Quase trinta anos depois de mudança de regime
político, Cabo Verde ainda não se vê como um “país normal”. Mas
normalidade no sentido de pluralismo, democracia e sociedade aberta era o
que realmente todos mostraram querer com o seu voto no dia 13 de
Janeiro de 1991 que garantiu a maioria qualificada para se aprovar uma
Constituição liberal e democrática.
Com
esse gesto as pessoas quiseram exprimir que não mais estavam dispostas a
aceitar um pensamento único. Não mais queriam ser tratados como
cidadãos de segunda sujeitos ao governo de um grupo dos melhores filhos e
deixados indefesos perante a discricionariedade e arbitrariedade das
autoridades. E não mais dispunham-se a acatar um regime que coarctava a
liberdade, a iniciativa e o espírito crítico. Infelizmente a realidade
actual não corresponde completamente ao sonho de então e há mesmo o
perigo de inversão da marcha em certos domínios.É verdade que avanços extraordinários foram feitos na construção da normalidade desejada nos anos seguintes de construção da democracia. Mas também é facto que símbolos, ritos e personagens sobreviventes do regime antigo conseguiram insinuar-se no regime democrático, concomitantemente fazendo ressurgir com uma nova vitalidade a tentação de excluir pensamento outro, de se enaltecer e de servir a si próprio e de dobrar a Lei e as instituições ao seu interesse e conveniência. Antes, quando claramente constituía o núcleo essencial da ideologia do regime, procurava legitimar-se suportando-se no cultivo da gratidão pelo sucesso do processo de independência. Hoje, quando subtilmente impregna o Estado democrático procura justificar-se em exclusão de qualquer outra compreensão do percurso da Nação exigindo respeito pela história que só uns autorizados podem escrever e que obrigatoriamente deve ser passada às novas gerações em todas as escolas do país.
Se dúvida houvesse quanto a isso, a reacção excessiva e estrambólica de pessoas e entidades a um post na página do Facebook do deputado Emanuel Barbosa datado de 29 de Abril (opinando no essencial que por Amilcar Cabral não ser uma figura do Estado, “não se mostra aceitável que as suas fotos estejam afixadas em estabelecimento do Estado”) foi bem clara: o país tem tabus, a Constituição e as leis não se aplicam a todos e há que olhar para o lado antes de exercer o direito à liberdade de expressão. A questão central, levantada pelo deputado, se nos organismos públicos só deve estar a imagem do presidente da república porque constitucionalmente é o órgão de soberania que representa interna e externamente a república e é o garante da unidade do Estado, foi completamente ignorada. Em sentido contrário já muito visível ficou o entendimento de pessoas em certos sectores de que há símbolos nacionais outros que não os constantes do artigo 8º da Constituição e que as leis devem dobrar-se para os acomodar. Caricato no imbróglio foi a liderança do MpD através do secretário-geral demarcar-se da opinião do deputado do seu partido sobre uma figura política central ao legado histórico do seu principal adversário político, uma centralidade que o PAICV não se farta de reivindicar.
Viver num país normal onde se privilegia a liberdade pessoal, se preza a igualdade dos indivíduos e a lei se aplica a todos sem distinção pode para alguns não ser excitante como pelo menos inicialmente parece participar em alguma revolução bolivariana, seguir algum Comandante en Jefe ou extasiar-se perante os ritos patrióticos de multidões como na Coreia do Norte. Mas como venezuelanos, cubanos e coreanos e muitos outros noutros países e noutras eras podem testemunhar a excitação, enquanto durar, consegue-se à custa da perda de dignidade, de autonomia pessoal e de esperança num futuro de prosperidade. O culto de personalidade que é comum a todos esses regimes é a verdade única oficialmente aceite que faz do quotidiano um mundo de mentiras repetidas mil vezes e que precipita e atira as pessoas e a sociedade para o atraso porque elimina-se o espírito crítico, alimenta-se o conformismo, substitui-se a razão pelo sentimento e apela-se a paixões irracionais que criam a ilusão de que tudo é possível e que nada deve ser colocado no caminho da realização do objectivo traçado. Parafraseando Churchill sobre a democracia pode-se dizer que a democracia é o menos excitante dos regimes político, mas é o que um país normal faz que justamente deixa mais espaço para a criatividade e inovação, cria as condições para a produção sustentada de riqueza e abre caminho seguro para a inclusão.
O progressivo avanço simbólico de Amílcar Cabral na vida pública de Cabo Verde democrático não podia ser feito sem custos. A sua figura histórica é indissociável do PAIGC, o partido que liderou a luta de libertação na Guiné e esteve na origem de um regime de partido único na Guiné e outro em Cabo Verde. Como líder e teórico revolucionário esteve na origem da ideologia adoptada nos dois regimes de carácter totalitário. É evidente que forçar o reconhecimento do seu percurso político num contexto democrático de valores situados nos antípodas dessa ideologia cria tensões profundas que estão a ser resolvidas com mais esforço de indoutrinação nas escolas, com mais agressividade na invocação do seu pensamento em cerimónias públicas e com maior intransigência em discutir por exemplo se a sua estátua deveria estar numa rotunda como acontece em Bissau ou em repartições públicas onde legalmente nem o primeiro-ministro está e só é permitida a imagem do presidente da república, como acontece aliás em todas as democracias.
O choque contínuo daí resultante abre caminho para maior intolerância, para o estreitamento do espaço deixado ao espírito crítico e para mais crispação política visto que o PAICV proclama-se partido de Cabral. Contribui também para um esforço redobrado de indoutrinação das crianças algo directamente proibido pela Constituição que impede que o Estado programe a educação e o ensino segundo directrizes várias entre as quais políticas e ideológicas (artigo 50º nº 2 c) da CRCV). A violência verbal que se seguiu ao post no Facebook do deputado Barbosa ilustra bem o ponto em que já se chegou nesta deriva cujo imediato efeito é coarctar as liberdades. Pode complicar ainda mais a situação se na luta entre os partidos pelo eleitorado jovem todos se renderem a uma posição acrítica da forma como historicamente deve ser visto A. Cabral, como já vem acontecendo. Ninguém porém ganhará com isso. A Venezuela do comandante Chávez e agora de Maduro é o exemplo dramático do que não é um país normal.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 910 de 08 de Maio de 2019.