A dois meses das eleições presidenciais marcadas para 17 de Outubro o país prepara-se para o último acto deste ciclo eleitoral que se iniciou há quase um ano com as autárquicas de 2020.
Pela natureza do órgão, pela conjuntura e pelo que dele se espera deverá ser uma eleição especial. De facto, desta vez trata-se de eleger um órgão que é singular e suprapartidário e que não tem funções governativas. A eleição irá verificar-se no actual ambiente de incertezas que se vive em meio de uma pandemia sem precedentes e que apesar das vacinas ainda não se vislumbra quando a retoma económica poderá processar-se e a que ritmo. O momento é marcado também por grandes desafios ao sistema democrático e em que não faltam tentativas de descredibilização das instituições.
Sendo especial a eleição presidencial, há sempre o risco de se tentar desvalorizá-la considerando que se trata de perda de tempo e de dinheiro porque o PR não governa e nada consegue mudar. Ou, no sentido contrário, e para se fugir ao estigma de ser a eleição de uma espécie de Rainha de Inglaterra, pode-se ter a tentação de lhe imprimir um carácter que aparentemente lhe dá competências em matérias de governação, mas que além de criar falsas expectativas no eleitorado, desvia a eleição dos seus propósitos e pode ser um foco de tensão futura com quem realmente tem as rédeas da governação. Num e no outro caso perde-se a possibilidade de focalizar o debate eleitoral no que realmente importa e que tem tudo a ver com o facto de constitucionalmente o presidente da república ser o representante da república e o garante da independência nacional, da unidade da Nação e do Estado, do cumprimento da Constituição e do normal funcionamento das instituições.
A eleição presidencial ao acontecer no término do segundo e último mandato do actual PR e, por conseguinte, de renovação obrigatória do titular do cargo, abre a possibilidade única de se centrar o debate no que deve ser a função presidencial nos tempos actuais. A democracia em todo o mundo apresenta sinais de crise grave com instituições fragilizadas, sistemas partidários desacreditados e tentações populistas e autocráticas. Em muitos casos não faltam derivas iliberais limitando direitos fundamentais e pondo em causa a independência dos tribunais e hostilizando os órgãos de comunicação social. Noutros casos há percepção de que se vive uma crise de representação acompanhado de um sentimento de desconfiança em relação às elites e de crescente dependência das redes sociais o que paradoxalmente deixa as pessoas susceptíveis a líderes com posturas narcisísticas ou com tiques de celebridade. Claramente que a forma como o cargo de PR poderá vir a ser exercido irá contribuir para a contenção ou não das tendências mais descredibilizadoras do processo democrático abrindo a possibilidade de mobilizar vontades e focar energias da nação no que deve ser feito para ultrapassar a situação actual.
Não se pode ignorar os sentimentos anti-sistemas que aproveitaram situações recentes bem identificadas para se exprimirem em órgãos de comunicação social, nas redes sociais e em petições. Descontentes da democracia, do constitucionalismo liberal e do Estado de Direito existiram sempre. Perante fragilidades notórias do sistema democrático procuram servir-se das próprias instituições da democracia como o parlamento, os partidos políticos e a imprensa para desacreditar todo o sistema. A cereja no topo do bolo seria poder instrumentalizar o cargo de presidente da república. E é assim porque facilmente podem ser criadas tensões no sistema democrático em particular nas relações com o governo e com o parlamento se o exercício do cargo do PR ganha o hábito de “bordejar” os limites das competências constitucionalmente estabelecidas. Em alguns momentos da vida desta segunda república, às vezes com incitamento de outros, outras vezes movidos por desejo de protagonismo ou a tentação de governar ou fazer de oposição, aconteceram casos complicados com consequências na vida do país e que um dia eventualmente a história irá aclarar das razões e motivações.
Diz-se que o poder do PR nas democracias parlamentares é de geometria variável. Como não governa o que mais conta, na sua interacção com os outros órgãos de soberania e com o país, é o seu poder de influenciação. Ora, esse poder varia e é tendencialmente maior se o governo é minoritário ou tem uma maioria precária no parlamento. Pela observação da generalidade dos PR nota-se que tendem a acomodar melhor o governo no primeiro mandato do que no segundo, quando já não precisam de apoio para reeleição. Se têm origem no segmento de opinião que está na oposição não poucas vezes ficam sob pressão para tornar as coisas mais difíceis para o partido no governo. Quando cedem à tentação e mostram protagonismo desgastante para o governo ou já estão no segundo mandato ou o governo de alguma forma está politicamente mais frágil.
Em grande número de casos estes protagonismos de oportunidade não levam a bons resultados no sistema. Além de cultivarem a desconfiança entre titulares de órgãos de soberania dão azo ao cinismo na esfera pública que, em particular, nas jovens democracias se transforma no maior obstáculo ao desenvolvimento de uma cultura democrática. A democracia com as suas normas, processos e procedimentos cria essencialmente as regras de um jogo em que todos querem participar assumindo que elas são cumpridas e que o PR é o arbitro e moderador do sistema cumprindo com o papel que na condição de suprapartidário e de eleito directamente pelo povo lhe compete.
Como em qualquer jogo, quanto mais se adere às regras mais bonito é o jogo, menos ineficiências se criam e mais vias para atingir objectivos se podem encontrar. Cumprindo as regras, aprende-se a jogar melhor, quem participa e assiste enriquece-se pessoal e institucionalmente com as novas estratégicas e as tácticas aplicadas e há probabilidade maior de se encontrar soluções inovadoras. Há também menos risco de o país deixar-se apanhar em mitos, ilusionismos e meias verdades porque ninguém está impedido de gritar que o rei vai nu. Estão, pois, enganados os descontentes com a democracia que quando apontam erros no sistema, ao invés de insistirem na aplicação das regras, tendem a aumentar o caos existente, a propor desinstitucionalizar ainda mais e a promover a entrada de figuras providenciais que não precisam cumprir regras.
A eleição do presidente da república é o momento certo para mostrar a importância do cumprimento das regras para a consolidação da cultura democrática, essencial para manter o clima de liberdade, de justiça e de solidariedade que o país precisa neste momento difícil. Todos que a partir de hoje, 18 de Agosto, são candidatos a presidente da república devem ter isso em devida conta e procurar conduzir a sua campanha de forma a que o eleitorado possa com mais clareza ver qual é a personalidade que com confiança, segurança e perseverança está em melhor posição de fazer a democracia trabalhar para todos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1029 de 18 de Agosto de 2021.