No meio da consternação geral pela morte de Mário Soares surgiu mais uma vez a polémica à volta da independência de Cabo Verde. Mário Soares, em 2010, numa conferência na UNI-Mindelo e anteriormente, em 1993, numa conversa com Aristides Pereira teria dito o seguinte: “Eu sempre achei que Cabo Verde não deveria ter sido independente” e teria “muito a ganhar” caso tivesse mantido a ligação a Portugal”. Imediatamente surgiram dos quadrantes políticos do costume vozes (Pedro Pires, José Maria Neves, Corsino Tolentino) a desvalorizar essa opinião. O argumento de base é que Mário Soares só fez essa afirmação porque não acreditava então na viabilidade de Cabo Verde como país independente. Acrescentam que depois ele veio a reconhecer o erro e a constatar que realmente a independência valeu a pena. Para qualquer observador atento da vida política nacional não espanta que a matéria tenha vinda à tona neste momento. Sempre que há oportunidade, faz-se a pergunta retórica se valeu ou não a pena a independência de Cabo Verde. Acontece todos os anos pelo 5 de Julho e a resposta é um inequívoco sim para a auto-satisfação dos dirigentes do PAIGC que, em 1975, tomaram o poder e nele se mantiveram ditatorialmente durante 15 anos. Ultimamente têm-se procurado acrescentar à “glória dos libertadores” a imagem de visionários com referências a dúvidas então colocadas por personalidades e entidades estrangeiras em relação à viabilidade de uma vida independente das ilhas como aliás sempre se pôs em relação às Maurícias e à generalidade dos pequenos estados insulares. Para todos os outros que não os antigos “melhores filhos do povo” é evidente que discutir hoje se Cabo Verde devia ser ou não independente é uma questão ociosa. A independência é um pressuposto base da República e uma realidade incontornável. Mas manter polarizada a opinião sobre a independência ajuda a desviar a atenção para o facto que só a 13 de Janeiro de 1991 o povo cabo-verdiano exerceu realmente a sua auto-determinação, um direito que lhe tinha sido subtraído no processo de descolonização. E é essa lacuna prenhe de consequências graves que Mário Soares, o grande político da democracia portuguesa e amante confesso da liberdade, não podia deixar de lamentar quando as circunstâncias históricas forçaram a entrega das colónias aos movimentos de libertação cujos desígnios totalitários eram mais do que evidentes. Certamente que não tinha qualquer ilusão sobre a ditadura e o risco de guerra civil que logo à partida se anunciavam. Por isso, não é a sua opinião pessoal quanto a Cabo Verde ficar, ou não, ligado a Portugal que é a questão de fundo, mas sim o facto de se ter efectivamente impedido o povo de exercer o seu direito à auto-determinação como estabelecido na Carta das Nações Unidas e nas Declarações sobre a Descolonização de 1960 e 1966: “Todos os povos têm o direito de livremente determinar sem interferência externa o seu estatuto político e de realizar o seu desenvolvimento económico, social e cultural”. Segundo esses mesmos documentos, esse estatuto político pode ser independência, livre associação com outros Estados ou a emergência de outros estatutos políticos desde que de forma livre tenham sido escolhidos pelo povo. Como se sabe, os acontecimentos no país a partir de Dezembro de 1974 com a tomada da Rádio Barlavento e a prisão no campo do Tarrafal dos adversários do PAIGC impediram que esse “direito de escolha” fosse exercido. A proclamação da independência que veio a acontecer a 5 de Julho de 1975 constituiu uma forma da chamada auto-determinação externa, tomada pelo PAIGC em nome do povo e com a conivência das autoridades portuguesas, que deu a Cabo Verde o estatuto político de estado independente. Só no 13 de Janeiro de 1991 é que finalmente a auto-determinação interna pôde ser exercida, permitindo pela primeira vez ao povo de Cabo Verde eleger de forma livre e plural os seus representantes e governantes e de seguida criar o ambiente institucional necessário para a defesa dos direitos humanos e para a salvaguarda e consolidação da democracia. Quinze anos tinham-se passado e compreende-se que Mário Soares, que tanto lutou para que o 25 de Abril não degenerasse numa experiência totalitária – a Cuba da Europa nas palavras de Henry Kissinger – muitos anos depois continuasse a lamentar que a onda de liberdade e da democracia não tivesse chegado aos povos das ex-colónias no mesmo tempo que chegou ao povo português. O distanciamento de Mário Soares em relação a Cabo Verde que, segundo a Inforpress, Corsino Tolentino atribui à “nossa [da clique do PAIGC/PAICV] atitude de desafiarmos tudo e todos em defesa das nossas responsabilidades patrióticas” talvez viesse realmente do incómodo de ver como através de uma pura estratégia de poder da clique e não de qualquer responsabilidade patriótica se mantinha um país sob regime ditatorial durante quinze anos. Só pode ser isso porque afinal Mário Soares era, como o próprio Corsino Tolentino reconhece, “um político da liberdade universal”.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 789 de 11 de Janeiro de 2016.