A comissão permanente da AN já se tinha pronunciado a favor do levantamento da imunidade, mas o PAICV recorreu da decisão para a Plenária da AN. O choque partidário que se seguiu diminuiu o Parlamento, desinformou sobre a natureza real do instituto da imunidade e passou a ideia que via Parlamento se foge à justiça.
Ouvindo o debate, podia-se ter ficado com a ideia que as imunidades parlamentares são uma invenção cabo-verdiana, mais uma “caboverdura”. Não se teve o cuidado de explicar de como desde dos primórdios da democracia, e em respeito pelo princípio de separação de poderes, se garantiu que o Parlamento sendo o órgão plural que faz as leis e fiscaliza o governo não pode ficar sujeito a acções discricionárias de outros poderes, em particular do governo que controla a polícia. Com a imunidade parlamentar consegue-se, por um lado, defender os deputados de qualquer perseguição ou intimidação das autoridades e, por outro, conservar a configuração saída das eleições impedindo que os deputados sejam presos sem o consentimento da A.N. Por isso, nas suas duas vertentes, a irresponsabilidade (artigo 170 nº 1), ou seja, a impossibilidade de acção judicial contra os deputados por causa das suas opiniões e votos expressos no exercício das suas funções, e a inviolabilidade(artigo 170 nº 2 e 3), que condiciona a prisão ou o procedimento judicial do deputado a uma autorização prévia do Parlamento, excepto nos casos previstos na Lei Magna, a imunidade parlamentar está consagrado com pequenas nuances de diferença em todas as constituições democráticas. Ignorar este aspecto central e passar a imagem que a imunidade é algo que o deputado pode dispor ao seu bel-prazer, seja para o levantar porque “quem não deve, não teme”, seja para nele se refugiar numa tentativa de fuga à justiça, não é responsável. Como dizem os constitucionalistas “as imunidades dos deputados são instrumento objectivo de defesa do próprio Parlamento. Os deputados não podem renunciar a elas e o Parlamento não pode dispensá-las”.
Pelos posicionamentos ao longo da discussão percebe-se que o confronto não terminou com a votação que reconfirmou a decisão da Comissão Permanente. Prometem-se outros episódios no futuro próximo. Também de todos os lados se manifestaram vozes a propor mudanças na Constituição e na lei em matéria das imunidades no sentido de uma “colaboração pronta com a justiça” e de uma “igualdade de tratamento de todos os cidadãos”. A justificação é que durante o debate teria ficado no ar a ideia de que o actual regime de imunidades quase que se traduz numa forma de impunidade. Até se tinha deixado passar a ideia que o Parlamento ao não levantar a imunidade dos deputados abria o caminho para a prescrição dos casos em que alegadamente estariam envolvidos. Conclusão para alguns é que se tem que alterar o regime existente.
Nota-se nessa linha de discurso o populismo muito em voga no mundo de hoje em que imperfeições e ineficiências nas democracias e também alguns casos de abuso e corrupção são transformados em munições para mobilizar paixões na sociedade e desgastar as instituições democráticas. O alvo primeiro, como sempre, é o Parlamento e no caso das imunidades não foi excepção. É bom, porém, que se tenha em devida conta que não são só os deputados os contemplados pelas imunidades. Outros titulares dos órgãos do poder político também gozam de prerrogativas similares, designadamente o presidente da república que em caso algum pode ser preso preventivamente e que a crimes por ele cometidos fora do exercício das suas funções só responde perante o tribunal depois de terminar o mandato. Também os ministros só podem ser presos ou levados a julgamento com a autorização da Assembleia Nacional, o mesmo acontecendo com os juízes, mas com a autorização prévia do Conselho Superior da Magistratura.
As imunidades têm razão de ser e não estão isentas de críticas. Ao longo da história da democracia foram sujeitas a ataques diversos, mas, se no essencial persistem até hoje, é porque são indispensáveis para um funcionamento adequado do sistema democrático baseado no princípio de separação dos poderes. Só com um sistema funcional de checks and balance, de pesos e contrapesos, é que se pode evitar que surjam fenómenos perigosos na democracia como a deriva autocrática, a intolerância pela diferença, a tirania da maioria, o esmagamento das minorias e a limitação das liberdades. Abundam na história recente e passada exemplos que mostram o que acontece quando acaba o pluralismo e o poder concentra-se nas mãos de um chefe e os direitos fundamentais são espezinhados pelas autoridades.
Nesta fase em que se encontra a democracia cabo-verdiana é sempre bom ter em conta as duas recomendações que o cientista político da Universidade de Harvard, Steven Levitsky, faz para se manter um sistema democrático funcional. Primeiro, é fundamental que haja mútua tolerância e as partes vejam a actuação do outro como legítima. Uma segunda recomendação é que haja paciência e autocontrolo no exercício do poder e explica: em política, autocontrolo significa não fazer uso das prerrogativas institucionais até o limite, mesmo se for legal fazê-lo. Para isso é essencial que a polarização de posições que sempre acontece no jogo democrático não se desenvolva em posições extremadas a partir das quais as forças políticas se vejam quase como inimigas. O país necessita que haja sempre espaço para se encontrar os compromissos necessários para que a democracia e as instituições sejam salvaguardadas e a nação possa focar devidamente na realização dos seus objectivos de desenvolvimento. De outro modo lá não chegaremos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 844 de 31 de Janeiro de 2018.