terça-feira, março 26, 2013

Governação e propaganda: onde termina um e começa o outro



O insólito reina no discurso político cabo-verdiano. O que mais se ouve fa­lar é de que está em curso uma grande Agenda de Transformação. Baldes de água fria surgem às vezes de repente para pôr freio a certo tipo euforia. É o caso das declarações feitas recentemente pela ministra das Finanças quando confrontada com as críticas do FMI às estruturas do ministério ligadas ao fisco. Disse peremptoriamente: “Até este momento caminhamos graças à generosida­de da comunidade internacional, quer em termos dos fluxos da ajuda pública ao desenvolvimento, quer em termos dos empréstimos concessionais. Este paradigma tem de ser mudado e temos de ter a coragem de criar as condições para mudar”. A ministra não só constata que a dependência externa persiste e está bem en­raizada, mas que será necessário algum feito corajoso, quiçá heróico, porque é provavelmente muito difícil ou talvez contranatura, mudar as coisas.
A pergunta que fica no ar é: por que caminhos tem andado Cabo Verde que o mantém quase 38 anos depois da independência ainda sujeito à generosidade dos outros? Certamente qua não os mesmos das ilhas Maurícias que não obs­tante ser só sete anos mais velho como país independente tem quase o triplo do rendimento per capita de Cabo Verde. Ou então os caminhos das ilhas Seychel­les e de outras economias pequenas e insulares que não se deixaram seduzir pela ajuda externa. Pelo contrário, aproveitaram as facilidades de acesso aos mercados para exportar bens e serviços. E sem inibições, mas com sabedoria, desenvolveram o turismo pondo em bom o uso a magia, a beleza e a tranquili­dade associadas ao ambiente insular. Em Cabo Verde, optou-se por passar para a comunidade internacional a “imagem de bons meninos” e daí tirar dividen­dos sem pensar no dia de amanhã, mas sempre com discursos de transforma­ção. Até se inventou um nome pomposo para isso – “exportar credibilidade”.
As dificuldades que a ministra das Finanças já pressente no mudar de para­digma não são imaginárias. Viver uma farsa com o fito de granjear assistência contínua de outrem acaba por afectar o Estado, os indivíduos e o tecido eco­nómico-social e cultural de uma forma que certamente não se encontrará em economias viradas para o exterior. Assim é porque descentralização de deci­sões, iniciativa, espírito de cooperação, meritocracia e cultura de resultados são necessários para se triunfar no mundo global. Muito diferente é estruturar-se para gerir a generosidade dos outros.Na esteira da obsessão pelo controlo dos recursos disponibilizados vem o centralismo, a burocracia, o egoísmo e uma cultura fixada em processos e em conseguir “mais e mais meios” em detri­mento de realizações sustentáveis e potenciadoras do engenho e energia das pessoas.
Muitos dos males institucionais, sociais e políticos em Cabo Verde derivam do facto de o Estado se colocar no topo da cadeia alimentar e estender os seus tentáculos para se assegurar que todos, indivíduos, empresas e organizações sociais dependam da sua generosidade. O movimento para a regionalização em várias ilhas é, em boa parte, uma reacção ao centralismo, à macrocefalia e a assimetrias diversas que resultam da postura de controlo. Iniciativas como o da cimeira do Primeiro-ministro com os presidentes das câmaras na passada sexta-feira não dão sinais de irem além do show off. Até parecem gestos vazios face às reiteradas tentativas de diminuir as atribuições e a autonomia dos mu­nicípios. No mesmo sentido vão as acções do Estado junto dos jovens e idosos. Sente-se excesso de politização no que deviam ser actos de solidariedade co­lectiva para com os elementos mais vulneráveis da comunidade.
Para fazer marchar a economia e para a criação de empregos não se nota o mesmo empenho. A forma quase distraída descrita no relatório do Banco Mun­dial como o Governo encara o turismo, o impulsionador da economia e grande criador de empregos, dá conta disso. Nessas matérias que são fundamentais para a autonomia, rendimentos e auto-estima das pessoas, o governo retrai-se com justificações de responsabilidade partilhada ou com desconhecimento das razões por que o sector privado não investe.
Nesta fase em que o governo se vê forçado a ir além do seu modelo de recicla­gem da ajuda externa nota-se a intensificação da propaganda. Até faz lembrar momentos pré- eleitorais. Agarra-se a tudo para marcar presença intoxicante na comunicação social: Tubarões Azuis, eleição do Papa, índice de desenvolvi­mento humano, convite de Obama. Lembra certos governos da Europa pouco antes de perderam nas urnas. Mas não se pode governar com propaganda. Os cabo-verdianos têm direito de saber a verdade da situação do país para melhor poderem posicionar-se para o que o seu futuro seja escrito com a sua participa­ção, conhecimento e vontade de vencer.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 26 de Maio de 2013

quarta-feira, março 13, 2013

“Boa governação” mira-se no espelho



Da ministra de Finanças o país já se habituou a ouvir declarações categóricas do género “a DGCI estará em condições de iniciar os pagamentos (do IUR) na se­gunda quinzena de Novembro (2012)”, que depois não têm tradução em actos reais e concretos. No passado recente fez o discurso da blindagem, na sequên­cia da crise internacional, com o mesmo fervor e certeza que posteriormente iria colocar no discurso de aumento brutal do IVA na água, energia, transportes e comunicações e na criação de novas taxas para fazer face à mesma crise. Em entrevista ao jornal “Asemana”, há quatro meses atrás, a ministra garantiu que a “estrutura (da DGCI) necessária, incluindo a aplicação, os procedimentos e o savoir-faire, está pronta”. Hoje, no relatório do FMI, sabe-se que a DGCI vive um caos administrativo. A questão que se põe é em quê acreditar.
Já havia sinais que a imagem de rigor projectada pelo ministério das Finan­ças e Planeamento não condizia com a prática. Para a imagem de competência muito contribuiu o aumento extraordinário das receitas do Estado de 2004 a 2008 e as proclamações oficiais que punham ênfase na qualidade das despesas. A realidade, porém, como comprova o relatório do FMI, é que o aumento deve mais à adopção do IVA e à dinâmica económica do “tempo das vacas gordas” do que a uma maior eficácia da administração fiscal. Aliás, foi durante esse perío­do que o grupo de quadros que fora preparado para o IVA se dispersou e as re­formas preconizadas em 2004, para consolidar a DGCI, não se concretizaram. Por outro lado, a suposta qualidade das despesas revelou ser mais gorduras do Estado e despesas rígidas dificilmente sustentáveis em tempo de vacas ma­gras e ainda por cima feitas com rigor discutível. Prova disso foram os fundos transferidos para associações e outras entidades nas vésperas das eleições pre­sidenciais. Na época constituíram objecto de denúncias públicas, em particular de círculos próximos do partido no governo, mas apoiantes do candidato não sancionado pela cúpula do partido.
Com a crise as consequências de não se ter uma máquina tributária à altura fizeram-se sentir em força. Segundo o FMI, as receitas caíram devido não só à quebra da actividade económica, mas também porque a DGCI não dispunha de meios humanos e da expertise necessária para fazer os contribuintes em geral e principalmente os mais fortes cumprir plenamente a lei. No processo, a relação com os contribuintes piorou por falta de capacidade de resposta, particular­mente no que respeita às restituições do IUR e às devoluções do IVA. Os cida­dãos e as empresas sentiram-se prejudicados no seu rendimento disponível e na sua liquidez e capacidade de investir, enquanto o Estado pelas suas próprias palavras (OE 2013) confessava estar a financiar-se gratuitamente com o IUR não restituído. A reacção nefasta do governo perante o que é de facto resul­tado de má gestão da sua administração não ficou por aí. Procurou superar as deficiências da administração fiscal alargando as fontes de receitas com novos impostos e actualizações de taxas. É evidente que a competitividade das em­presas e do país não poderia deixar de sofrer com os custos e ineficiências daí resultantes.
O relatório põe a nu várias opções do governo prenhes de consequência. Um aspecto vital citado é o dos recursos humanos. A administração fiscal exige quadros altamente qualificados e motivados. Qualificados para estarem à altu­ra da complexidade do sistema e poderem responder às necessidades dos con­tribuintes e também dissuadir os tentados a contratar consultores na perspecti­va de contornar obrigações fiscais. Motivados não só no ambiente de trabalho como também na remuneração porque considerando os valores em jogo é de se prevenir situações que podem conduzir a favorecimento e mesmo corrup­ção. Ora o que diz o FMI é que a qualificação e motivação na DGCI estão muito aquém do desejável. Não há carreira porque não se fazem concursos públicos. Pessoas com mesma formação e perfil são pagos de forma diferenciada sem que haja razões objectivas para isso. Quadros dirigentes com deficiente capacidade de gestão e planeamento tendem a funcionar como .bombeiros.procurando responder a solicitações de outros sectores do ministério e de contribuintes.
Um outro aspecto grave que o documento aponta é o do sistema informático e a relação com o NOSi. Têm sérias dúvidas quanto à adequação da aplicação utilizada e estranham que aos utilizadores não é dado formação apropriada nem mesmo um manual para se orientarem. Resultado disso é o atraso de anos na construção de cadastros dos contribuintes e as dificuldades em obter do sis­tema recursos que por um lado facilitem a vida dos cidadãos e empresas na relação com o fisco e por outro permitam à DGCI detectar incumprimentos, fraudes e tentativas de evasão fiscal.
Perante tudo isto, várias questões se colocam: será que o que se passa no mi­nistério das Finanças é espelho do que acontece noutros ministérios? A admi­nistração pública encontra-se no mesmo estado da DGCI quando à qualificação e motivação dos seus quadros e capacidade de planeamento da sua activida­des? O NOSi, no qual tanto se tem investido, presta serviço a outros sectores do Estado da mesma forma como faz à DGCI descrita no relatório do FMI? Por onde anda a boa governação? O governa que esclareça o país.

  Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de  13 de Março de 2013

quarta-feira, março 06, 2013

Transformação ou miragem



 Na Europa, os países do Sul, os chamados PIGS (Portugal, Itália, Gré­cia e Espanha) foram os mais atingidos pela crise financeira. As razões são múltiplas, mas a opinião corrente é que as lideranças nacionais durante dé­cadas não fizeram as transformações que a entrada na zona euro impunha. De facto, uma união monetária com a Alemanha e outros países do norte da Europa exigia alguma convergência em termos de produtividade e de competitividade externa sob pena de se dividirem em países credores e pa­íses devedores. Infelizmente é o que veio a acontecer. Hoje para assegurar crescimento futuro são obrigados a adoptar políticas duras de austeridade e a fazer reformas dolorosas, que a curto prazo trazem desemprego, empo­brecimento geral e perda de qualidade de vida.
Nada disso era previsível anos atrás quando pareciam estar a moderni­zar-se num ritmo estonteante. Na época, os líderes projectavam a imagem de estar a cavalgar ondas de transformação. Inauguravam grandes infra­estruturas, apadrinhavam projectos de modernização e lançavam inicia­tivas tecnológicas de ponta. Exímios no marketing político e em relações públicas, apresentavam-se como a promessa da prosperidade crescente e imparável. Quando se caiu na realidade, ficou claro que muito do esplendor anterior, financiado com fundos comunitários a custo perdido e com dívida pública e privada a juros só possíveis no quadro de uma verdadeira união monetária e fiscal, não passava de “fogo-de-vista” e não contribuía para atrair investimento estrangeiro, abrir novos mercados e alargar a base ex­portadora. Hoje é claro para todos, principalmente para aqueles que mais pagam os excessos, as ilusões e as promessas não cumpridas, que os anos passados de suposta glória e transformação foram de desperdício, de opor­tunidades perdidas e mesmo de aproveitamentos menos lícitos.
A lição parece que não chegou a Cabo Verde. Ouvindo os governantes, fica-se com a impressão de déjà vu. A similaridade com o optimismo e o fulgor governo de Sócrates em Portugal antes da chegada da Troika é por demais evidente. Também aqui a mobilização de milhões de metros cúbi­cos de água, a aposta nas energias renováveis, a promoção das TICs e os clusters tirados quase literalmente da cartola prometem redenção e pros­peridade futura e levar Cabo Verde em 2030 a 12 mil dólares per capita: o ponto onde actualmente se encontram as Maurícias. Há porém uma dife­rença com Portugal. As infraestruturas em Cabo Verde não foram financia­dos com transferências de fundos europeus a custo perdido. Foi com dívida externa e o serviço da dívida já começou a pesar seriamente (ver paginas 28 e 29).
Apesar de o Primeiro-ministro José Maria Neves se ver como líder trans­formacional, a exemplo dos que citou na sua .aula magna.da terça-feira na Escola de Negócios e Governação, a realidade é que mesmo após 12 anos de governo contínuo, o essencial para a sustentabilidade do país não se concretizou. Na sequência dos investimentos públicos não vieram investi­mentos privados, o que indicia prioridades duvidosas, timings errados ou inadequações diversas. Sem o sector privado e sem investimento estrangei­ro e sem competitividade externa como assinalam os relatórios do Forum Económico Mundial e do Doing Business dificilmente se poderá garantir níveis de crescimento necessários durante anos e décadas para acabar com o desemprego, eliminar a pobreza e garantir prosperidade para todos. A estrutura de economia sem uma base diversificada e muito centrada no tu­rismo e ainda em modo de reciclagem da ajuda externa revela o grau da não concretização das transformações prometidas.
Criar novos paradigmas, lançar novas plataformas e ter iniciativas ou mesmo tirar o país da sua rotina habitual não são tarefas para qualquer líder. É mais tentador deixar-se seduzir pela aparência de sucesso e pela popularidade gerada pelo marketing político. Ou então, ficar pela conquis­ta de boa vontade junto da comunidade internacional para poder aceder a fundos que depois se utiliza para reproduzir o paternalismo do Estado e alimentar o assistencialismo e o conformismo das populações. Quando se quer realmente mudar, há riscos a percorrer e experiências a serem produ­zidas.
A marca dos verdadeiros líderes vêem-se mesmo nos momentos de saí­da. O exemplo último foi o do Papa Bento XVI que foi ao ponto de resignar para dar à Igreja a possibilidade de, com um novo Papa, de ultrapassar os escândalos sexuais, resolver problemas organizacionais e adaptar-se para o século XXI. Demonstra uma fibra que já tinha revelado na luta contra o rela­tivismo moral e pela afirmação de que a razão e fé não são incompatíveis.
As nações em momentos de encruzilhada na sua história precisam que a realidade não lhes sejam omitida com recurso ao marketing político ou que sejam desviadas do confronto da realidade por populismos similares ao de Hugo Chávez. Como nos diz a Europa do Sul, miragens pagam-se caro. 

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 6 de Março de 2013

quarta-feira, fevereiro 27, 2013

Défice de pluralismo



O pluralismo é sem qualquer dúvida um dos grandes ganhos da civilização que qualquer sociedade pode almejar. Suporta-se no direito à liberdade, nutre virtudes como a tolerância e vivifica o processo político com a profusão de ideias, soluções e alternativas de governação. O exercício enérgico do plura­lismo na sociedade cria a pressão necessária para que o Estado não extrapole a sua missão de servir a comunidade e evite transformar-se em predador de recursos comuns e numa ameaça aos direitos e liberdades dos cidadãos.
O debate do dia 25 de Fevereiro na Assembleia Nacional sobre o sector agrí­cola e os desafios do desenvolvimento futuro do país revelou-se um “não deba­te”, como já se tornou habitual. Em vez da avaliação dos problemas actuais do sector como acesso à água, ao crédito, a apoios tecnocientíficos, a transportes intra e inter-ilhas e a mercados e circuitos comerciais valorizadores dos pro­dutos agro-pecuários ficou-se em grande parte pela comparação estéril de governos e acções governativas separadas por décadas.
Independentemente de como cada um dos sujeitos parlamentares contri­buiu para isso, sucumbindo-se a tácticas de desvio do debate, uma coisa é certa: a Nação não viu esclarecida a situação actual, ficaram por compreen­der os desafios do momento e não foram avaliadas alternativas de solução. Naturalmente que é do governo que, pelas suas responsabilidades, se devia esperar maior engajamento para que o debate se fixasse sobre a actualidade e o tempo que lhe resta de mandato. Estranha-se por isso a paixão com que os membros do governo se entregam a discutir décadas e governos passados. Enveredando-se por esse caminho, o Parlamento falha em fiscalizar o governo e em fornecer no contraditório o sentimento da nação quanto aos problemas do presente e as suas expectativas para o futuro.
O bloqueio do processo político plural em sede parlamentar tem conse­quências graves na sociedade e no Estado. Produz intolerância e instiga o medo. Liberdades são coarctadas, iniciativas inibidas e frustrações alimenta­das. As pessoas muito relutantemente querem parecer diferentes e ser toma­das como críticos ao poder instituído. Também sofre a confrontação de ideias e de projectos políticos necessária à criação de alternativas de governação. Literalmente a comunidade é roubada da sua dinâmica e condenada a ficar-se pelos métodos conhecidos na resolução dos seus problemas. Se isso em abstracto é grave, na situação actual de crise internacional e de renovação das formas de comércio, manufactura e de prestação de serviço sob impulso de mudanças tecnológicas rápidas é de uma irresponsabilidade sem paralelo.
Dos partidos políticos em democracia espera-se que, enquanto espaços pri­vilegiados de participação, sejam viveiros de ideais, saibam canalizar energia e ambições de indivíduos no sentido de excelência e fomentar uma cultura de serviço nos seus dirigentes, indispensável à consecução dos papéis alter­nados de governo e oposição que são chamados a cumprir. O país deve poder beneficiar de toda essa actividade com visões múltiplas do que pode ser o fu­turo e com gente com competência política, executiva e engajamento à vida pública.
As mudanças de lideranças são momentos importantes para os partidos inventariarem o que de melhor têm para oferecer ao país. A preocupação dos partidos do arco do poder em se mostrarem coesos antes de partirem para a renovação pode não ser a atitude mais própria e útil. Quer-se ver coesão do partido à volta de uma liderança, mas depois dela e da sua plataforma política ter sido, no confronto intra-partidário, sufragada pela maioria dos militantes. Uma liderança dessas no governo dá mais garantia de sintonia e unidade de acção do que aquela derivada de compromissos pouco transparentes. Fechar-se para o diálogo interno não traz vantagens nem aos partidos nem ao país particularmente se se precisa de novas ideias para melhor enfrentar a actual conjuntura nacional e internacional em mutação rápida.
Prejudica particularmente o processo político actual o ataque sistemático à governação dos anos noventa. Primeiro, porque sendo descabido e estéril só leva à polarização partidária bloqueadora do sistema político. Segundo, porque partindo do ano 2013 e de actores políticos dificilmente fará justiça aos factos, ao contexto e à informação então disponível aos governantes. Ter­ceiro, porque em questionando o legado de um governo eleito por duas vezes com maioria qualificada superior a dois terços e que fez as reformas políticas e económicas em que se suporta o Cabo Verde moderno impede-se a consoli­dação do consenso básico sobre os fundamentos da república e a possibilida­de das forças políticas trabalharem juntas para garantir ao país um futuro de liberdade e desenvolvimento. Há que empurrar o Cabo Verde para além deste impasse.
                                                                                                                              Humberto Cardoso
Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 27 de Fevereiro

terça-feira, fevereiro 12, 2013

Falha da Liderança ou “muros de lamentação”

É Carnaval. Desfiles de grupos carnavalescos enchem de cor, alegria e gaiatice as ruas do Mindelo. Milhares de pessoas, incluindo estrangeiros, chegam das outras ilhas e de outros países para participar no Carnaval com maior tradição em Cabo Verde. Muitos, já com os seus trajes, juntam-se ao Grupo Samba Tropical que este ano comemora os seus 25 anos e cujo des-file nocturno já se tornou num grande atractivo do Carnaval mindelense. A alegria e a boa disposição das pessoas não provêm somente do ambiente de festas. Com a chegada dos “turistas” a economia da ilha dá um salto e os efeitos do aumento do consumo são sentidos em todos os sectores.
O impacto do Carnaval na economia de São Vicente, à semelhança do impacto do festival da Baía das Gatas e das festividades do fim de ano, faz relembrar a importância central para o desenvolvimento de São Vicente que é a ligação com o exterior. Mindelo nasceu com as vantagens ofere-cidas pelo Porto Grande no âmbito da globalização iniciada no século de-zanove. Vantagens de momento, porém, não se mantêm para sempre ou, se mantêm, ganham uma outra forma e importância. Entrementes podem surgir outras que importa identificar, potenciar e agir para as aproveitar. As dificuldades de São Vicente, expressas na elevada taxa de desemprego, resultam da inexistência de uma liderança que faça essa identificação e facilitação.
Ter a maior taxa de desemprego do país é certamente motivo de lamen-tação. Do chefe do governo espera-se que assuma a responsabilidade pelo fracasso, desajuste ou extemporaneidade das políticas aplicadas que tão fracos resultados obtiveram. Não se pode é atribuir subrepticiamente culpa aos desempregados pela sua situação falando em preguiça ou lamentando que não são capazes de se auto empregarem.  Nem se pode também acusar rir que algum “problema cultural” de pessimismo ou negativismo poderá estar a impedir uma população inteira de aproveitar condições suposta-mente óptimas para sacudir o marasmo económico e a falta de trabalho. Aliás, a existir algum problema cultural, seria de todo o país porquanto o que se passa em São Vicente acontece também nas outras ilhas.
O governo escolheu assumir a crise quando os donativos diminuíram e a dívida pública atingiu níveis críticos de sustentabilidade. Não ouviu os muitos avisos que davam conta que a economia nacional era pouca di-versificada e não direccionada para a exportação de bens e serviços. Não deu a devida importância à fraca competitividade do país e ao ambiente de negócios negativamente afectado pela burocracia e a centralização do poder. Conhecida como é a importância de políticas voltadas para a expor-tação na criação de emprego, no aumento de produtividade e na atracção de capitais externos, compreende-se por que uma postura contrária e não facilitadora do governo provoca desemprego elevado, crescimento anémi-co e tensões macroeconómicas graves.
Há quem veja na regionalização o remédio para esses males. Regionalização significando multiplicidade de centros de decisões e uma outra redistribuição dos fluxos externos postos à disposição de Cabo Verde. Mas a problemática de desenvolvimento talvez exija que se conteste o paradigma ainda predominante de reciclagem da ajuda externa e se adopte uma postura virada para fora, atenta às oportunidades e pró-activa na atracção do investimento externo. Os sinais de que é o caminho certo vêem-se na dinâmica que o turismo e o investimento externo trouxeram a várias ilhas não obstante os obstáculos, a insensibilidade e a falta de coordenação das autoridades já identificados no estudo do Banco Mundial divulgado por este jornal.
Sempre que o Carnaval ou outro evento sacudir a vida da ilha, fizer cir-cular dinheiro e animar os muitos sonhadores e aventureiros que ainda acreditam e investem, São Vicente deverá relembrar que o futuro, assim como o seu saudoso passado, terá que se basear numa ligação dinâmica com a economia mundial. E também ver que não é solução virar para dentro, alimentar bairrismos e submeter-se a políticas que trazem centraliza-ção e desincentivam o empresariado nacional. A solução está à vista de todos. Agarrá-la porém exigirá que se vá para além do ilusionismo político. Promessas de 13º mês, direitos na lei mas sem cobertura orçamental e clusters criados de cima para baixo devem ser submetidos a um escrutínio mais apertado. Quem se presta a servir, e recebe o mandato para tal, tem que estar aberto a críticas, prestar contas e responsabilizar-se pelos resul-tados da governação.
                                                                                                                                Humberto Cardoso
Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 12 de Fevereiro de 2013