Nestes dias a atenção do mundo está centrada no
coronavírus (Covid-19) e na forma como se alastra por vários países e
continentes e ameaça transformar-se numa pandemia com consequências
catastróficas globais a vários níveis. Aparentemente trata-se de mais um
exemplo daquilo que o autor e professor de finanças Nassim Nicholas
Taleb chamou de “cisne negro”, ou seja, um fenómeno raro e imprevisível
cujo impacto é incerto e possivelmente de grande gravidade. No seu livro
apontou o 11 de Setembro de 2001 e a crise financeira de 2008 como dois
cisnes negros.
Tudo leva a crer que o
surgimento do coronavírus e o impacto que já teve e presumivelmente vai
ter nos próximos tempos o qualifica como mais um cisne negro. Milhões de
pessoas na China estão há semanas de quarentena, cidades na Itália
foram isoladas, eventos culturais e desportivos foram cancelados,
ligações aéreas para os focos da epidemia têm sentido limitadas e
cadeias globais de valor sofreram perturbações graves com fecho de
fábricas, incerteza nas entregas e demora na prestação de serviços.
Previsões de instituições internacionais como a OCDE já baixaram para
metade as taxas de crescimento da economia mundial no ano 2020.
Até bem pouco tempo os efeitos da epidemia tinham-se concentrado na China onde o número de pessoas infectadas se situava em mais de quarenta mil e o número de mortos já tinha atingido os três mil. Neste preciso momento vive-se uma outra fase em que focos da doença já foram identificadas em 60 países com tendência para aumentar e provavelmente atingir países do continente africano e sul-americano que até agora praticamente têm sido poupados. Apesar do Covid-19 não ter revelado o nível de letalidade que outros vírus da mesma estirpe – SARS que apareceu em 2003 e MERS, em 2012 – dificilmente se poderá prever o efeito que terá em países com estruturas de saúde deficientes e capacidade de resposta limitada.
Nos países afectados é visível a correlação entre o número de mortos e qualidade da prestação global em matéria de saúde pública. Por isso mesmo é de esperar que as semanas de conhecimento prévio da epidemia ganhas em boa medida pela forma eficaz como a China impôs a quarentena na região de Wuhan tenham servido para que o resto do mundo elevar a qualidade e o nível de prontidão dos serviços de saúde e melhorar a articulação global na resposta à ameaça. Previsões de exposição ao vírus que atingem 40 a 70% da população mundial feitos pelo epidemiologista de Harvard Mark Lipsitch e corroborada por outros especialistas deviam inculcar um sentido de urgência que infelizmente nem sempre se adopta, em alguns casos por falta de meios, noutros por descaso das autoridades, noutros ainda por razões políticas.
Eventos do tipo “cisne negro”, não obstante os seus efeitos terríveis, servem muitas vezes de teste a sistemas, organizações e procedimentos. Tudo indica que, a se verificar, a pandemia do coronavírus será o primeiro grande teste do mundo globalizado, interdependente e altamente conectado que se esteve a construir nas duas décadas deste século. Pode ser a oportunidade de articulação global para evitar quebra excessiva na taxa de crescimento da economia mundial, para se fazer ajustes nas cadeias globais de valor e conter os seus efeitos negativos e ainda para limitar os efeitos nocivos de hiperconectividade e evitar o pânico, a desinformação e teorias de conspiração. O coronavírus não é a única ameaça global a despontar. Certamente outros vírus irão fazer o salto para o homem à medida que a população cresce e reduz o habitat animal e certos microorganismos são libertados na sequência do recuo dos glaciares. A aceleração das mudanças climáticas trará também o seu cortejo de secas, inundações, furações e elevação do nível do mar cujos efeitos para serem contidos vão exigir algum tipo de coordenação ao nível planetário. Por tudo isso o foco hoje deve ser aumentar resiliências e não ficar só pelos critérios de eficiência. Há que criar capacidade local, nacional e global não só para responder a fenómenos imprevisíveis e potencialmente catastróficos como também para “vir outra vez de baixo” quando o inesperado acontecer.
Em Cabo Verde, um país arquipelágico com uma história de secas e fomes, não devia faltar um forte espírito de resiliência. Infelizmente políticas de reprodução de dependência levadas a cabo durante décadas seguidas acabaram por enfraquecer esse espírito. Pior ainda, deixando-se seduzir pelo modelo de reciclagem da ajuda externa, esqueceu-se de construir diversidade e com isso reduziu as suas opções em caso de calamidades. A Standard & Poor’s já veio avisar do risco que o abrandamento do turismo pode constituir para o crescimento do país. E compreende-se que assim seja considerando que o turismo representa cerca de 40% da economia e o fluxo que gera revela-se contingente ao depender de vários factores não controláveis. Apesar dos discursos, não se pôs suficiente energia nem se foi perseverante na criação de uma base produtiva e exportadora de bens e serviços. Não se investiu o suficiente para fazer o país mais competitivo e mais produtivo.
Considerando a eventualidade dos cisnes negros se tornarem mais frequentes, há que procurar obter resiliência que permita enfrentar eventos e conjunturas adversas. Para isso é fundamental o investimento estratégico na segurança, na saúde e na educação com vista a construir diversidade e capacidade inovadora. E é bem claro que não basta dar continuidade ao que já existe e que não se adequa às exigências de um mundo caracterizado por constante conectividade tanto física como digital e como uma economia global e interdependente. O coronavírus está aí para lembrar da urgência do que se tem a fazer.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 953 de 4 de Março de 2020.
Até bem pouco tempo os efeitos da epidemia tinham-se concentrado na China onde o número de pessoas infectadas se situava em mais de quarenta mil e o número de mortos já tinha atingido os três mil. Neste preciso momento vive-se uma outra fase em que focos da doença já foram identificadas em 60 países com tendência para aumentar e provavelmente atingir países do continente africano e sul-americano que até agora praticamente têm sido poupados. Apesar do Covid-19 não ter revelado o nível de letalidade que outros vírus da mesma estirpe – SARS que apareceu em 2003 e MERS, em 2012 – dificilmente se poderá prever o efeito que terá em países com estruturas de saúde deficientes e capacidade de resposta limitada.
Nos países afectados é visível a correlação entre o número de mortos e qualidade da prestação global em matéria de saúde pública. Por isso mesmo é de esperar que as semanas de conhecimento prévio da epidemia ganhas em boa medida pela forma eficaz como a China impôs a quarentena na região de Wuhan tenham servido para que o resto do mundo elevar a qualidade e o nível de prontidão dos serviços de saúde e melhorar a articulação global na resposta à ameaça. Previsões de exposição ao vírus que atingem 40 a 70% da população mundial feitos pelo epidemiologista de Harvard Mark Lipsitch e corroborada por outros especialistas deviam inculcar um sentido de urgência que infelizmente nem sempre se adopta, em alguns casos por falta de meios, noutros por descaso das autoridades, noutros ainda por razões políticas.
Eventos do tipo “cisne negro”, não obstante os seus efeitos terríveis, servem muitas vezes de teste a sistemas, organizações e procedimentos. Tudo indica que, a se verificar, a pandemia do coronavírus será o primeiro grande teste do mundo globalizado, interdependente e altamente conectado que se esteve a construir nas duas décadas deste século. Pode ser a oportunidade de articulação global para evitar quebra excessiva na taxa de crescimento da economia mundial, para se fazer ajustes nas cadeias globais de valor e conter os seus efeitos negativos e ainda para limitar os efeitos nocivos de hiperconectividade e evitar o pânico, a desinformação e teorias de conspiração. O coronavírus não é a única ameaça global a despontar. Certamente outros vírus irão fazer o salto para o homem à medida que a população cresce e reduz o habitat animal e certos microorganismos são libertados na sequência do recuo dos glaciares. A aceleração das mudanças climáticas trará também o seu cortejo de secas, inundações, furações e elevação do nível do mar cujos efeitos para serem contidos vão exigir algum tipo de coordenação ao nível planetário. Por tudo isso o foco hoje deve ser aumentar resiliências e não ficar só pelos critérios de eficiência. Há que criar capacidade local, nacional e global não só para responder a fenómenos imprevisíveis e potencialmente catastróficos como também para “vir outra vez de baixo” quando o inesperado acontecer.
Em Cabo Verde, um país arquipelágico com uma história de secas e fomes, não devia faltar um forte espírito de resiliência. Infelizmente políticas de reprodução de dependência levadas a cabo durante décadas seguidas acabaram por enfraquecer esse espírito. Pior ainda, deixando-se seduzir pelo modelo de reciclagem da ajuda externa, esqueceu-se de construir diversidade e com isso reduziu as suas opções em caso de calamidades. A Standard & Poor’s já veio avisar do risco que o abrandamento do turismo pode constituir para o crescimento do país. E compreende-se que assim seja considerando que o turismo representa cerca de 40% da economia e o fluxo que gera revela-se contingente ao depender de vários factores não controláveis. Apesar dos discursos, não se pôs suficiente energia nem se foi perseverante na criação de uma base produtiva e exportadora de bens e serviços. Não se investiu o suficiente para fazer o país mais competitivo e mais produtivo.
Considerando a eventualidade dos cisnes negros se tornarem mais frequentes, há que procurar obter resiliência que permita enfrentar eventos e conjunturas adversas. Para isso é fundamental o investimento estratégico na segurança, na saúde e na educação com vista a construir diversidade e capacidade inovadora. E é bem claro que não basta dar continuidade ao que já existe e que não se adequa às exigências de um mundo caracterizado por constante conectividade tanto física como digital e como uma economia global e interdependente. O coronavírus está aí para lembrar da urgência do que se tem a fazer.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 953 de 4 de Março de 2020.