por outros títulos de dívida emitidos pelo Tesouro. Já o BCV está impedido de financiar o Estado por essa via. No cerne das disputas está como ultrapassar o imbróglio.
O governo propõe alterar a lei orgânica do Banco Central e contornar o impedimento. Um parecer do BCV enviado a 19 de Março ao parlamento dá por assente que essa pode ser uma linha de acção “ainda que subverta num primeiro momento a intenção inicial de todo o mecanismo subjacente à criação do Trust Fund e dos TCMF bem assim a proibição de financiamento do BCV ao Estado”. A questão que se coloca é em que medida alterações na lei orgânica do BCV particularmente no que respeita às relações entre o Estado e o Banco Central afectam a sua autonomia na execução da política monetária e cambial e na supervisão financeira.
A caminhada do BCV para maior autonomia e independência iniciada nos anos 90 primeiro com a lei orgânica de Julho de 1996, em sintonia aliás com o que se verificava em todo o mundo como por exemplo no Reino Unido durante o governo de Tony Blair, ganhou um impulso significativo com a revisão constitucional de 1999. A partir daí o Banco Central passou não só a colaborar na definição das políticas monetária e cambial como a executá-las de forma autónoma. E também a exercer as suas funções respeitando os compromissos internacionais, caso do Acordo Cambial de 1998, que vinculam o Estado de Cabo Verde. A lei orgânica de 2002 que veio cimentar essa autonomia beneficiou de um acordo tácito conseguido na época entre os dois partidos parlamentares para se evitar a sua instrumentalização designadamente para se interromper mandatos de governadores nomeados pelo governo anterior. Apesar de o Banco Central ser visto pelos constitucionalistas como “órgão constitucional” não há exigência de maioria qualificada para a aprovação da sua orgânica. Convinha porém que assim fosse para garantir estabilidade e credibilidade, como aliás foi defendida em 2002 pela então oposição.
O sucesso do “peg” do escudo ao euro e o baixo nível de inflação são frutos da opção feita em matéria de autonomia que não deve ser posta em causa sob pena de o país posteriormente arcar com as consequências. Veja-se o que se passou após o conflito aberto em Novembro de 2011 entre a então ministra das Finanças e o governador do Banco Central com a cena “da missa, do padre e do sacristão”. Pode-se perguntar se as medidas tomadas posteriormente pelo BCV através das taxas directoras que resultaram no aperto ao crédito teriam sido menos impactantes na economia se houvesse mais convergência entre as políticas fiscal e monetária. Ou então se degradaria tanto a situação do Novo Banco se houvesse mais diálogo. Importa pois que perante a necessidade de encontrar uma via para se fazer o resgaste dos TCMF, atingido a maturidade dos mesmos, que isso seja feita sem pôr em causa a extraordinária engenharia financeira que criou o Trust Fund e os ganhos institucionais conseguidos com a adopção do Acordo Cambial.
Haverá certamente mérito do governo em querer instalar um fundo que dê garantias para investimentos de privados nacionais que de outra forma provavelmente não conseguiriam financiamento. Certamente que algum risco estará associado à operação e que inevitavelmente se reflectirá nos títulos emitidos pelo Fundo Soberano. Mesmo que se queira gerir o Fundo Soberano de forma a manter uma notação A “fica difícil conjecturar a priori se a colocação desses títulos no mercado poderá ser bem-sucedida” como bem aponta o parecer do BCV referido atrás. De qualquer forma há que ponderar devidamente sobre esta engenharia apresentada como inovadora e criativa ciente de que os problemas do sector privado não se limitam ao financiamento. E insistir que é assim, não leva a bom porto como várias vezes já ficou provado no passado e que ainda se vê na elevada percentagem de crédito mal parado (12,2% dos empréstimos) que foi motivo de preocupação da última missão do FMI.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 904 de 27 de Março de 2019.