segunda-feira, maio 13, 2019

Ainda à procura da normalidade

Quase trinta anos depois de mudança de regime político, Cabo Verde ainda não se vê como um “país normal”. Mas normalidade no sentido de pluralismo, democracia e sociedade aberta era o que realmente todos mostraram querer com o seu voto no dia 13 de Janeiro de 1991 que garantiu a maioria qualificada para se aprovar uma Constituição liberal e democrática.
Com esse gesto as pessoas quiseram exprimir que não mais estavam dispostas a aceitar um pensamento único. Não mais queriam ser tratados como cidadãos de segunda sujeitos ao governo de um grupo dos melhores filhos e deixados indefesos perante a discricionariedade e arbitrariedade das autoridades. E não mais dispunham-se a acatar um regime que coarctava a liberdade, a iniciativa e o espírito crítico. Infelizmente a realidade actual não corresponde completamente ao sonho de então e há mesmo o perigo de inversão da marcha em certos domínios.
É verdade que avanços extraordinários foram feitos na construção da normalidade desejada nos anos seguintes de construção da democracia. Mas também é facto que símbolos, ritos e personagens sobreviventes do regime antigo conseguiram insinuar-se no regime democrático, concomitantemente fazendo ressurgir com uma nova vitalidade a tentação de excluir pensamento outro, de se enaltecer e de servir a si próprio e de dobrar a Lei e as instituições ao seu interesse e conveniência. Antes, quando claramente constituía o núcleo essencial da ideologia do regime, procurava legitimar-se suportando-se no cultivo da gratidão pelo sucesso do processo de independência. Hoje, quando subtilmente impregna o Estado democrático procura justificar-se em exclusão de qualquer outra compreensão do percurso da Nação exigindo respeito pela história que só uns autorizados podem escrever e que obrigatoriamente deve ser passada às novas gerações em todas as escolas do país.
Se dúvida houvesse quanto a isso, a reacção excessiva e estrambólica de pessoas e entidades a um post na página do Facebook do deputado Emanuel Barbosa datado de 29 de Abril (opinando no essencial que por Amilcar Cabral não ser uma figura do Estado, “não se mostra aceitável que as suas fotos estejam afixadas em estabelecimento do Estado”) foi bem clara: o país tem tabus, a Constituição e as leis não se aplicam a todos e há que olhar para o lado antes de exercer o direito à liberdade de expressão. A questão central, levantada pelo deputado, se nos organismos públicos só deve estar a imagem do presidente da república porque constitucionalmente é o órgão de soberania que representa interna e externamente a república e é o garante da unidade do Estado, foi completamente ignorada. Em sentido contrário já muito visível ficou o entendimento de pessoas em certos sectores de que há símbolos nacionais outros que não os constantes do artigo 8º da Constituição e que as leis devem dobrar-se para os acomodar. Caricato no imbróglio foi a liderança do MpD através do secretário-geral demarcar-se da opinião do deputado do seu partido sobre uma figura política central ao legado histórico do seu principal adversário político, uma centralidade que o PAICV não se farta de reivindicar.
Viver num país normal onde se privilegia a liberdade pessoal, se preza a igualdade dos indivíduos e a lei se aplica a todos sem distinção pode para alguns não ser excitante como pelo menos inicialmente parece participar em alguma revolução bolivariana, seguir algum Comandante en Jefe ou extasiar-se perante os ritos patrióticos de multidões como na Coreia do Norte. Mas como venezuelanos, cubanos e coreanos e muitos outros noutros países e noutras eras podem testemunhar a excitação, enquanto durar, consegue-se à custa da perda de dignidade, de autonomia pessoal e de esperança num futuro de prosperidade. O culto de personalidade que é comum a todos esses regimes é a verdade única oficialmente aceite que faz do quotidiano um mundo de mentiras repetidas mil vezes e que precipita e atira as pessoas e a sociedade para o atraso porque elimina-se o espírito crítico, alimenta-se o conformismo, substitui-se a razão pelo sentimento e apela-se a paixões irracionais que criam a ilusão de que tudo é possível e que nada deve ser colocado no caminho da realização do objectivo traçado. Parafraseando Churchill sobre a democracia pode-se dizer que a democracia é o menos excitante dos regimes político, mas é o que um país normal faz que justamente deixa mais espaço para a criatividade e inovação, cria as condições para a produção sustentada de riqueza e abre caminho seguro para a inclusão.
O progressivo avanço simbólico de Amílcar Cabral na vida pública de Cabo Verde democrático não podia ser feito sem custos. A sua figura histórica é indissociável do PAIGC, o partido que liderou a luta de libertação na Guiné e esteve na origem de um regime de partido único na Guiné e outro em Cabo Verde. Como líder e teórico revolucionário esteve na origem da ideologia adoptada nos dois regimes de carácter totalitário. É evidente que forçar o reconhecimento do seu percurso político num contexto democrático de valores situados nos antípodas dessa ideologia cria tensões profundas que estão a ser resolvidas com mais esforço de indoutrinação nas escolas, com mais agressividade na invocação do seu pensamento em cerimónias públicas e com maior intransigência em discutir por exemplo se a sua estátua deveria estar numa rotunda como acontece em Bissau ou em repartições públicas onde legalmente nem o primeiro-ministro está e só é permitida a imagem do presidente da república, como acontece aliás em todas as democracias.
O choque contínuo daí resultante abre caminho para maior intolerância, para o estreitamento do espaço deixado ao espírito crítico e para mais crispação política visto que o PAICV proclama-se partido de Cabral. Contribui também para um esforço redobrado de indoutrinação das crianças algo directamente proibido pela Constituição que impede que o Estado programe a educação e o ensino segundo directrizes várias entre as quais políticas e ideológicas (artigo 50º nº 2 c) da CRCV). A violência verbal que se seguiu ao post no Facebook do deputado Barbosa ilustra bem o ponto em que já se chegou nesta deriva cujo imediato efeito é coarctar as liberdades. Pode complicar ainda mais a situação se na luta entre os partidos pelo eleitorado jovem todos se renderem a uma posição acrítica da forma como historicamente deve ser visto A. Cabral, como já vem acontecendo. Ninguém porém ganhará com isso. A Venezuela do comandante Chávez e agora de Maduro é o exemplo dramático do que não é um país normal.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 910 de 08 de Maio de 2019.

segunda-feira, maio 06, 2019

Mais emprego

Em mais uma celebração do 1º de Maio, Dia do Trabalhador, a atenção vai para a problemática do emprego no mundo de hoje, para a dificuldade generalizada em inverter os dados do desemprego e para o número crescente dos que desistem e se auto-excluem do mercado de trabalho.
Há quase três décadas que a economia mundial está a sofrer mudanças profundas sob o impacto da globalização, da liberalização de capitais e de avanços nas tecnologias de informação e comunicação. No processo, cadeias globais de valor criadas aumentaram exponencialmente a riqueza disponível e retiraram da pobreza centenas de milhões. Devido à dinâmica gerada, postos de trabalho foram destruídos e outros novos surgiram deixando para trás um grande número de perdedores mas abrindo oportunidades para muita gente em todos os continentes. Hoje, para uns a grande questão é como amortecer o choque negativo dessas mudanças designadamente no desemprego e na perda de rendimento sem quebrar a dinâmica económica. Para outros é como não ficar à margem de todo o processo de criação de riqueza e sem possibilidade de agarrar o comboio da prosperidade.
Depois da crise financeira de 2007/2008 e da Grande Recessão que se lhe seguiu os efeitos negativos da globalização acentuaram-se no mundo desenvolvido. Ao mesmo tempo que empregos no sector industrial desapareciam com as novas cadeias de valor, empregos criados no sector de serviços mostravam-se incapazes de os substituir porque as pessoas ou não estavam habilitadas para os exercer ou se revelavam pouco atractivos e pagavam menos. O descontentamento aí gerado passou a ressentimento com a crescente percepção pública da excessiva concentração de riqueza e aumento da desigualdade social. Muito do populismo e do sentimento anti-imigrantes que se vê em crescendo nos Estados Unidos e na Europa tem aí o seu fundamento.
Já no mundo em desenvolvimento há que se referir a pelo menos dois casos distintos. Há o caso da China e de mais outros países asiáticos que são os grandes ganhadores do actual sistema e que assistiram à ascensão de milhões de pessoas à classe média e ao crescimento económico a taxas elevadas de mais de 8% ao ano durante décadas suportada por uma rápida industrialização voltada para as exportações. Há o outro caso de países em desenvolvimento que deixaram a sua economia ficar dependente da exportação de minérios, de petróleo e de produtos agropecuários sem se diversificarem realmente. Além de crescerem com taxas relativamente baixas falharam em criar empregos suficientes e de qualidade em número e rapidez que historicamente só foi possível com a industrialização. Nem a dinâmica dos serviços, nem as promessas da economia do conhecimento enquanto motores de criação de empregos mostram-se capazes de compensar essa lacuna no processo de desenvolvimento desses países. E é a constatação deste facto que crescentemente tem levado muitos deles a reverter as suas políticas.
O problema é que o mundo de hoje, particularmente desde que a China foi aceite na OMC e se tornou na grande base industrial do mundo, não é o mesmo de décadas em que no quadro de sistemas preferenciais e de cotas alguns países asiáticos fizeram a sua caminhada com sucesso via industrialização com base nas exportações. Agora o grande desafio é inserir-se nas cadeias globais de valor e sabe-se que para isso as exigências são múltiplas incluindo custos de contexto, custo de factores e nível de formação dos trabalhadores que devem estar a um nível de poder competir com os oferecidos por outros concorrentes. A ameaça de guerras comerciais, a tentação de adopção de políticas proteccionistas pelas grandes potências e a tensão geopolítica em vários pontos do globo prometem tornar a caminhada que ora se procura iniciar ainda mais difícil e imprevisível. Tanto no passado como no presente os países que conseguiram ganhar com a sua inserção na economia mundial tiveram primeiro de construir um grande consenso interno quanto aos objectivos e as vias de os atingir. Aprenderam a abster-se do populismo e da demagogia nas discussões de política e no exercício do contraditório no quadro democrático para que negociações em questões de fundo do país tivessem alguma chance de sucesso e houvesse confiança para celebrar pactos alargados e firmar acordos pontuais.
Na campanha para as legislativas de Março de 2016 os dois grandes partidos correctamente identificaram o emprego como principal preocupação do povo cabo-verdiano. No debate político a candidatura de Ulisses Correia e Silva prometeu crescimento económico de cerca de 7% ao ano e 45 mil postos de trabalho enquanto a candidatura de Janira Hopffer Almada prometeu 15 a 20 mil empregos por ano. Interessante notar que o facto de todos concordarem ser o emprego o maior desejo das pessoas não leva depois a uma aproximação de posições para que condições sejam criadas e o objectivo de gerar mais postos de trabalho e fazer crescer com vigor e sustentabilidade a economia nacional seja materializado. Prefere-se ficar pela política que faz do adversário um inimigo e um potencial sabotador na realização dos interesses do país. E lida-se com a população tornando-se enquanto deputado da situação ou da oposição em porta-voz das reivindicações que, como disse o líder da UCID durante o debate sobre “Habitação e Habitabilidade”, as pessoas não fariam se tivessem um emprego decente.
O foco portanto devia estar em encontrar as melhores vias e fazer reformas que se impõem para criar empregos seguros e de qualidade e pela via do emprego melhorar a situação de todos. É evidente que alguns irão sempre precisar de ajuda directa e solidária do Estado que estará em melhor posição se tiver uma economia a crescer com vigor redobrado e a criar número significativo de postos de trabalho. Tornar o país mais produtivo e mais competitivo particularmente nesta fase de crescente dificuldade nas relações internacionais exigirá esforços redobrados, novos métodos de actuação dos actores políticos e mais abertura para se fazer as negociações e chegar aos acordos necessários em sectores-chave do país designadamente em matéria de administração pública, segurança, educação e política económica no seu todo.
Governar e fazer oposição já não devia passar pelo número de visitas, auscultações e socializações feitas às populações com a frequência e intensidade que ainda hoje se regista. Para além dos custos inerentes parecem ser actos permanentes de campanha eleitoral disfarçados de contacto com as populações. Fica no ar se os dignos representantes têm tempo depois do frenesim correndo pelas ilhas para estudar e reflectir sobre as questões, para encontrar as vias para as resolver e implementá-las no quadro de políticas devidamente ponderadas. A persistente precariedade e vulnerabilidade das populações põem sérias dúvidas quanto a isso. O mesmo faz o desemprego ainda elevado mesmo em face de maior crescimento económico. Há que mudar na forma de actuação da classe política e dos governantes para se poder lidar efectivamente com os constrangimentos ao desenvolvimento e posicionar melhor o país para aproveitar as oportunidades. Celebrar o 1º de Maio deveria significar a renovação do comprometimento para com a criação de condições para se ter mais empregos e propiciar maior empregabilidade a todos os cabo-verdianos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 909 de 01 de Maio de 2019.

segunda-feira, abril 29, 2019

Educação sem peias

O 25 de Abril foi há 45 anos. A movimentação militar chamada Revolução dos Cravos que se verificou nesse dia determinou o fim de 48 anos do regime autoritário de Salazar/Caetano e abriu o caminho para a democracia em Portugal e para o desmoronamento do império colonial e independência das ex-colónias.
Para o cientista político americano Samuel Huntington foi a revolução que marcou o início da terceira onda de democracia e que, depois de passar por vários países entre os quais o Brasil nos anos oitenta, iria atingir o seu apogeu em 1989 com a queda do Muro de Berlim e posterior derrocada do império soviético e falência generalizada de regimes autoritários e totalitários em todo o mundo. Quatro décadas e meia depois para um outro cientista político e sociólogo americano Richard Fishman, numa entrevista ao jornal Público, o 25 de Abril foi o ponto de partida para de uma democracia que resultou de “uma fusão rara de revolução social, mudança cultural e democratização convencional”. Infelizmente para os cabo-verdianos o impacto do 25 de Abril só ficou pelas marcas também nas ilhas deixadas pela revolução social e as mudanças culturais que provocou. A liberdade e a democracia ficaram adiadas e só se concretizariam a partir dos anos noventa.
O desfasamento em Cabo Verde das vertentes social, cultural e política da movimentação de Abril acabaram por impactar negativamente todo o processo de desenvolvimento do país. No seu estudo comparativo das democracias portuguesa e espanhola, Richard Fishman chamou a atenção para o facto de em Espanha não se ter verificado a revolução social e o processo de transição ter sido ditado pelas elites sem a contribuição de baixo para cima das pessoas que em Portugal redefiniu a relação com a hierarquia social prevalecente. O resultado foi que, segundo o autor, até hoje a democracia espanhola é mais crispada e mais polarizada. Imaginem-se as consequências em Cabo Verde onde todo o processo político, social e cultural foi sequestrado pela lógica de poder do partido único. A contestação das hierarquias sociais existentes foi aproveitada para despromover e condicionar as elites locais cavalgando uma onda de igualitarismo que apenas permitia reverência para com “os melhores filhos do povo”, a elite emergente. A mudança cultural em curso - em vez de continuar na senda do aprofundamento da consciência da caboverdianidade agora que as pessoas se viam livre das peias do Estado Novo de Salazar - foi primeiro cooptada e depois subordinada à ideologia do pan-africanismo e da luta de libertação de onde o partido único retirava a legitimidade do seu poder. O corte com o passado do país que tal via pressupunha acabou por ser real e prenhe de consequências, mas não completo. Sempre que era restabelecido era para procurar selectiva e convenientemente acontecimentos, factos e realizações que justificassem o presente e demonstrassem a sua inevitabilidade.
A corrida para a modernidade e à frescura de ideias que deviam advir com o 25 de Abril rapidamente colapsaram perante um regime que se mostrou inimiga das liberdades, que rapidamente virou o país para dentro com as suas políticas sócio-económicas e reorientou-o para o cumprimento de um mítico destino africano. A adopção de um modelo de desenvolvimento com base na reciclagem da ajuda externa garantiu sustentabilidade e legitimidade ao regime na base de uma suposta boa gestão dos recursos postos à disposição pela comunidade internacional. Na realidade, por um lado atrasou o país em relação a outros como as Maurícias e as Seicheles que optaram por uma economia aberta ao mundo e se abriram ao investimento directo estrangeiro e ao turismo e incentivaram as exportações. Vê-se o atraso na diferença de três ou mais vezes no rendimento per capita desses países relativamente a Cabo Verde. Por outro criou na população mentalidade de dependência, desincentivou a iniciativa individual e não deixou espaço para se desenvolver uma cultura de produção e de serviço.
A democracia que se começou a construir 15 anos depois inevitavelmente teve que sofrer com as mazelas acumuladas no tecido social, designadamente a inércia cívica, o igualitarismo que desencoraja a criatividade e a procura de excelência e o conformismo que faz as pessoas recear diferenças de opinião e pensamento crítico. Se na Espanha analisada por Richard Fishman a crispação política na ausência de certos factores para a sua dissipação mantem-se apesar do processo de democratização consensual entre as elites, em Cabo Verde onde tal consenso nunca realmente existiu não se vê como se poderá libertar-se da excessiva polarização política para que compromissos em domínios-chave para o país sejam atingidos. A educação é um dos tais domínios sobre o qual urgentemente precisar-se-ia chegar a um compromisso firme. Apesar dos enormes investimentos já realizados no sector, é facto que o sistema de ensino e as estruturas de formação existentes têm-se revelado inadequados para garantir a empregabilidade dos jovens e ser factor de competitividade do país.
Retrospectivamente pode-se constatar que o corte com o passado e a captura ideológica da sociedade e do sistema de ensino em particular verificados após a independência contribuíram de várias formas para tornar os investimentos na educação pouco produtivos. Apesar de massivamente se ter educado a população, diminuindo extraordinariamente o analfabetismo, levando liceus a todos os pontos do país e abrindo as portas ao ensino superior não é perceptível que o efeito multiplicador sobre a sociedade desse esforço se compare, por exemplo, com o legado cultural e intelectual deixado por alguns poucos de gerações anteriores. A qualidade de formação no pós- independência não tornou o país atractivo para estudantes de outros países nem permitiu que se desenvolvesse uma estratégia de colocação de quadros nacionais em organizações internacionais e em projectos de cooperação com países próximos. A emigração espontânea de trabalhadores não beneficiou de nenhuma estratégica de formação que poderia melhorar a sua qualidade e eventualmente os seus proventos com ganhos para o país. Optou-se pela mediania e o resultado se vê nos números de desemprego e no perfil do desempregado e cada vez mais no do inactivo.
O percurso do país não tinha que ser o que foi e não tem que prosseguir no mesmo caminho dissipando recursos sem que os resultados justifiquem os enormes investimentos feitos pelos indivíduos, pelas famílias e por toda a comunidade nacional através do Estado. Sucessivas gerações não têm que continuar a serem sacrificadas pelo sistema ineficiente que se insiste ano após ano em reproduzir. É um facto que todos reconhecem que o único recurso real de Cabo Verde é a sua gente. Não faz sentido que se continue a desperdiça-lo. Para se reorientar o sistema há que ultrapassar os obstáculos que até agora impediram que reformas profundas fossem possíveis porque na ausência de compromissos tudo vale como arma de arremesso político. Dos professores, a peça fundamental para o sucesso, é de se esperar que sigam o seu patrono Baltasar Lopes na sua Última Lição (pag. 24) vendo a função do professor no “seu contributo para se formarem homens e de que assim às suas mãos confiam a comunidade parte principalíssima do trabalho e de a ele assegurar o seu futuro próximo, um próximo infinitamente re­nascido na escala e na sucessão do tempo”.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 908 de 24 de Abril de 2019.

segunda-feira, abril 22, 2019

Alternância por concretizar

No próximo dia 20 de Abril completam-se três anos da inauguração da actual legislatura dominada pelo MpD. A vitória nas eleições de 16 de Março negara um quarto mandato ao PAICV abrindo o caminho para uma alternância na condução do país.
A dimensão da derrota eleitoral do PAICV, que ficou reduzido a pouco mais do que terço dos deputados, pareceu sugerir que o eleitorado quereria uma mudança de políticas mais do que uma mudança de governo. E compreende-se: a situação do país vinha-se deteriorando em crescimento, emprego e segurança enquanto se tornava mais notória a vulnerabilidade da população rural e acentuava-se a desesperança numa parte significativa da juventude. A promessa do turismo ainda ficava aquém do desejado tanto pela relativa baixa da qualidade dos postos de trabalho criados como também pelo seu fraco efeito de arrastamento na economia nacional. Quis-se pois alternância para mudar este estado coisas.
É um facto que as políticas públicas aplicadas na década anterior tinham desembocado numa estagnação económica que se arrastava há vários anos com óbvio impacto no emprego, no rendimento das pessoas e nas perspectivas futuras das pessoas e em particular dos jovens. A par disso, via-se como o Estado se tinha endividado ultrapassando então mais de 125% do PIB enquanto empresas públicas como a TACV tornavam-se num risco crescente para o país. Também se constatava que a trajectória centralista do Estado se mantinha ou tornava-se pior criando nas diferentes ilhas a sensação de estarem a ficar para trás. Por seu lado, a administração pública, na sua ineficiência e resistência a reformas, continuava a ser um obstáculo à melhoria do ambiente de negócio e um travão no esforço para tornar o país mais competitivo. Juntam-se a isso as dificuldades crescentes da população jovem saída dos liceus e universidades não só em encontrar emprego como também a adequar-se à oferta existente de trabalho. Não espanta pois que perante um quadro tão difícil a votação nas urnas não clamasse por uma outra governação e outras políticas para o país.
O problema é o que acontece depois de ganhar o poder. O desafio logo à partida é como proceder para que ao mesmo que se faz a gestão diária se esteja preparado para fazer as alterações de políticas que abram caminho ao cumprimento das promessas eleitorais. Para isso conviria não se deixar afogar nos problemas que são sempre maiores do que parecem quando se está na oposição e nem deixar-se levar pela tentação de confrontar o adversário como se as eleições não tivessem sido realizadas e ganhas. Mas não é o que normalmente acontece nessas circunstâncias e o resultado é a continuação por muito tempo da crispação política típica dos tempos eleitorais e a perda de ímpeto para a mudança que isso acarreta com claro prejuízo para se fazer as reformas que se impõem. Para um país como Cabo Verde que de há muito que vem “esticando” a corda de um modelo de desenvolvimento claramente gasto e obsoleto, os resultados podem ser desastrosos porque há muito coisa inadiável a ser feita. E no meio de confrontos políticos, que são simples repetição de diferenças do passado, os problemas do presente não são devidamente debatidos. Como há desconfiança não se criam vontades. E se não houver vontade nem debate lúcido dificilmente os problemas podem ser equacionados e resolvidos. O que se passou com a lei da regionalização na semana passada no parlamento é ilustrativo a esse respeito.
Ninguém fica tranquilo se perante as dificuldades a abordagem adoptada continua essencialmente a ser “mais do mesmo” e se conveniências político-partidárias continuam a perturbar o reconhecimento dos problemas e a procura de soluções. A verdade é que faz confusão às pessoas, por exemplo, notar que afinal crescimento não está a trazer mais emprego, que mais educação não está a criar mais oportunidades de trabalho para os jovens, e que o país continua grandemente vulnerável às secas. Também incomoda verificar que apesar de grandes investimentos no Estado persistem as queixas da sua ineficiência e da sua insensibilidade no tratamento dos utentes e operadores económicos. No mesmo sentido vê-se com alguma apreensão que soluções encontradas em certos sectores embora contribuam para estancar sangrias de recursos públicos e diminuir défices orçamentais deixam espaços vazios que as pessoas e a economia no seu todo pagam em custos mais elevados, em acesso limitado e baixa qualidade de serviço. Globalmente não há percepção que se está perante uma abordagem nova sem as amarras das políticas no passado que falharam em proporcionar mais rendimento e mais oportunidades de uma via melhor. E isso não é bom para as pessoas nem para a democracia.
A democracia corre o risco de entrar numa crise profunda se se desenvolver a percepção geral que todos os partidos são iguais, que todos os governos fazem o mesmo e que a alternância política é uma farsa porque todos vão para o governo para se servirem e não para servir o interesse geral. Como já alguém disse, a democracia não garante bons governos mas assegura que maus governos podem ser mudados e o país reorientado com outras políticas. A história demonstra que se isso não acontece e o sistema partidário falha em assegurar verdadeira alternância corre-se o risco de descredibilização das instituições e de toda a classe política. O forte desgaste sofrido pelas instituições nos últimos três anos a começar pelo parlamento mas não deixando incólume nenhum outro órgão de soberania ou instituição pública tem como base essa frustração com alternâncias que não se materializam e levam ao descrédito do regime.
No próximo ano de 2020 começa o novo ciclo eleitoral com eleições autárquicas seguidas de legislativas e presidenciais que irá prolongar-se para a segunda metade do ano 2021. Tendo como referência o que se passa noutras democracias pode-se dizer que provavelmente vai-se ter eleições como nunca antes aconteceu no que respeita aos protagonistas, às tácticas utilizadas e ao papel a desempenhar pelas redes sociais nas campanhas eleitorais. E como outras experiências democráticas já demonstraram nenhum partido está seguro de manter a sua importância e o seu peso eleitoral por mais legado histórico que reivindicar ou maior número de militantes que reclamar. Se persistir a descrença na incapacidade dos actuais actores em fornecer alternativas credíveis pode-se ter que lidar com a ascendência de partidos extremistas e eventual aparecimento movimentos sociais inorgânicos. A verificar-se a fragmentação do campo político cabo-verdiano neste molde já com exemplos em outras latitudes seria um desastre de total responsabilidade dos dois grandes partidos cabo-verdianos. Desempenhar com sentido de estado e respeito pelo interesse geral o papel de partido de situação e o de partido de oposição no regime democrático é fundamental para o funcionamento, credibilidade e eficácia da democracia. Infelizmente, há demasiados exemplos que isso não tem sido a norma, em particular nos últimos anos.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 907 de 17 de Abril de 2019.

segunda-feira, abril 15, 2019

Avisos à navegação

Cabo Verde no seu afã diário de sobrevivência e a sonhar com o desenvolvimento de vez em quando depara-se com factos, situações e constatações que deviam obrigar a uma pausa seguida de reflexão mais aprofundada.
O crescimento de 5,5% do PIB sem aparente efeito nos níveis de desemprego que, de acordo com o INE, permaneceram de 2017 para 2018 em 12,2% bem podia ser um dos tais momentos para reavaliações colectivas das políticas públicas. Infelizmente, como já tinha acontecido com a seca de 2017 não foi desta que a classe política se muniu da serenidade necessária para analisar as razões por detrás do aparente desfasamento entre crescimento e emprego e das vulnerabilidades que persistem no país, em particular no mundo rural. Pelo contrário, foi pretexto para mais um “round” de picardia política que nada acrescentou à preocupação geral sobre como criar empregos sustentáveis e com qualidade. A verdade é que, apesar dos tropeções na realidade que de tempos em tempos acontecem, é grande a tentação para se continuar no ilusionismo das promessas várias vezes repetidas e dos milhões que vêm de fora para resolver os problemas. O jogo do poder não deixa que a classe política desista do discurso populista e demagógico. A sociedade civil não mostra autonomia, vontade ou capacidade para forçar a saída deste paradigma de existência.
Assim, por exemplo, face à seca de 2017 que continuou em 2018 e deixou bem claras as vulnerabilidades do mundo rural pergunta-se o que é que mudou. Não parece que se tenha feito um balanço das políticas em direcção ao sector da agricultura e pecuária que há pouco se centravam nas barragens, na mobilização de água e no agronegócio. A seca e a pobreza revelada da população rural pôs tudo a nu mas há quem ainda insista que eram políticas correctas e que os investimentos realizados justificavam-se. Os resultados negativos indisfarçáveis em situação de crise não contribuem para alterar minimamente essa crença. Tão pouco dão sinal de mudar no essencial a abordagem da situação no mundo rural. Paradoxalmente continua-se a acreditar que é possível agir para ao mesmo tempo fixar as populações, criar empregos e aumentar a produtividade da economia rural. Agora quer-se mobilizar água recorrendo à dessalinização e focar estudos e projectos na constituição de cadeias de valor e no acesso aos mercados das ilhas turísticas. O puzzle a construir para que tudo isso dê certo ainda deve incluir transportes eficientes, regulares e a custos competitivos para além do devido condicionamento e a certificação dos produtos. Claro que o problema central de escala que se coloca em tudo o que diz respeito à produção no país não deixará de existir e afectar a competitividade de produtos. Entrementes, o que parece incompatível com a produção bem-sucedida para nichos de mercado, para o aumento da produtividade e a melhoria do rendimento no campo é manter o actual nível populacional ocupado na agricultura e até elevá-lo com os esforços de fixação e criação de empregos.
A história do desenvolvimento de diferentes países revela claramente a evolução da economia a partir da agricultura, pecuária e indústrias extractivas do sector primário para o sector secundário com a industrialização e posteriormente para o sector terciário dos serviços. Uma evolução que se suportou no aumento da produtividade e que foi acompanhada de deslocação da mão de obra primeiro para indústria e progressivamente para os serviços e que resultou na emergência de uma classe média e na diminuição geral da pobreza. Actualmente com a economia digital, o estabelecimento de cadeias de valores globais e o comércio livre entre as nações o potencial para expansão parece não ter limite e imparável a tendência para a concentração das pessoas nas cidades e nas grandes áreas metropolitanas. Claro que face a essas tendências há um esforço para se evitar o agravamento excessivo das desigualdades territoriais mas numa perspectiva dinâmica com alargamento do leque de ofertas locais sem comprometer as necessidades de mão-de-obra dos sectores em rápido crescimento. Em Cabo Verde parece não ser esse o entendimento. Aparentemente pretendeu-se contornar a fase da industrialização e desembocar diretamente nos serviços como, aliás, aconteceu num grande número de países africanos. O resultado vê-se na agricultura ainda basicamente de subsistência, numa grande população rural vulnerável e crescente população nas periferias das cidades ocupadas em atividades informais de baixa produtividade e de fraca capacidade de criação de emprego. Mesmo a parte formal dos serviços não tem suficiente dinâmica para criação massiva de empregos que historicamente a industrialização demonstrou ter.
Daí as persistentes e elevadas taxas de desemprego em África contrariamente ao que se verifica na Ásia que escolheu industrializar-se para exportação. Uma outra consequência pode ser vista no rendimento per capita desses países. Maurícias tem três vezes o rendimento per capita de Cabo Verde. Diferenças similares ou mais pronunciadas existem entre países asiáticos e africanos. E assim é porque enquanto Maurícias industrializava-se para exportação nos anos 70 e 80, Cabo Verde submetia-se a políticas que viravam o país para dentro, negava o investimento directo estrangeiro e hostilizava o sector privado nacional. As tentativas de industrialização dos anos noventa vieram relativamente tarde e não tiveram seguimento na década seguinte. Na África existe agora uma forte motivação para se industrializar como se pode ver com particular destaque na Etiópia, Quénia e Ruanda. Percebe-se finalmente que dificilmente se será bem-sucedido na luta contra a pobreza e na construção de um futuro de progresso sem indústrias competitivas. O sucesso da China está aí para demonstrar qual deve ser o caminho.
Pode-se pois concluir que na ausência de uma política de industrialização dificilmente um país ou uma economia consegue criar empregos em número e qualidade para baixar significativamente o desemprego. E certamente não é pela via do auto emprego, fazendo uso de receitas diversas de empreendedorismo e sonhando com start ups que se vai chegar lá. Sucessos por essas vias exigem na maior parte das vezes um ambiente de negócios favorável, um nível elevado de formalização da economia e existência de mercados estruturados que à partida não se pode assumir. Tem que se construir. Mesmo a formação profissional e um sistema de estágios massificado para trazer resultados positivos têm que se enquadrar dentro de um círculo virtuoso onde densidade empresarial, cultura industrial e de serviços e organização das profissões são ingredientes essenciais. Claro que para um país como Cabo Verde de pequena população e espalhada por nove ilhas a oportunidade que a emergência da sociedade do conhecimento e da economia digital podia oferecer devia ter sido logo identificada. Entre outras vantagens permitia contornar constrangimentos como localização geográfica e dispersão de recursos humanos e potenciar conhecimento e habilitações técnicas individuais. Mas isso só seria possível se se tivesse assumido realmente uma aposta séria na qualidade da formação e do conhecimento do cabo-verdiano. Investiu-se na massificação do ensino em detrimento da qualidade.
O resultado é que sem industrialização e com um sector de serviços ainda pouco dinâmico não estranha que a habilitação média do jovem desempregado seja o 9º ano de escolaridade. O aviso que isso iria acontecer vem de longe, como, aliás, todos os outros avisos que apontavam para falhas e incongruências de políticas públicas e que foram ignorados. Está-se perante mais um outro alerta de que o crescimento económico pode não estar a traduzir-se em mais emprego. O futuro dirá se será desta vez que o alerta será ouvido e que serenamente se irá debater e agir para que finalmente o desemprego deixe de ser estrutural e empregos cheguem a todos.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 906 de 10 de Abril de 2019.

segunda-feira, abril 08, 2019

Incongruências na lei da regionalização

A Lei da Regionalização continua em discussão na Assembleia Nacional. Aprovada na generalidade em Novembro de 2018 foi retomada em sede de discussão na especialidade na última reunião plenária de Março findo. Os trabalhos no parlamento foram interrompidos na sequência da não aprovação do artigo 6º sobre os órgãos da Região que exigia uma maioria qualificada de dois terços dos votos. Criou-se um impasse ao não se chegar a consenso em como proceder a partir da queda de um artigo central da lei no que respeita à organização das regiões. Segundo a RTC, o governo na pessoa do ministro dos Assuntos Parlamentares prometeu rever a redacção do artigo sexto “chumbado” e trazer de volta o diploma em Abril. Uma solução inédita e duvidosa, mas não muito diferente do que se tem visto no processo de legislar sobre autarquias supramunicipais, carregado como está de incongruências várias.
Começou-se a querer legislar para as regiões há cerca de dez anos atrás. O problema para quem tinha a iniciativa foi sempre conseguir os votos das outras forças políticas e a maioria qualificada necessária para passar a lei ao mesmo tempo que assegurava que ficava com todos os louros de ter levado avante a lei e os outros com o estigma de terem sido contra. Em 2010, na impossibilidade de convencer a oposição a aprovar uma lei de criação de regiões, o então governo de José Maria Neves fez aprovar o regime de criação de regiões no quadro de uma lei da descentralização aprovada por maioria absoluta e abstenção e voto contra das outras forças. E ficaram com os louros. Agora com o governo de Ulisses Correia e Silva avança-se com a lei das regiões, mas falta chegar a um acordo com as outras forças políticas em boa parte porque há uma disputa para saber quem tem o mérito da iniciativa e no processo vai-se fazendo acusações ou insinuando de que os outros são contra. Apesar de não existirem estudos que comprovam um sentimento maioritário da população a favor da regionalização, nem evidência que seja a única via para combater com eficiência e eficácia a excessiva centralização do país, todos os partidos agem nessa matéria como se tratasse do grande prémio eleitoral a conquistar a todo o custo.
Daí as múltiplas incongruências que se pode vislumbrar nas propostas apresentadas. A primeira que faz de cada ilha uma região, ou seja, uma autarquia supramunicipal, confronta-se com a dificuldade de nas ilhas com um único município o território e a população das duas categorias de autarquias coincidirem. Aparentemente não se está a criar regiões para ganhar escala, aumentar os recursos materiais e humanos e elevar o nível de actuação. Uma segunda incongruência é criar excepção à regra de região-ilha que tem como base o reconhecimento do percurso histórico e cultural único de cada uma delas – e por isso força a criação de regiões mesmo em ilhas como Brava e Maio com pequena população e fracos recursos – para depois criar duas regiões em Santiago com o simples argumento do peso demográfico da ilha. Uma terceira incongruência que é consequência da segunda vê-se na quebra do princípio da igualdade na representação das ilhas em instâncias de decisão sobre a utilização de recursos do Estado como parece consagrar a Constituição de 1992 ao atribuir ao Conselho dos Assuntos Regionais, onde as ilhas são igualmente representadas, competências na emissão de pareceres sobre o plano nacional de desenvolvimento regional e os planos regionais. Depois da revisão constitucional de 1999 e a criação do Conselho Económico e Social, a lei do Conselho de Desenvolvimento Regional aprovada em Julho de 2014 consagrou as mesmas competências e reafirmou o princípio da igualdade de representação das ilhas. Uma quinta incongruência é fazer da Praia a sede da região Santiago Sul e nessa condição centro gerador de uma identidade da região quando constitucionalmente se lhe dá um estatuto administrativo especial para se assumir em pleno como Capital da Nação.
Finalmente encontra-se uma incongruência de monta entre a intenção de fazer da regionalização o instrumento para criação de riqueza com valorização das especificidades próprias da ilha, potenciação de recursos e desenvolvimento de vantagens comparativas e competitivas e o discurso com enfase na redistribuição dos recursos do Estado pelas ilhas que tem acompanhado toda a agitação política sobre a matéria. Diz-se que se quer as ilhas mais autónomas, dinâmicas e voltadas para o futuro, mas de algum modo continua-se a encorajar e a alimentar reflexos nocivos já profundos nas pessoas e na sociedade cabo-verdiana produzidos pelo reciclar de dádivas vindas directamente do exterior ou por intermediação do poder central.
Os ganhos político-eleitorais, com vantagem para quem governa, que os partidos irão querer obter logo à cabeça poderá ser o maior obstáculo à substituição nas ilhas da narrativa de ressentimento de quem até agora se se considerou discriminado pela narrativa de possibilidade que o empoderamento das regiões deverá criar. Eleitoralismo e dependência ficaram ligados por demasiado tempo. Custa romper a ligação existente e construir outros laços entre o Poder e a sociedade no pressuposto de que é o sucesso na promoção do desenvolvimento para todos que assegura uma legitimidade maior e sustentada à governação.
Incongruências várias caracterizam políticas públicas em Cabo Verde devido à falta de visão e a ausência de estratégia que tem caracterizada a actuação dos governantes durante décadas Ao focar a sociedade na procura de meios propiciados pelos outros não se deixa espaço para encontrar via própria de produção de riqueza nem capacidade para aproveitar oportunidades. Não espanta que os anos passam e não se consegue confrontar adequadamente o problema do desemprego como mostram os últimos dados do INE mesmo face a um crescimento do PIB de 5,5%. A governação do país ao longo de décadas deixou a maior parte mão-de-obra em sectores de baixa produtividade, foi incapaz de no tempo próprio aproveitar as janelas que se abriram à indústria virada para exportação e criação rápida de emprego e não se mostrou suficientemente visionário para investir na educação de qualidade necessária para a sociedade digital e de conhecimento que se anunciava. Incongruências nas políticas públicas levam a isso. Infelizmente não há muitos sinais de se querer ir mais além, como se pode depreender das últimas discussões na Assembleia Nacional.

Humberto Cardoso



Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 905 de 03 de Abril de 2019.

segunda-feira, abril 01, 2019

Fundo soberano causa divergências

As opiniões no país continuam a dividir-se quanto aos efeitos sobre a dívida do Estado que eventualmente virão da extinção do Trust Fund e subsequente criação de um fundo soberano de garantia ao investimento privado. O Vice-Primeiro Ministro e Ministro das Finanças voltou a afirmar num encontro com empresários em S. Vicente que se vai avançar com a criação do Fundo Soberano “sem qualquer impacto sobre a dívida pública”. Dias antes o Governador do Banco Central (BCV) foi categórico a dizer que a “dívida pública vai subir, pelo menos a prazo”. A divergência em certa medida está no facto de o governo acreditar que a substituição dos títulos da dívida que o BCV detém neste momento (TCMF) pelos novos títulos TTRP emitidos pelo Tesouro irá acontecer perfeitamente sem fricção financeira, enquanto o BCV duvida que isso seja possível. E a verdade é que se realmente a substituição não proceder como previsto há consequências entre as quais o aumento da dívida pública.
A questão de fundo é que o BCV tem na sua posse títulos de dívida (TCMF) no valor de 4,7103 milhões de contos que deviam ser resgatados em Agosto de 2018 de acordo com a Lei nº 69/V/98 mas não foram. O valor do resgate ou devia ser acautelado pelo Estado ao longo dos vinte anos no fim dos quais os títulos atingiam a maturidade ou devia ser o próprio Trust Fund no valor total de 90 milhões de euros que desde 1998 vinha sendo gerido pelo Banco de Portugal. A intenção do governo em utilizar o activo dos 90 milhões num fundo soberano de garantia a investimentos imediatamente pôs o problema de como fazer isso e ao mesmo tempo assegurar o resgate de todos os TCMF. Se para outros detentores desses títulos como o BCA, a Garantia e o INPS soluções negociadas sempre podiam ser encontradas, já com o BCV pela sua própria natureza e autonomia outros condicionalismos tinham que ser levados em consideração. As outras entidades podiam aceitar substituir os seus TCMF por outros títulos de dívida emitidos pelo Tesouro. Já o BCV está impedido de financiar o Estado por essa via. No cerne das disputas está como ultrapassar o imbróglio.
O governo propõe alterar a lei orgânica do Banco Central e contornar o impedimento. Um parecer do BCV enviado a 19 de Março ao parlamento dá por assente que essa pode ser uma linha de acção “ainda que subverta num primeiro momento a intenção inicial de todo o mecanismo subjacente à criação do Trust Fund e dos TCMF bem assim a proibição de financiamento do BCV ao Estado”. A questão que se coloca é em que medida alterações na lei orgânica do BCV particularmente no que respeita às relações entre o Estado e o Banco Central afectam a sua autonomia na execução da política monetária e cambial e na supervisão financeira.
A caminhada do BCV para maior autonomia e independência iniciada nos anos 90 primeiro com a lei orgânica de Julho de 1996, em sintonia aliás com o que se verificava em todo o mundo como por exemplo no Reino Unido durante o governo de Tony Blair, ganhou um impulso significativo com a revisão constitucional de 1999. A partir daí o Banco Central passou não só a colaborar na definição das políticas monetária e cambial como a executá-las de forma autónoma. E também a exercer as suas funções respeitando os compromissos internacionais, caso do Acordo Cambial de 1998, que vinculam o Estado de Cabo Verde. A lei orgânica de 2002 que veio cimentar essa autonomia beneficiou de um acordo tácito conseguido na época entre os dois partidos parlamentares para se evitar a sua instrumentalização designadamente para se interromper mandatos de governadores nomeados pelo governo anterior. Apesar de o Banco Central ser visto pelos constitucionalistas como “órgão constitucional” não há exigência de maioria qualificada para a aprovação da sua orgânica. Convinha porém que assim fosse para garantir estabilidade e credibilidade, como aliás foi defendida em 2002 pela então oposição.
O sucesso do “peg” do escudo ao euro e o baixo nível de inflação são frutos da opção feita em matéria de autonomia que não deve ser posta em causa sob pena de o país posteriormente arcar com as consequências. Veja-se o que se passou após o conflito aberto em Novembro de 2011 entre a então ministra das Finanças e o governador do Banco Central com a cena “da missa, do padre e do sacristão”. Pode-se perguntar se as medidas tomadas posteriormente pelo BCV através das taxas directoras que resultaram no aperto ao crédito teriam sido menos impactantes na economia se houvesse mais convergência entre as políticas fiscal e monetária. Ou então se degradaria tanto a situação do Novo Banco se houvesse mais diálogo. Importa pois que perante a necessidade de encontrar uma via para se fazer o resgaste dos TCMF, atingido a maturidade dos mesmos, que isso seja feita sem pôr em causa a extraordinária engenharia financeira que criou o Trust Fund e os ganhos institucionais conseguidos com a adopção do Acordo Cambial.
Haverá certamente mérito do governo em querer instalar um fundo que dê garantias para investimentos de privados nacionais que de outra forma provavelmente não conseguiriam financiamento. Certamente que algum risco estará associado à operação e que inevitavelmente se reflectirá nos títulos emitidos pelo Fundo Soberano. Mesmo que se queira gerir o Fundo Soberano de forma a manter uma notação A “fica difícil conjecturar a priori se a colocação desses títulos no mercado poderá ser bem-sucedida” como bem aponta o parecer do BCV referido atrás. De qualquer forma há que ponderar devidamente sobre esta engenharia apresentada como inovadora e criativa ciente de que os problemas do sector privado não se limitam ao financiamento. E insistir que é assim, não leva a bom porto como várias vezes já ficou provado no passado e que ainda se vê na elevada percentagem de crédito mal parado (12,2% dos empréstimos) que foi motivo de preocupação da última missão do FMI.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 904 de 27 de Março de 2019.

segunda-feira, março 25, 2019

Não dá para continuar a empurrar com a barriga

É notório que não se vive, não se participa nem se reivindica como se fazia poucos anos atrás em Cabo Verde. Num dia Brava manifesta-se na ilha e na capital. A morte de uma parturiente que não teria sido evacuada a tempo foi a justificação. Noutro dia grupos cívicos criticam a justiça e exigem que alguém de direito assuma a responsabilidade pelas falhas no sector e pela frustração sentida pela população que quer justiça competente e em tempo útil. Em dias certos no mês os partidos literalmente engalfinham-se no parlamento prejudicando o equacionamento dos problemas, a criação de vontade para as resolver e a própria busca de soluções.
 Algo recentemente mudou na postura das pessoas e no comportamento das organizações e das próprias instituições. Os sinais vinham de muito atrás, mas provavelmente foi a mudança de governo que terá propiciado a viragem que actualmente se constata. A agitação social e política dos últimos três anos supera em muito o que se passou na década anterior.
Claro que o fenómeno não é exclusivo de Cabo Verde. Com especificidades próprias acontece em maior parte do globo. Há quem aponte a crise financeira, a chamada Grande Recessão de 2008 como o ponto de viragem. Outros vão mais longe e apontam os ataques terroristas de 11 de Setembro como o fim do período aberto com a queda do Muro de Berlim, em 1989, em que se viu o avanço aparentemente imparável da democracia e a adopção generalizada das regras da economia de mercado acompanhada de prosperidade sem precedentes particularmente na China. A verdade é que hoje principalmente nas economias mais avançadas vive-se com o sentimento de que há desigualdade crescente de rendimentos com concentração de riqueza numa pequena minoria e que os governos se mostram impotentes para inverter o processo e também para gerir adequadamente as migrações de pessoas vindas de outras paragens à procura de uma vida melhor. Em consequência nota-se que aumenta a reacção contra a globalização e a favor do proteccionismo e que não há certezas que o futuro traga mais rendimento e mais qualidade de vida e que dúvidas crescentes em relação às instituições democráticas, aos média e a outras entidades mediadoras incluindo as científicas levam ao extremar de posições na sociedade.
Já nos países emergentes como por exemplo o Brasil há reacções similares, mas com efeitos mais complicados considerando a fragilidade maior das instituições e também a precariedade de existência de largas camadas da população mesmo aquelas que recentemente se viram elevadas ao nível da classe média. As causas aí pesam bastante pelo lado da corrupção, pela incapacidade do Estado em propiciar os serviços desejados com eficiência e eficácia e a dificuldade em avançar como um modelo de desenvolvimento que garanta crescimento sustentável e criação de empregos seguros. Em Cabo Verde acontece algo semelhante com a diferença de o sistema produtivo ser muito limitado e a atenção geral fixar-se no Estado e nos recursos que concentra ou pode dar acesso. Por isso é que quando fica claro que o panorama sócio-económico é mais complicado do que o esperado porque se perdeu tempo, se investiu mal e as prioridades foram trocadas a reacção é de maior impaciência, de descrença nas instituições e na classe política e de corrida desenfreada especialmente da parte dos interesses corporativos para assegurar o seu quinhão no bolo representado pelo Estado. Depois de se ter constatado que afinal problemas a todos os níveis foram em boa medida varridos para debaixo do tapete e ressurgem agora com vigor surpreendente e consequências funestas a dúvida é se agora não se está simplesmente a “empurrá-los com a barriga” não obstante os governantes garantirem que as “suas soluções são inovadoras e criativas”.
A UCID há dias publicamente afirmava que as câmaras de vigilância não têm transmitido a sensação de segurança às populações. Depois de milhões de dólares gastos na instalação das câmaras e do centro de comando e controlo esperava-se o trabalho complementar de fazer chegar a polícia junto das comunidades e potenciar de facto o investimento feito. Ao que parece ainda não aconteceu e só a divulgação da baixa das ocorrências registadas pela polícia não é suficiente para dar confiança que a criminalidade esteja efectiva e significativamente a diminuir. Também depois dos extraordinários investimentos feitos no sector da justiça não deixa de causar perplexidade que num julgamento de um caso com notoriedade, porque resultante de acusações graves feitos contra juízes e contra o sistema de justiça, o juiz peça escusa e o processo fique adiado sem data conhecida. A sensação é que, não obstante os meios muitas vezes avultados postos em certos sectores, os resultados estão a ficar muito aquém do esperado como cada vez mais se apercebe na área de educação e formação. Da mesma forma, ninguém fica realmente indiferente quando por exemplo se divulga que houve 24 mortes por negligência médica ou se apercebe da dimensão de bebidas produzidas fora dos parâmetros aceites e da quantidade de medicamentos e produtos alimentícios sem condições para o consumo que são retirados do mercado.
Saltando para outras áreas também não se deixa de ficar perplexo quando depois de 20 anos de vigência do Trust Fund e na hora de assumir os compromissos de resgatar os títulos (TCMF) emitidos desde a constituição do fundo é que se vai operacionalizar uma solução que passa por transferir o dinheiro do Trust Fund para um Fundo Soberano de garantia a investimento privados. Pergunta-se onde pára a visão estratégica nesta e noutras situações para que, quando se age, evitar ficar na posição de praticamente encurralado e muito limitado nas posições negociais como aconteceu no processo da privatização da TACV. Levar as pessoas a recuperar confiança e fazê-las acreditar num futuro melhor é essencial para libertar da vitimização do passado e agarrar o futuro encarando os problemas sem necessidade de os varrer para debaixo da tapete nem os de empurrar com a barriga num ilusionismo que já provou não servir o país.


Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 903 de 20 de Março de 2019.

segunda-feira, março 18, 2019

Corda esticada

Há dias Marcelo Rebelo de Sousa, na resposta à pergunta o que falta a Portugal para sair de cepa torta, disse: faltam consensos de regime em matérias básicas, não há uma atenção dos protagonistas políticos à reforma do Estado e falta capacidade de antecipação e de fortalecimento da sociedade civil. As três dicas do presidente português podiam ter aplicação directa em Cabo Verde.
 No país reina um ambiente de crispação política e não há uma base política comum seja para entendimentos, seja para contraditórios construtivos. Quanto às reformas constata-se que, apesar de promessas repetidas da classe política, a máquina do Estado mantém-se no essencial centralizadora e burocrática e os interesses corporativos devidamente salvaguardados. E em relação à sociedade civil pouco mudou no grau de sua dependência do Estado e na capacidade de autonomamente forçar alterações profundas na forma da condução dos assuntos públicos. O caso último da privatização do negócio internacional da TACV é ilustrativo a esse respeito.
A situação da empresa era por todos conhecida. Foi notório como o arresto do avião em Amsterdão precipitou a derrota eleitoral do partido então no governo. Por outro lado, ninguém desconhecia a sangria que representava para as finanças públicas. Apesar da extrema gravidade do caso TACV (dívida de mais de 100 milhões de dólares e permanente risco orçamental) foi impossível criar entre os principais partidos qualquer base de discussão do futuro da transportadora. O mesmo aconteceu face a outras situações graves designadamente com o programa Casa para Todos bloqueado sob o peso de uma dívida de 200 milhões de dólares e com o Novo Banco em virtual estado de insolvência. Quando veio a seca de 2017 que deixou a nu a vulnerabilidade da população apesar dos muitos milhões que tinham sido investidos no mundo rural também não se conseguiu criar uma base de consenso para equacionar intervenções com vista a minorar a precariedade actual e abrir o caminho para um futuro com prosperidade. Algo similar já tinha acontecido numa outra situação extrema como foi a da erupção vulcânica do Fogo em Dezembro de 2014. Picardias político-partidárias passam a dominar o espaço público, em particular o debate parlamentar, e logo de seguida fica comprometida a eficácia da acção pública junto de quem mais necessita.
O sentimento que se vive hoje no país é que metaforicamente se esticou a corda toda. Não é só a TACV que ultrapassou o limite da sustentabilidade. Os transportes marítimos na sequência de acidentes e afundamentos seguiam o mesmo caminho. A dívida pública subiu para níveis muito superiores a 100% do PIB que deixam o Estado quase sem margem para prosseguir com investimentos públicos indispensáveis. A situação habitacional agravou-se apesar dos milhões gastos no Casa para Todos. A segurança não obstante os enormes investimentos ainda não dá confiança ao movimento livre e despreocupado de cidadãos e estrangeiros em todas as cidades e nos vários pontos do país mesmo considerando indícios recentes de se estar a inflectir a situação da criminalidade. A educação apesar dos investimentos das famílias e do Estado nos três níveis de ensino ficou aquém do esperado na preparação dos jovens para o mercado de trabalho e enquanto factor de competitividade da economia. E os custos crescentes da saúde devido ao aumento da esperança de vida, mudanças no perfil das doenças mais frequentes e investimentos necessários em instalações e equipamentos estão cada vez mais difíceis de serem suportados por uma economia há pouco tempo saído de um ciclo longo de crescimento raso.
Depois da corda esticada seguindo o tipo de políticas enquadradas no modelo de reciclagem da ajuda externa quis-se virar para outros sectores da economia. O facto porém é que o sector privado nacional que poderia trazer dinâmica económica não parece descolar seja por causa de financiamento, seja pelos exagerados custos de factores, pela insensibilidade da administração pública ou por falta de acesso a mercados estruturados. Os investimentos externos no domínio do turismo concentrados nas ilhas do Sal e da Boa Vista por falta de estratégia dos poderes públicos a vários níveis ainda não se mostram capazes de impactar a economia nacional como seria desejável. Mesmo assim são os empreendimentos no domínio do turismo e as unidades industriais criadas pelo capital externo que mais criam empregos e suportam as exportações de bens. Para a elite dirigente distraída pelas lutas partidárias não há consciência clara da realidade de se ter há muito atingido o limite na aplicação de certas políticas e da necessidade de agir para sair da armadilha. Não há o sentimento da urgência do agora como diria o ex-presidente americano Barack Obama.
Por isso é que em qualquer matéria que venha à discussão pública seja a ela a TACV, a problemática dos transportes marítimos, o futuro do Trust Fund, concessão de aeroportos, estratégias para as telecomunicações, para agricultura e pecuária, estratégia para educação e para a política energética cada um traz a sua verdade normalmente de um passado congelado no tempo e sem um pingo de responsabilidade pelas consequências de actos e omissões cometidos. Claro que o diálogo só pode ser o de surdos. No processo o país perde, os cidadãos ficam sem dados fiáveis para compreender o que está em causa e o nível do debate tende a piorar porque cada vez mais distancia-se dos factos para ficar com as “verdades” convenientes de cada um. Prioriza-se a exploração de paixões, a identificação com a cor política e as promessas demagógicas porque distantes da realidade dos recursos disponíveis. Com esta atitude continua-se a esticar a corda mesmo perante resultados decrescentes. Os países que se desenvolveram só o conseguiram ultrapassando o círculo vicioso que impede de facto o país “sair da cepa torta”.
Diz-se que neste mundo cada vez mais centrado em questões identitárias a política tende a imitar cada vez mais o futebol. A postura dos partidos e dos cidadãos assemelha-se à perspectiva clubista que só vê a realidade pelo filtro dos clubes levando a sectarismos diversos, à violência e também a qualquer impossibilidade de se chegar a consensos sobre qualquer matéria não interessando a relevância, urgência ou importância estratégica. Na verdade, exemplos espelhados pelo mundo deixam saber que a posição clubista na política tem sido pior do que no mundo do desporto. Os ataques sectários não poupam nada, nem as instituições, nem os procedimentos democráticos e nem o próprio Estado de Direito, e levam à degradação gradual da democracia. No futebol pelo menos procura-se garantir que as regras sejam cumpridas, os árbitros respeitados e a integridade dos jogadores assegurada. Consegue-se que os jogos cheguem ao fim com resultado claro, que se realizem campeonatos nacionais sem disputas intermináveis e que de quatro em quatro anos o futebol seja o espectáculo planetário das Copas do Mundo. A democracia e o Estado de Direito com a sua importância central para a o exercício da Liberdade deviam merecer o mesmo. Substituindo narrativas de ressentimento que estão na base dessas identidades sectárias por narrativas de possibilidade não se estaria nunca em posição de ver a corda esticada e por isso limitado o horizonte do possível.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 902 de 13 de Março de 2019.

segunda-feira, março 11, 2019

TACV e a política dos transportes aéreos

No passado dia 28 de Fevereiro finalmente se concretizou a venda de 51% dos TACV a um parceiro externo, a Loftleider Cabo Verde, subsidiária da Loftleider Icelandic pertencente ao Grupo Icelandair. Terminava assim um processo que se iniciara em Agosto de 2017 com assinatura de um contrato de gestão com a Loftleider Icelandic que deveria ter a duração de um ano e criar as condições para a privatização da empresa.
.Era desde o início assumido que a Loftleider poderia ser o parceiro estratégico que o país precisava para construir um hub no Atlântico Médio capaz de aproveitar o fluxo de passageiros entre a Europa e América do Sul e entre a África e a América do Norte. Como parte do grupo Icelandair que tem uma história de sucesso na criação de um hub no Atlântico Norte, a disponibilidade e o interesse da Loftleider em assumir a gestão da TACV foi de grande importância. Emprestava credibilidade à ideia de um hub na Ilha do Sal que poderia capitalizar com ganhos os activos da empresa e do país designadamente os recursos humanos, certificados ETOPS e localização geográfica que de outro modo poderiam ser desbaratados liquidando a empresa como propunha o Banco Mundial e outras instituições internacionais. A assinatura do contrato de compra e venda no valor de 1,3 milhões de euros acompanhada de uma capitalização no valor de 6 milhões de dólares pelo parceiro estratégico pode ser visto como um sinal que depois de mais de um ano de teste do potencial acredita mesmo no sucesso um hub aéreo na Ilha do Sal. E essa é a boa notícia.
É uma boa notícia porque todo o investimento feito pelo país na TACV, nos aeroportos, na regulação aeronáutica e fundamentalmente nos recursos humanos poderá ser aproveitado para gerar riqueza numa escala nunca vista porque já não mais limitado ao tráfego de e para Cabo Verde e perfeitamente apto para competir na prestação de serviços intercontinentais de passageiros. É uma boa notícia também pelo efeito de arrastamento que terá sobre empresas fornecedoras de bens e serviços à aviação particularmente se se conseguir conjugar o hub com stopover. É ainda uma boa notícia porque aumenta a conectividade de Cabo Verde contribuindo extraordinariamente para acabar com o relativo isolamento em relação a regiões dinâmicas do globo com vantagens directas para o turismo, aproximação de mercados e atracção de potenciais investidores. Naturalmente que como tudo no mundo de negócios há riscos como a própria Loftleider reconhece quando cria uma subsidiária para os representar no negócio e evitar o contágio da empresa-mãe na eventualidade das coisas não correrem bem.Entrementes nos próximos cinco anos os riscos vão ser partilhados pois só depois desse prazo é que a Loftleider Cabo Verde poderá vender as suas acções reservando o Estado de Cabo Verde o direito de preferência de as comprar. Mas certamente que será do interesse das partes e muito particularmente de todos no país que o empreendimento tenha sucesso. O ruído causado pela disputa partidária poderá sugerir que haja desejos em contrário, mas a verdade é que sucesso significa mais empregos, mais rendimentos e mais certeza no futuro. Toda a gente tem interesse que assim seja. Envereda-se pela má política quando uns e outros confundem deliberadamente diferença de opiniões e de políticas com falta de engajamento com os interesses do país.
Privatizações são objecto de discordância em todo o sítio onde são intentadas. Quando iniciadas, há sempre quem discorde do momento ou da oportunidade. Quando vistas em retrospectiva, mesmo os seus promotores acham que podiam ser melhor conduzidas. O facto é que no momento de decisão ninguém tem a informação completa. Trabalha-se com os dados disponíveis e num contexto específico que exige muitas vezes acção decisiva, tempestiva e encadeada para se conseguir os objectivos de política pretendidos. Razões para privatizar são múltiplas designadamente para diminuir o risco orçamental, arrecadar despesas extraordinárias, promover o sector privado, atrair investimento externo que traz capital, know-how e mercados, desenvolver parcerias estratégicas para a modernização do país e inserção da economia nacional na economia global. Privatizações em grande escala acontecem quando há um esforço de diminuição do Estado na economia como aconteceu na Inglaterra de Margaret Thatcher ou em processos de transição de economias estatizadas para economia de mercado conduzidos na Europa de Leste e na Rússia depois da queda do comunismo. Em Cabo Verde também foram privatizadas várias empresas na década de noventa no quadro de construção de uma economia de mercado e de reformas estruturais que aumentaram o potencial do país permitindo-lhe crescer a uma média superior a 7% entre 1995 e 2008. Apesar de globalmente positivas as privatizações continuaram a ser o tema fracturante preferido para se fazer política de divisão, com “patriotas” de um lado e “antipatriotas” do outro.
As tentativas de privatização da TACV iniciadas em 2000 no governo do MpD e com seguimento posterior nos governos do PAICV a partir de 2002 goraram-se em parte por causa de resistências de vários quadrantes na sociedade e no Estado. Dados vindos a público na sequência de audiências feitas em sede de comissão parlamentar de inquérito deixaram perceber as interferências governativas, as deficiências de gestão e as fragilidades dos modelos de negócios adoptados que cumulativamente conduziram a empresa à situação de falência com dívidas à volta de 100 milhões de dólares. Entre liquidar a empresa ou mantê-la nos mesmos moldes, uma opção que se tinha tornado impossível devido à dívida acumulada e ao grande risco orçamental que entretanto passou a representar, o governo decidiu explorar um novo modelo de negócios baseado na construção de hub na Ilha do Sal. Aparentemente, de lado ficaram as pretensões de desenvolver as outras unidades de negócio identificadas. A CV Handling já tinha sido entregue à ASA em 2015, os transportes aéreos domésticos e regionais foram descontinuados a partir de Maio de 2017 e a unidade de manutenção ressentia-se da perda de aviões próprios da companhia. Em todo este processo o governo teve objecção do Banco Mundial materializada na suspensão desde 2016 da ajuda orçamental mas persistiu apesar dos constrangimentos ao tesouro público. A aposta já parece dar frutos mas a questão que se coloca agora é que resposta dar aos sectores que foram negativamente afectados.
O resgate da TACV poderá ter sido iniciado mas onde param as políticas de transporte que procuram, por um lado, melhorar a ligação entre as ilhas com segurança, frequência e preço ajustado para incentivar a circulação nas diferentes ilhas do país, a exemplo do que se passa nos outros arquipélagos da Macaronésia. Claramente que a via não pode ser a de empresas a praticarem preços máximos sem sinais evidente de uma política comercial atractiva. A ligação regional na aparente impossibilidade da Binter realizá-la como estava prevista inicialmente foi tomada pelos concorrentes na região. Os voos para Lisboa objecto de reclamação de passageiros principalmente em S. Vicente mas também na Cidade da Praia e noutras ilhas sofrem com a posição quase monopolística das transportadoras. As vias para solucionar isso tudo terão que ser encontradas no âmbito de uma política compreensiva de transportes que não se deixe ficar pela lógica pura e dura do mercado. Pequenos países e países arquipélagos têm imperfeições e falhas de mercado que não se resolvem com o laissez-faire. Há que encontrar o meio termo entre o excesso e a omissão do Estado para que nas ilhas e no país as reformas surtam o efeito desejado.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 901 de 05 de Março de 2019.

segunda-feira, março 04, 2019

Caboverdianidade sem complexos

Na semana passada, 21 de Fevereiro, celebrou-se mais um Dia da Língua Materna. Como de há muito acontece nessa data foi mais uma oportunidade para as opiniões se dividirem à volta do crioulo. Há quem insista na urgente oficialização do crioulo e há outros que perguntam qual é a pressa. O Presidente da República aconselha “a definição de regras claras para a sua escrita” e que isso seja feito “num espaço de tempo razoável”.
 O Governo através do Ministério da Cultura em comunicado diz que quer “prosseguir com a sua oficialização através da Constituição da República e por fim avançar com a padronização”. Acrescenta ainda que a “padronização é moroso e pode levar duas ou três gerações para que ela passe a ser assumida naturalmente pela sociedade”. A Constituição da República no nº2 do artigo 9º parece apontar num outro sentido ao determinar que “o Estado deve promover as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa”. Supõe-se que já havendo reconhecimento do crioulo no texto constitucional trata-se é de dar o passo seguinte de também ser língua escrita o que só é possível depois da padronização. Destes aparentes desencontros em como proceder não é de estranhar que hajam dúvidas quanto às prioridades, que surjam agendas dos mais apressados para acelerar o processo e que se ouçam vozes a aconselhar prudência para que a questão não seja factor de divisão quando, como bem lembra o PR na sua mensagem, o crioulo é “um dos principais traços de união entre os caboverdianos”.
A enfase no discurso repetido todos os anos a propósito do Dia da Língua Materna tem sido posta na oficialização do crioulo como acto indispensável para a dignificação da língua. E aí é que começam as divergências, porque vê-se na relação do cabo-verdiano com a sua língua que ela não precisa ser oficializada para ter dignidade. Aliás, a relação que há séculos todos os cabo-verdianos independentemente da sua origem, posição socioeconómica e nível de educação têm com a sua língua materna, visível na forma como é expressa em todos os momentos da sua vida e em particular na sua música, não deixa entender que o seu uso é acompanhado de qualquer sentimento de inferioridade. Mesmo oficialmente ninguém se sente diminuído porque recorre ao crioulo para se comunicar no parlamento, ou enquanto membro do governo ou na qualidade de presidente da república, nem tão pouco quando trata com a administração pública e depõe nos tribunais. A diferença com a língua portuguesa é que a sua escrita ainda não está padronizada para que designadamente os documentos da administração pública e a comunicação oficial do Estado possam ser escritos nas duas línguas. Trazer a questão da dignidade quando não há uma relação de opressão e de subjugação – Cabo Verde é independente há mais de 43 anos – só contribui para pôr as duas línguas em rota de colisão. No processo criam-se anticorpos na aprendizagem do português com evidentes prejuízos para o esforço, essencial para o exercício pleno da cidadania, de tornar os caboverdianos fluentes nas duas línguas.
Reduzir problemas complexos à questão de dignidade é sempre útil para aqueles cujo objectivo central é reforçar a identidade das vítimas versus os opressores ou simplesmente a do “nós”contra os “outros”. Na época actual em que proliferam políticas identitárias e em que questões fracturantes trazem vantagens diversas a quem se apresenta como resistência face à opressão de toda espécie, seja real ou virtual, a tentação é grande para se enveredar por esse caminho. Quantas carreiras políticas e também noutras áreas não foram assim fabricadas supostamente para terminar a opressão, para dar força à resistência ou para restituir a dignidade. A verdade é que na generalidade dos casos o problema não é de facto resolvido mas as divisões na sociedade persistem e tendem a tornar-se extremas. As divisões e os desencontros por causa do crioulo não são de hoje e tudo leva a crer que vão se repetir e poderão aprofundar-se considerando os ventos de feição que hoje sopram em todo o mundo. Os seus efeitos em particular na aprendizagem da língua portuguesa e na qualidade do ensino em geral não deixarão de se fazer sentir. A exemplo de outras sociedades que se deixaram apanhar nesse tipo de armadilhas, o mais provável é que aumente a debandada dos com maiores posses para colocar os filhos em escolas privadas.
Cabo Verde não devia estar a confrontar-se com certo tipo de divisões culturais com que outras nações se deparam. A consciência da caboverdianidade vem de longe e é muito anterior à independência. É evidenciada na língua, na música, na literatura e em várias outras manifestações de cultura, mas opções várias de política terão levado a que não se aprofundasse o conhecimento do processo da emergência dessa consciência nacional. O estudo do passado ficou demasiado sujeito a conveniências várias. Curioso que dias atrás por ocasião do 70º aniversário do desastre da Assistência o historiador António Correia e Silva tenha chamado a atenção para o aparente esquecimento das fomes periódicas com milhares de mortes que assolaram o arquipélago durante séculos até a última fome de 1947. Parece que o país esteve demasiado tempo a entreter-se na consolidação de uma herança escravocrata enquanto as fomes que a sua literatura narra nas obras de Manuel Lopes, Baltasar Lopes, Luís Romano, Teixeira de Sousa e de muitos outros escritores e poetas ficavam num segundo plano. Talvez porque nas fomes as causas eram fundamentalmente as secas enquanto falar da escravatura permitia mais facilmente desenvolver uma cultura de vitimização mais conducente com a “escolha do destino africano” feito no acto de proclamação da independência de Cabo Verde.
Depois dessa “escolha”, o esforço de reafricanização dos espíritos que se seguiu só podia levar a divisões como a referida à volta do crioulo assim como ao aparecimento de outras linhas de fractura à medida que a história dos cinco séculos de existência era submetida a análises de conveniência e a procura de conformidade com a ideologia desses tempos e a racionalidades de poder. Para se distanciar o crioulo do português e fazer dele uma língua de resistência tinha-se que se deixar a escrita etimológica usado nos trabalhos de Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, Ovídio Martins, Luís Romano e outros para adoptar o ALUPEC, como se a base lexical do crioulo não fosse quase toda ela de origem portuguesa. A crise identitária que se abriu com ofensivas em várias outras áreas para além da linguística deixaram feridas na sociedade que se podem descortinar nas disputas entre ilhas, em certos discursos políticos e na atribuição de valor ao património cultural prejudicando a coesão do país. Infelizmente, o processo erosivo continua porque as instituições do Estado em geral com destaque para o sistema educativo dão seguimento ao trabalho de outrora. O Estado democrático dá sinais de se ter mantido refém do passado e por isso as divisões na sociedade e a crise identitária aprofundam-se, enfraquecendo a vontade da nação, dificultando uma visão do todo nacional e deixando espaço para que lógicas identitárias das mais nocivas possam desenvolver. Há que reverter a situação e fazer da afirmação da caboverdianidade sem complexos a chave para um futuro de desenvolvimento.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 900 de 27 de Fevereiro de 2019.

segunda-feira, fevereiro 25, 2019

À procura de soluções que funcionem

Os transportes marítimos em Cabo Verde tiveram um novo desenvolvimento na semana passada. O governo assinou o contrato de concessão do serviço público com a empresa portuguesa Transinsular vencedora do concurso público lançado há um ano atrás.
 A concessão vai ser gerida pela nova empresa Cabo Verde Inter-Ilhas na qual a Transinsular vai ter 51% do capital social e nove armadores nacionais os restantes 49%. No quadro do acordo assinado, da actual frota o que estiver apto será integrado na nova empresa e os restantes navios serão vendidos ou abatidos. Quanto aos trabalhadores acontecerá algo análogo, sendo indemnizados com possível contribuição do Estado aqueles que não se ajustarem à nova oferta de trabalho. Com a mudança deixa-se de ter um sector marítimo tradicionalmente dinamizado por vários operadores privados para se ter essencialmente um grande operador cobrindo todo o arquipélago. No processo, alterações no que tem sido a economia do sistema, a sua localização, os seus agentes e fornecedores e as suas exigências em mão-de-obra vão eventualmente acabar por se verificar. Espera-se que já se tenha previsto o impacto delas e planeadas as vias para as amortecer.
Há décadas que os sucessivos governos andam à busca de soluções de transportes marítimos que permitissem ao país minimizar a sua condição arquipelágica e unificar o seu mercado interno. Soluções estatizantes, mistas ou só com operadores privados não resultaram em fornecer o serviço desejado ao nível de segurança, previsibilidade e frequência. A única rota, a de S. Vicente/Santo Antão, que sempre se conseguiu manter por si própria é a excepção que revela o que falta às outras. Não há carga nem número de passageiros suficientes para viabilizar a circulação entre todas as ilhas na frequência desejada. Vários factores contribuem para que seja assim, designadamente o facto de o país ter uma pequena população, o mar entre ilhas ter caracter oceânico e não encorajar viagens, a estrutura produtiva ser diminuta e os bens transaccionáveis perecíveis e em pequena quantidade. Para colmatar as insuficiências não faltaram intervenções do Estado seja de forma directa com embarcações, seja de forma indirecta com subsídios dados a privados para cobrir rotas com as de Fogo/Brava, Santiago/Maio e Santiago/Boa Vista. Segundo dados de um estudo do Banco Mundial, os subsídios chegaram a atingir valores de cerca de cem mil contos em 2010, não incluindo o subsídio concedido à Fast Ferry.
A verdade é que toda esta intervenção do Estado e a iniciativa e perseverança dos operadores privados têm-se mostrado incapaz de manter um serviço sustentável de transportes marítimos. A chamada à realidade aconteceu de forma dolorosa na sequência de desastres que envolveram encalhes sucessivos de navios, desaparecimentos inexplicáveis e afundamentos que culminaram na morte de passageiros e tripulantes resultantes da perda do navio Vicente. Era evidente que o sector dificilmente conseguia suportar-se respeitando o exigido pelos regulamentos em termos físicos, de recursos humanos e de segurança. Não ajudava em nada que os armadores além de se depararem com uma economia sem grande dinâmica de crescimento ainda tinham de lidar com ineficiências nos portos e taxas portuárias excessivas. Apesar das intenções manifestadas em unificar o mercado, as medidas políticas governamentais dirigidas ao sector não tinham a coerência nem se articulavam de forma a garantir a sua sustentabilidade e muito menos o investimento na sua renovação e modernização.
Foram então opções governamentais a vários níveis que na prática impediram que uma actividade económica bastante enraizada na história e uma clara vocação do país não pudesse ser potenciada e transformada numa fonte de riqueza nacional. A essa falha junta-se o subaproveitamento dos recursos da pesca para relembrar o quanto se perdeu na aposta num modelo de desenvolvimento que reforçou a dependência e o virar para dentro. Também o quanto se perdeu em não incentivar a iniciativa privada e em não abrir o país para investimento traduzido em capitais, know-how e mercados que lhe permitisse ultrapassar os constrangimentos de falta de escala, de escassez de recursos naturais e de distância dos grandes mercados. O resultado é mesmo quando chegou finalmente o turismo, movimentando anualmente centenas de milhares de pessoas, a estrutura económica do país nos vários sectores não tinha como aproveitar devidamente o que essa procura massiva de produtos e serviços podia proporcionar. Não havia estrutura produtiva adequada, nem canais de distribuição, standards de qualidade, nem transportes adequados para a servir com fiabilidade e de forma competitiva.
Agora o governo apresenta uma solução compreensiva para a questão dos transportes marítimos na espectativa que o resto irá fazer a sua parte na engrenagem que faz mover a economia. A solução encontrada tem custos e não despicientes para quem estava no sector. A questão é saber se de facto com os transportes resolvidos irá verificar-se um aumento significativo da produção de bens dirigidos ao global do mercado interno e ao mercado do turismo que justifique esses custos actuais e também os futuros se se tiver de continuar os subsídios por falta de suficiente carga e passageiros. O que aconteceu no sector dos transportes marítimos está-se a verificar noutros ou futuramente vai se fazer sentir em mais outros. É o que dá insistir em políticas que permitem a alguns a extracção de valor a seu favor, que facilitam a reprodução de um ambiente destrutivo de valor e não incentivam na economia a criação de valor. Todos ficam mais pobres. E soluções tardias, por si sós, podem não trazer a salvação esperada.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 899 de 20 de Fevereiro de 2019.