Um dos factos marcantes do congresso do PAICV que
decorreu no fim-de-semana passado foi a alteração dos estatutos com
vista ao reforço do controlo do grupo parlamentar e dos seus deputados.
Nos novos estatutos pretende-se que os candidatos do PAICV às eleições assumam “por escrito, o compromisso de honra de colocar o seu cargo à disposição caso recusem submeter à disciplina de voto em matérias consideradas essenciais ou objecto de orientação expressa da Comissão Política”.
Normalmente nos partidos há exigência de disciplina de voto nos
processos de aprovação do Orçamento do Estado ou na aprovação de moções
de confiança ou de censura que, conforme o desfecho, podem levar à
demissão do governo e mesmo à dissolução do parlamento. Noutras
situações a vontade política do grupo parlamentar é construída nas
jornadas e não simplesmente imposta pelo líder do partido ou por
determinação da comissão política. Em geral o recurso a medidas
administrativas coercivas para manter a autoridade só acontece em
situações de fragilidade dos líderes. No caso presente, pelo contrário,
parece mais uma forma ostensiva de mostrar “quem manda”,
em linha com o que se passa nesta era de avanço do populismo em que nos
partidos e à frente de regimes democráticos chefes estão a substituir
líderes.
E é assim porque na realidade o partido não tem como forçar o deputado a colocar o cargo à disposição e a deixar o parlamento. Os deputados da nação e os eleitos municipais são eleitos directamente pelo povo. O facto de o partido constitucionalmente poder propor candidatos não o faz dono dos mandatos e capaz de obrigar o deputado a renunciar ao mandato. Obviamente que qualquer documento escrito nesse sentido pelo candidato que formalize tal obrigação para o deputado não tem absolutamente qualquer valor real. A Constituição e o regimento asseguram que assim seja. Os deputados no parlamento podem organizar-se por grupos parlamentares representativos dos partidos ou escolher serem deputados independentes. Só estão proibidos de mudar de partido para não alterar a configuração política da Assembleia Nacional saída das últimas eleições. Enquanto deputados não inscritos ou independentes mantêm essencialmente os mesmos poderes dos restantes colegas incluindo o poder de apresentar projectos de revisão constitucional. Quanto à renúncia só se verifica mediante declaração apresentada pessoalmente ao presidente da Assembleia Nacional pelo deputado ou assinatura notarialmente reconhecida e depois de anunciada no Plenário pela Mesa. Dificilmente poderá ser resultado de uma carta/compromisso assinado previamente.
Não sendo fácil nem prática a medida de coarctar os deputados pelas razões apontadas há que perguntar porquê assumi-la frontalmente. É evidente que se quis dar uma resposta ao chamado Grupo de Reflexão exagerando os efeitos desestabilizadores no grupo parlamentar produzidos por intervenções ou sentido de voto de alguns deputados enquanto se escondia a incapacidade ou indisponibilidade em produzir diálogo produtivo. A intenção principal terá sido de demonstrar maior controlo do grupo parlamentar não para fazer funcionar o parlamento com maior eficiência no quadro do sistema político e prestigiar a instituição aos olhos do público, mas sim para deixar claro a determinação em fazer da actuação no parlamento um forte instrumento de luta pelo poder. Como se pode ver pela actuação de outros actores políticos tanto em Cabo Verde como em outras democracias “chefes ou aspirantes a chefes” não têm grandes problemas em sacrificar o parlamento, a classe política e os processos democráticos desde que a sua ambição pessoal e desejo de poder se realizem.
A grande crítica à democracia representativa tem sido a falta de ligação dos deputados aos seus eleitores, a submissão dos políticos aos respectivos partidos e a defesa de interesses particulares em detrimento do interesse público. Curiosamente os políticos que se apresentam como mais sensíveis a essa crítica e que ruidosamente se propõem a mudar a situação são os que mais a agravam. Dizem que são por políticas de proximidade, clamam por renovação das hostes partidárias e acusam os outros de corrupção. Para desalojar elites existentes introduzem formas inovadoras de selecção de dirigentes partidários e deputados, aparentemente mais democráticas como sondagens, primárias, quotas e avançam com alterações estatutárias como incompatibilidades, compromissos de honra e alargamento do universos de votantes para supostamente mudar hábitos arreigados de prática política e trazer mais transparência ao processo político. No fim do dia constata-se que ficam à frente de partidos ou de países onde a sua a voz e vontade são únicas, o debate político é praticamente nulo no meio partidário e nota-se mais dependência da classe política em relação ao Estado.
É por não haver uma resposta séria e honesta às questões levantadas pelos cidadãos que a c
rise da democracia se tem agravado e que em consequência se vem verificando a ascensão de movimentos populistas nos extremos do espectro político. De facto, ninguém ganha em tentar aproveitar o descontentamento em relação ao funcionamento das instituições, ou em potenciar o cinismo em relação à política ou em alimentar a desconfiança em relação às elites e todas as entidades de intermediação e em particular os mídias. Os partidos tradicionais que nas democracias seguiram por essa via perderam terreno com o eleitorado e progressivamente deixaram de ser vistos como alternativa da governação. Entrementes os muitos desiludidos com a democracia foram refugiar-se no campo de políticas identitárias e tribais que nada mais podem trazer senão violência e atraso.
Em Cabo Verde o processo está talvez na sua fase inicial, mas já se nota que o desgaste das instituições tem sido acompanhado de algum desvio no funcionamento e na postura dos órgãos de soberania e seus titulares. Também há a percepção de que reformas essenciais em tempo útil não estão a acontecer o que não augura algo positivo quanto mais se aproximam as eleições e o eleitorado precisará ser confrontado com alternativas reais em matéria de política para o desenvolvimento do país. Se a convenção do MpD em Março afinar pelo mesmo diapasão do congresso do PAICV de Fevereiro e simplesmente revolver o caldeirão dos descontentamentos para interesse de uns, dificilmente o país ficará em posição de poder perspectivar o futuro sem que crispação, tribalismos e visão curta ponham em risco a liberdade, a democracia e a abertura económica que conseguiu até agora construir.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 949 de 5 de Fevereiro de 2020.
E é assim porque na realidade o partido não tem como forçar o deputado a colocar o cargo à disposição e a deixar o parlamento. Os deputados da nação e os eleitos municipais são eleitos directamente pelo povo. O facto de o partido constitucionalmente poder propor candidatos não o faz dono dos mandatos e capaz de obrigar o deputado a renunciar ao mandato. Obviamente que qualquer documento escrito nesse sentido pelo candidato que formalize tal obrigação para o deputado não tem absolutamente qualquer valor real. A Constituição e o regimento asseguram que assim seja. Os deputados no parlamento podem organizar-se por grupos parlamentares representativos dos partidos ou escolher serem deputados independentes. Só estão proibidos de mudar de partido para não alterar a configuração política da Assembleia Nacional saída das últimas eleições. Enquanto deputados não inscritos ou independentes mantêm essencialmente os mesmos poderes dos restantes colegas incluindo o poder de apresentar projectos de revisão constitucional. Quanto à renúncia só se verifica mediante declaração apresentada pessoalmente ao presidente da Assembleia Nacional pelo deputado ou assinatura notarialmente reconhecida e depois de anunciada no Plenário pela Mesa. Dificilmente poderá ser resultado de uma carta/compromisso assinado previamente.
Não sendo fácil nem prática a medida de coarctar os deputados pelas razões apontadas há que perguntar porquê assumi-la frontalmente. É evidente que se quis dar uma resposta ao chamado Grupo de Reflexão exagerando os efeitos desestabilizadores no grupo parlamentar produzidos por intervenções ou sentido de voto de alguns deputados enquanto se escondia a incapacidade ou indisponibilidade em produzir diálogo produtivo. A intenção principal terá sido de demonstrar maior controlo do grupo parlamentar não para fazer funcionar o parlamento com maior eficiência no quadro do sistema político e prestigiar a instituição aos olhos do público, mas sim para deixar claro a determinação em fazer da actuação no parlamento um forte instrumento de luta pelo poder. Como se pode ver pela actuação de outros actores políticos tanto em Cabo Verde como em outras democracias “chefes ou aspirantes a chefes” não têm grandes problemas em sacrificar o parlamento, a classe política e os processos democráticos desde que a sua ambição pessoal e desejo de poder se realizem.
A grande crítica à democracia representativa tem sido a falta de ligação dos deputados aos seus eleitores, a submissão dos políticos aos respectivos partidos e a defesa de interesses particulares em detrimento do interesse público. Curiosamente os políticos que se apresentam como mais sensíveis a essa crítica e que ruidosamente se propõem a mudar a situação são os que mais a agravam. Dizem que são por políticas de proximidade, clamam por renovação das hostes partidárias e acusam os outros de corrupção. Para desalojar elites existentes introduzem formas inovadoras de selecção de dirigentes partidários e deputados, aparentemente mais democráticas como sondagens, primárias, quotas e avançam com alterações estatutárias como incompatibilidades, compromissos de honra e alargamento do universos de votantes para supostamente mudar hábitos arreigados de prática política e trazer mais transparência ao processo político. No fim do dia constata-se que ficam à frente de partidos ou de países onde a sua a voz e vontade são únicas, o debate político é praticamente nulo no meio partidário e nota-se mais dependência da classe política em relação ao Estado.
É por não haver uma resposta séria e honesta às questões levantadas pelos cidadãos que a c
rise da democracia se tem agravado e que em consequência se vem verificando a ascensão de movimentos populistas nos extremos do espectro político. De facto, ninguém ganha em tentar aproveitar o descontentamento em relação ao funcionamento das instituições, ou em potenciar o cinismo em relação à política ou em alimentar a desconfiança em relação às elites e todas as entidades de intermediação e em particular os mídias. Os partidos tradicionais que nas democracias seguiram por essa via perderam terreno com o eleitorado e progressivamente deixaram de ser vistos como alternativa da governação. Entrementes os muitos desiludidos com a democracia foram refugiar-se no campo de políticas identitárias e tribais que nada mais podem trazer senão violência e atraso.
Em Cabo Verde o processo está talvez na sua fase inicial, mas já se nota que o desgaste das instituições tem sido acompanhado de algum desvio no funcionamento e na postura dos órgãos de soberania e seus titulares. Também há a percepção de que reformas essenciais em tempo útil não estão a acontecer o que não augura algo positivo quanto mais se aproximam as eleições e o eleitorado precisará ser confrontado com alternativas reais em matéria de política para o desenvolvimento do país. Se a convenção do MpD em Março afinar pelo mesmo diapasão do congresso do PAICV de Fevereiro e simplesmente revolver o caldeirão dos descontentamentos para interesse de uns, dificilmente o país ficará em posição de poder perspectivar o futuro sem que crispação, tribalismos e visão curta ponham em risco a liberdade, a democracia e a abertura económica que conseguiu até agora construir.
Humberto Cardoso