A problemática da habitação vai mais uma vez ao
parlamento esta quarta-feira. Pela forma como o palco foi montado nas
últimas semanas com denúncias na comunicação, visitas de deputados da
nação e cenas de demolição de barracas sob protecção ostensiva da
polícia e de militares, pode-se imaginar que o resultado do debate
parlamentar não será muito diferente do já verificado em sessões
anteriores.
As exigências a serem apresentadas para discussão, segundo declaração de deputados à imprensa, resumem-se à
“distribuição de lotes para as pessoas de pouco renda, distribuição de
lotes aos privados para a venda ou então o próprio Estado construir ou
disponibilizar casas para venda”.
O direito à habitação, no entendimento geral, significaria que as pessoas teriam direito a casa própria e também que o Estado e as autarquias deveriam assumir a responsabilidade de proporcionar os meios para a sua efectivação. O facto de até agora essa política ser uma das principais razões pela situação de défice habitacional no país, pela existência de bairros degradados nos principais centros urbanos e pelo aparecimento das barracas nas ilhas da Boa Vista e Sal, parece não incomodar. Insiste-se na ideia peregrina de que todo o cabo-verdiano deve ter direito a um lote de terreno e à possibilidade de por si próprio nele construir a sua residência sem olhar às consequências que vão se acumulando ano após ano.
Uma das dissonâncias cognitivas produzidas por esse “direito inalienável” é a separação que na prática se faz entre habitação e economia como se fossem dois mundos à parte. Por um lado, não se vê que a edificação de casas constitui uma parte substancial do sector da construção civil e que como outros sectores deve poder orientar-se pela procura de ganhos de produtividade e de qualidade e ainda pela maior eficiência na utilização dos recursos humanos e físicos disponíveis. Resumindo, a informalidade na construção não deve ser norma. Por outro lado, não há aparentemente compreensão imediata que para se ter casa é preciso ter rendimento, seja para amortizar o financiamento de casa própria, seja para pagamento da renda. Ou seja, não é viável ter-se uma política de habitação separada de uma política de estruturação e modernização do sector da construção civil e de políticas de criação de emprego sustentáveis para a generalidade da população.
O chamado projecto Casa para Todos é o exemplo acabado do que acontece quando, por razões espúrias, não se dá atenção ao óbvio. Criou-se o projecto de habitação social, mas também com ofertas para as classes média e média baixa na base de um crédito de natureza comercial, mas com juros bonificados pelo Estado português. Como contrapartida ao subsídio, as obras seriam feitas por consórcios maioritariamente portugueses e utilizando material de construção de origem portuguesa até 60% do total. Pelo que se vê, o projecto não resultou da aplicação da poupança interna, não serviu para estimular e estruturar o empresariado nacional e não foi concebido como gerador de empregos. Aconteceu o contrário, o país agravou significativamente a sua dívida externa, o empresariado do sector de construção saiu fragilizado e por todo o país ficaram milhares de apartamentos por vender e por arrendar porque, ou por razões de custo, de localização ou da adequação dos imóveis, não havia mercado para os absorver.
Ainda se criou um banco, o Novo Banco, para completar a ilusão de que o projecto era racional e era viável. Como podia-se prever, logo à nascença dessa instituição, em 2010, o desfecho não foi o melhor. Quando finalmente se disponibilizaram os apartamentos já não havia o Novo Banco para financiar créditos aos eventuais compradores. Considerando o timing de lançamento do projecto Casa para Todos e da criação do Novo Banco nas vésperas de eleições legislativas, é natural pensar que existissem outras motivações por detrás. A verdade, porém, é que o défice habitacional continuou e as barracas aumentaram enquanto alguns milhares de apartamentos do projecto até agora permanecem sem destino certo.
Estranhamente, ainda hoje não há certeza de que o país reflectiu devidamente sobre a dimensão do erro cometido. Mesmo depois da dívida pública ter atingido os três dígitos, de ter aumentado o número de barracas e de se ser obrigado cinco anos depois a conviver com o espectáculo de prédios vazios e apartamentos sem compradores, ainda no confronto político se trocam acusações sobre quem é o culpado por ter feito e quem é culpado por não ter vendido. As questões de fundo sobre a política de habitação continuam sem resposta e persistem equívocos em como proceder para gerar riqueza, criar empregos e garantir rendimento sustentável às famílias. Também nota-se a tentação de se regressar sempre às opções e soluções que, por experiência repetida, conduzem a elefantes brancos e a ineficiências diversas e ao tipo de vulnerabilidades e de precariedade que, quando acontecem secas e outros choques externos, facilmente se revelam. É como se o país não tivesse capacidade de aprender, de alterar o rumo e de inovar a partir dos próprios erros, mesmo em situações extremas.
Um exemplo disso é a questão do emprego. Com a dinâmica do crescimento dos últimos anos, em particular do turismo e de actividades conexas, o desemprego aproximou-se da barreira que o podia fazer cair para um dígito. Provavelmente os empregos podiam ser maiores e mais qualificados se houvesse um esforço mais dirigido para se conseguir um maior impacto do turismo e melhorar os recursos humanos. Isso, porém, seria incompatível com discursos e políticas que dizem querer combater o desemprego, mas opõem-se ao chamado êxodo rural, e querem fixar as populações nas ilhas quando se sabe que para criar riqueza tem que se aumentar a produtividade e direcionar a mão-de-obra para os sectores mais produtivos da indústria e dos serviços. Também deve-se proporcionar mão-de-obra qualificada nos pontos de maior investimento e nesse sentido criar condições para migrações internas e programar formação profissional de forma a se ter mão-de-obra competitiva a nível global em sectores emergentes, particularmente nos domínios da tecnologia de informação e de comunicação.
Uma política habitacional adequada é essencial para se conjugar recursos financeiros físicos e humanos e obter o maior retorno possível em termos de criação de riqueza e de emprego. Infelizmente a debandada que se verifica actualmente em direcção às ilhas de origem na sequência da paralisia da economia ligada ao turismo e à aviação deixa antever que não se conseguiu criar nos jovens estabilidade e sentido de pertença essenciais para o sucesso de uma política de habitação nas ilhas turísticas. Se, de facto, está-se de passagem, não espanta que proliferem barracas e falhem as tentativas de produzir um crescimento urbano ordeiro e inclusivo. Da mesma forma, mantendo-se aliciante a ideia de trabalhar para o Estado, não há como evitar o crescimento descontrolado dos bairros particularmente na capital do país.
O grande desafio que se coloca é como harmonizar políticas de crescimento e de criação de emprego com a política de habitação de forma a garantir maiores ganhos para o país, diminuir a vulnerabilidade e precariedade das populações e manter viva a diversidade cultural enriquecedora das diferentes ilhas. Até agora tem imperado o desnorte nestas matérias com todas as consequências que se conhecem. Talvez seja desta que finalmente se trace um novo rumo que traga prosperidade e uma vida melhor para todos.
O direito à habitação, no entendimento geral, significaria que as pessoas teriam direito a casa própria e também que o Estado e as autarquias deveriam assumir a responsabilidade de proporcionar os meios para a sua efectivação. O facto de até agora essa política ser uma das principais razões pela situação de défice habitacional no país, pela existência de bairros degradados nos principais centros urbanos e pelo aparecimento das barracas nas ilhas da Boa Vista e Sal, parece não incomodar. Insiste-se na ideia peregrina de que todo o cabo-verdiano deve ter direito a um lote de terreno e à possibilidade de por si próprio nele construir a sua residência sem olhar às consequências que vão se acumulando ano após ano.
Uma das dissonâncias cognitivas produzidas por esse “direito inalienável” é a separação que na prática se faz entre habitação e economia como se fossem dois mundos à parte. Por um lado, não se vê que a edificação de casas constitui uma parte substancial do sector da construção civil e que como outros sectores deve poder orientar-se pela procura de ganhos de produtividade e de qualidade e ainda pela maior eficiência na utilização dos recursos humanos e físicos disponíveis. Resumindo, a informalidade na construção não deve ser norma. Por outro lado, não há aparentemente compreensão imediata que para se ter casa é preciso ter rendimento, seja para amortizar o financiamento de casa própria, seja para pagamento da renda. Ou seja, não é viável ter-se uma política de habitação separada de uma política de estruturação e modernização do sector da construção civil e de políticas de criação de emprego sustentáveis para a generalidade da população.
O chamado projecto Casa para Todos é o exemplo acabado do que acontece quando, por razões espúrias, não se dá atenção ao óbvio. Criou-se o projecto de habitação social, mas também com ofertas para as classes média e média baixa na base de um crédito de natureza comercial, mas com juros bonificados pelo Estado português. Como contrapartida ao subsídio, as obras seriam feitas por consórcios maioritariamente portugueses e utilizando material de construção de origem portuguesa até 60% do total. Pelo que se vê, o projecto não resultou da aplicação da poupança interna, não serviu para estimular e estruturar o empresariado nacional e não foi concebido como gerador de empregos. Aconteceu o contrário, o país agravou significativamente a sua dívida externa, o empresariado do sector de construção saiu fragilizado e por todo o país ficaram milhares de apartamentos por vender e por arrendar porque, ou por razões de custo, de localização ou da adequação dos imóveis, não havia mercado para os absorver.
Ainda se criou um banco, o Novo Banco, para completar a ilusão de que o projecto era racional e era viável. Como podia-se prever, logo à nascença dessa instituição, em 2010, o desfecho não foi o melhor. Quando finalmente se disponibilizaram os apartamentos já não havia o Novo Banco para financiar créditos aos eventuais compradores. Considerando o timing de lançamento do projecto Casa para Todos e da criação do Novo Banco nas vésperas de eleições legislativas, é natural pensar que existissem outras motivações por detrás. A verdade, porém, é que o défice habitacional continuou e as barracas aumentaram enquanto alguns milhares de apartamentos do projecto até agora permanecem sem destino certo.
Estranhamente, ainda hoje não há certeza de que o país reflectiu devidamente sobre a dimensão do erro cometido. Mesmo depois da dívida pública ter atingido os três dígitos, de ter aumentado o número de barracas e de se ser obrigado cinco anos depois a conviver com o espectáculo de prédios vazios e apartamentos sem compradores, ainda no confronto político se trocam acusações sobre quem é o culpado por ter feito e quem é culpado por não ter vendido. As questões de fundo sobre a política de habitação continuam sem resposta e persistem equívocos em como proceder para gerar riqueza, criar empregos e garantir rendimento sustentável às famílias. Também nota-se a tentação de se regressar sempre às opções e soluções que, por experiência repetida, conduzem a elefantes brancos e a ineficiências diversas e ao tipo de vulnerabilidades e de precariedade que, quando acontecem secas e outros choques externos, facilmente se revelam. É como se o país não tivesse capacidade de aprender, de alterar o rumo e de inovar a partir dos próprios erros, mesmo em situações extremas.
Um exemplo disso é a questão do emprego. Com a dinâmica do crescimento dos últimos anos, em particular do turismo e de actividades conexas, o desemprego aproximou-se da barreira que o podia fazer cair para um dígito. Provavelmente os empregos podiam ser maiores e mais qualificados se houvesse um esforço mais dirigido para se conseguir um maior impacto do turismo e melhorar os recursos humanos. Isso, porém, seria incompatível com discursos e políticas que dizem querer combater o desemprego, mas opõem-se ao chamado êxodo rural, e querem fixar as populações nas ilhas quando se sabe que para criar riqueza tem que se aumentar a produtividade e direcionar a mão-de-obra para os sectores mais produtivos da indústria e dos serviços. Também deve-se proporcionar mão-de-obra qualificada nos pontos de maior investimento e nesse sentido criar condições para migrações internas e programar formação profissional de forma a se ter mão-de-obra competitiva a nível global em sectores emergentes, particularmente nos domínios da tecnologia de informação e de comunicação.
Uma política habitacional adequada é essencial para se conjugar recursos financeiros físicos e humanos e obter o maior retorno possível em termos de criação de riqueza e de emprego. Infelizmente a debandada que se verifica actualmente em direcção às ilhas de origem na sequência da paralisia da economia ligada ao turismo e à aviação deixa antever que não se conseguiu criar nos jovens estabilidade e sentido de pertença essenciais para o sucesso de uma política de habitação nas ilhas turísticas. Se, de facto, está-se de passagem, não espanta que proliferem barracas e falhem as tentativas de produzir um crescimento urbano ordeiro e inclusivo. Da mesma forma, mantendo-se aliciante a ideia de trabalhar para o Estado, não há como evitar o crescimento descontrolado dos bairros particularmente na capital do país.
O grande desafio que se coloca é como harmonizar políticas de crescimento e de criação de emprego com a política de habitação de forma a garantir maiores ganhos para o país, diminuir a vulnerabilidade e precariedade das populações e manter viva a diversidade cultural enriquecedora das diferentes ilhas. Até agora tem imperado o desnorte nestas matérias com todas as consequências que se conhecem. Talvez seja desta que finalmente se trace um novo rumo que traga prosperidade e uma vida melhor para todos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 967 de 10 de Junho de 2020.