O cientista político americano Francis Fukuyama
escrevendo na revista The Atlantic chamou a atenção para a importância
da confiança nestes tempos de excepção e de luta contra a pandemia da
Covid-19.
Para ele, independentemente da
natureza dos regimes políticos serem mais ou menos autocráticos ou mais
ou menos democráticos, o sucesso no combate ao coronavírus vai depender
do grau de confiança que os líderes e as instituições do Estado
conseguirem granjear junto da população. E isso consegue-se demonstrando
sistematicamente competência na formulação das políticas e capacidade
executiva de as implementar. Imprescindível também é mostrar disposição
para lidar em tudo o que respeita à crise com verdade, transparência e
sabedoria na utilização dos meios respeitando o princípio de
proporcionalidade e da necessidade. Nesse sentido, o governo que quer
ser efectivo na gestão da crise é aquele que tudo faz para merecer a
confiança das pessoas porque dessa forma pode potenciar com vantagens o
espírito de colaboração, o civismo e a solidariedade que nessas
circunstâncias brota naturalmente das pessoas. Há porém muitos
empecilhos nesse caminho.
Em situações de emergência muito poder é colocado nas mãos do executivo para responder à calamidades e perturbações graves da vida em sociedade. Como se constata um pouco por todo o mundo, a tentação do poder é forte e não faltam líderes querendo tornar permanente alguns dos poderes ganhos na crise. Nota-se isso nas autocracias que, com a pandemia, querem reforçar o seu controlo das suas sociedade mas acontece também nas democracias e em todos os continentes. Os exemplos mais salientes são os da Hungria e, ultimamente, de Israel, mas na generalidade dos casos pode-se ver que o sonho é governar por decreto e no processo reduzir o papel do parlamento a simples ratificação dos actos do executivo, descredibilizar os órgãos de comunicação social em nome de luta contra os fake news e aumentar o controlo das pessoas com recurso às novas tecnologias. Até na Suécia o governo, na semana passada, procurou autorização para funcionar por decreto durante o estado de emergência. O pedido foi rejeitado mas na Hungria uma proposta do mesmo teor já tinha sido aceite.
Em Cabo Verde não parece que haja algo similar. O estado de emergência está rodeado de salvaguardas para garantir que depois de resolvida a crise se faça o regresso à normalidade de forma tranquila. Limita-se porém ao que está directamente na Constituição. Não beneficia de outras salvaguardas que poderiam ter sido introduzidas por uma lei reforçada da AN como determina a Constituição. E isso não é bom, como se pode ver da situação dos deputados da UCID que ficaram impedidos de participar nas reuniões plenárias, quando em antecipação às restrições na circulação inter-ilhas não se acautelou a presença de todos os deputados e partidos eleitos para garantir o normal e contínuo trabalho do órgão de soberania. Aliás, da mesma forma, na rapidez da decisão de restringir a circulação, não parece que se tomou em devida conta que muitos cidadãos em viagem ou em trânsito pelas ilhas quando impedidos de continuar a viagem ou de regressar à ilha ficariam numa situação extremamente difícil.
Curiosamente, a lei de 27/10/1990, que estabelece o regime de estado de sítio e de estado de emergência, na alínea c do artigo 7, já determinava que quando há interdição do trânsito das pessoas cabe às autoridades assegurar os meios necessários no tocante ao transporte, alojamento e manutenção dos cidadãos afectados. Não existindo actualmente tais salvaguardas numa lei própria, viu-se o resultado na situação dos condutores de carrinhas de Santo Antão que ficaram retidos em S. Vicente na sexta-feira passada devido à restrição inesperada das ligações entre as duas ilhas. A 27 de Março último já tinha acontecido o mesmo a muitas pessoas nas diferentes ilhas do país. As lacunas estendem-se a outros domínios entre eles os que devem assegurar um reforço da fiscalização da legalidade ao longo de todo o estado de emergência. Para isso, devia-se garantir o funcionamento da Procuradoria-Geral da República e da Provedoria da Justiça em sessão permanente com vista à defesa da legalidade democrática e dos direitos dos cidadãos.
Conquistar e manter a confiança nos governantes durante estados de excepção tem esse pilar importante que é o de explicitamente revelar as garantias que de facto a democracia não foi suspensa e que não haverá uma contracção permanente das liberdades. Um outro pilar importante é a gestão competente da situação para se evitar o pior e para fazer as pessoas regressarem às suas vidas o mais cedo possível. Todos predispõem-se a fazer os sacrifícios necessários, no caso presente, o confinamento domiciliário associado ao distanciamento social, mas querem ver o tempo ganho por esse esforço extremo de quebra na transmissão do coronavírus devidamente aproveitado pelas autoridades na identificação de focos de contágio seguido de isolamento e posterior destruição dos mesmos. O sacrifício colectivo justifica-se com isso e também com todos os ganhos conseguidos na melhoria e equipamento do sistema de saúde e das condições de trabalho dos seus profissionais.
Por isso é que o que aconteceu em S. Vicente com o caso positivo da Covid-19 não pode repetir-se em nenhum outro ponto do país. Saber pelos relatos vindos a público de tantos atropelos ao que devia ser o protocolo seguido à risca nesta pandemia por todos e em particular as estruturas e os profissionais da saúde, não é reconfortante. Nem tão pouco é ver que o circuito seguido pela doente nas estruturas de saúde aumentou extraordinariamente o risco de contágio e a possibilidade de haver um surto na ilha com todas as consequências que daí podem advir. O caso de S. Vicente veio pôr em foco deficiências várias, em particular o facto de só num laboratório na Praia se conseguir ter resultados dos testes. Com as ligações entre ilhas muito limitadas e os resultados dos testes adiados dificilmente se consegue suprimir um foco de contágio antes de se espalhar. Imagine-se o tempo perdido, mais de quatro dias no caso da senhora com a Covid-19 em S. Vicente, que se tem tido entre a identificação, confirmação e subsequente investigação da origem e cadeia de contágio quando se tem tamanhos constrangimentos.
A revelação desses constrangimentos deve relançar o governo para a acção para os eliminar ou contornar de melhor forma. O ideal seria que todas as ilhas tivessem capacidade para realizar testes. Na falta disso, todas devem poder conhecer o resultado no mesmo dia. A gestão dos recursos disponíveis terá que contemplar disponibilidade em todas as ilhas de máscaras, fatos de protecção, testes e ventiladores. A fragilidade do país em meios aéreos e marítimos com a função de busca e salvamento e de meio de resposta em situação de calamidade no país ou em qualquer ilha ficou completamente exposta. Há que reflectir e agir resolutamente para ultrapassar este estado de coisas. Confiança ganha-se e é mantida na relação com os cidadãos se resultados concretos e no tempo certo são conseguidos e se se corta definitivamente com a prática de atirar os problemas para debaixo do tapete.
Em situações de emergência muito poder é colocado nas mãos do executivo para responder à calamidades e perturbações graves da vida em sociedade. Como se constata um pouco por todo o mundo, a tentação do poder é forte e não faltam líderes querendo tornar permanente alguns dos poderes ganhos na crise. Nota-se isso nas autocracias que, com a pandemia, querem reforçar o seu controlo das suas sociedade mas acontece também nas democracias e em todos os continentes. Os exemplos mais salientes são os da Hungria e, ultimamente, de Israel, mas na generalidade dos casos pode-se ver que o sonho é governar por decreto e no processo reduzir o papel do parlamento a simples ratificação dos actos do executivo, descredibilizar os órgãos de comunicação social em nome de luta contra os fake news e aumentar o controlo das pessoas com recurso às novas tecnologias. Até na Suécia o governo, na semana passada, procurou autorização para funcionar por decreto durante o estado de emergência. O pedido foi rejeitado mas na Hungria uma proposta do mesmo teor já tinha sido aceite.
Em Cabo Verde não parece que haja algo similar. O estado de emergência está rodeado de salvaguardas para garantir que depois de resolvida a crise se faça o regresso à normalidade de forma tranquila. Limita-se porém ao que está directamente na Constituição. Não beneficia de outras salvaguardas que poderiam ter sido introduzidas por uma lei reforçada da AN como determina a Constituição. E isso não é bom, como se pode ver da situação dos deputados da UCID que ficaram impedidos de participar nas reuniões plenárias, quando em antecipação às restrições na circulação inter-ilhas não se acautelou a presença de todos os deputados e partidos eleitos para garantir o normal e contínuo trabalho do órgão de soberania. Aliás, da mesma forma, na rapidez da decisão de restringir a circulação, não parece que se tomou em devida conta que muitos cidadãos em viagem ou em trânsito pelas ilhas quando impedidos de continuar a viagem ou de regressar à ilha ficariam numa situação extremamente difícil.
Curiosamente, a lei de 27/10/1990, que estabelece o regime de estado de sítio e de estado de emergência, na alínea c do artigo 7, já determinava que quando há interdição do trânsito das pessoas cabe às autoridades assegurar os meios necessários no tocante ao transporte, alojamento e manutenção dos cidadãos afectados. Não existindo actualmente tais salvaguardas numa lei própria, viu-se o resultado na situação dos condutores de carrinhas de Santo Antão que ficaram retidos em S. Vicente na sexta-feira passada devido à restrição inesperada das ligações entre as duas ilhas. A 27 de Março último já tinha acontecido o mesmo a muitas pessoas nas diferentes ilhas do país. As lacunas estendem-se a outros domínios entre eles os que devem assegurar um reforço da fiscalização da legalidade ao longo de todo o estado de emergência. Para isso, devia-se garantir o funcionamento da Procuradoria-Geral da República e da Provedoria da Justiça em sessão permanente com vista à defesa da legalidade democrática e dos direitos dos cidadãos.
Conquistar e manter a confiança nos governantes durante estados de excepção tem esse pilar importante que é o de explicitamente revelar as garantias que de facto a democracia não foi suspensa e que não haverá uma contracção permanente das liberdades. Um outro pilar importante é a gestão competente da situação para se evitar o pior e para fazer as pessoas regressarem às suas vidas o mais cedo possível. Todos predispõem-se a fazer os sacrifícios necessários, no caso presente, o confinamento domiciliário associado ao distanciamento social, mas querem ver o tempo ganho por esse esforço extremo de quebra na transmissão do coronavírus devidamente aproveitado pelas autoridades na identificação de focos de contágio seguido de isolamento e posterior destruição dos mesmos. O sacrifício colectivo justifica-se com isso e também com todos os ganhos conseguidos na melhoria e equipamento do sistema de saúde e das condições de trabalho dos seus profissionais.
Por isso é que o que aconteceu em S. Vicente com o caso positivo da Covid-19 não pode repetir-se em nenhum outro ponto do país. Saber pelos relatos vindos a público de tantos atropelos ao que devia ser o protocolo seguido à risca nesta pandemia por todos e em particular as estruturas e os profissionais da saúde, não é reconfortante. Nem tão pouco é ver que o circuito seguido pela doente nas estruturas de saúde aumentou extraordinariamente o risco de contágio e a possibilidade de haver um surto na ilha com todas as consequências que daí podem advir. O caso de S. Vicente veio pôr em foco deficiências várias, em particular o facto de só num laboratório na Praia se conseguir ter resultados dos testes. Com as ligações entre ilhas muito limitadas e os resultados dos testes adiados dificilmente se consegue suprimir um foco de contágio antes de se espalhar. Imagine-se o tempo perdido, mais de quatro dias no caso da senhora com a Covid-19 em S. Vicente, que se tem tido entre a identificação, confirmação e subsequente investigação da origem e cadeia de contágio quando se tem tamanhos constrangimentos.
A revelação desses constrangimentos deve relançar o governo para a acção para os eliminar ou contornar de melhor forma. O ideal seria que todas as ilhas tivessem capacidade para realizar testes. Na falta disso, todas devem poder conhecer o resultado no mesmo dia. A gestão dos recursos disponíveis terá que contemplar disponibilidade em todas as ilhas de máscaras, fatos de protecção, testes e ventiladores. A fragilidade do país em meios aéreos e marítimos com a função de busca e salvamento e de meio de resposta em situação de calamidade no país ou em qualquer ilha ficou completamente exposta. Há que reflectir e agir resolutamente para ultrapassar este estado de coisas. Confiança ganha-se e é mantida na relação com os cidadãos se resultados concretos e no tempo certo são conseguidos e se se corta definitivamente com a prática de atirar os problemas para debaixo do tapete.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 958 de 8 de Abril de 2020.