A Lei da Regionalização continua em discussão na
Assembleia Nacional. Aprovada na generalidade em Novembro de 2018 foi
retomada em sede de discussão na especialidade na última reunião
plenária de Março findo. Os trabalhos no parlamento foram interrompidos
na sequência da não aprovação do artigo 6º sobre os órgãos da Região que
exigia uma maioria qualificada de dois terços dos votos. Criou-se um
impasse ao não se chegar a consenso em como proceder a partir da queda
de um artigo central da lei no que respeita à organização das regiões.
Segundo a RTC, o governo na pessoa do ministro dos Assuntos
Parlamentares prometeu rever a redacção do artigo sexto “chumbado” e
trazer de volta o diploma em Abril. Uma solução inédita e duvidosa, mas
não muito diferente do que se tem visto no processo de legislar sobre
autarquias supramunicipais, carregado como está de incongruências
várias.
Começou-se a querer legislar para
as regiões há cerca de dez anos atrás. O problema para quem tinha a
iniciativa foi sempre conseguir os votos das outras forças políticas e a
maioria qualificada necessária para passar a lei ao mesmo tempo que
assegurava que ficava com todos os louros de ter levado avante a lei e
os outros com o estigma de terem sido contra. Em 2010, na
impossibilidade de convencer a oposição a aprovar uma lei de criação de
regiões, o então governo de José Maria Neves fez aprovar o regime de
criação de regiões no quadro de uma lei da descentralização aprovada por
maioria absoluta e abstenção e voto contra das outras forças. E ficaram
com os louros. Agora com o governo de Ulisses Correia e Silva avança-se
com a lei das regiões, mas falta chegar a um acordo com as outras
forças políticas em boa parte porque há uma disputa para saber quem tem o
mérito da iniciativa e no processo vai-se fazendo acusações ou
insinuando de que os outros são contra. Apesar de não existirem estudos
que comprovam um sentimento maioritário da população a favor da
regionalização, nem evidência que seja a única via para combater com
eficiência e eficácia a excessiva centralização do país, todos os
partidos agem nessa matéria como se tratasse do grande prémio eleitoral a
conquistar a todo o custo.
Daí as múltiplas incongruências que se pode vislumbrar nas propostas apresentadas. A primeira que faz de cada ilha uma região, ou seja, uma autarquia supramunicipal, confronta-se com a dificuldade de nas ilhas com um único município o território e a população das duas categorias de autarquias coincidirem. Aparentemente não se está a criar regiões para ganhar escala, aumentar os recursos materiais e humanos e elevar o nível de actuação. Uma segunda incongruência é criar excepção à regra de região-ilha que tem como base o reconhecimento do percurso histórico e cultural único de cada uma delas – e por isso força a criação de regiões mesmo em ilhas como Brava e Maio com pequena população e fracos recursos – para depois criar duas regiões em Santiago com o simples argumento do peso demográfico da ilha. Uma terceira incongruência que é consequência da segunda vê-se na quebra do princípio da igualdade na representação das ilhas em instâncias de decisão sobre a utilização de recursos do Estado como parece consagrar a Constituição de 1992 ao atribuir ao Conselho dos Assuntos Regionais, onde as ilhas são igualmente representadas, competências na emissão de pareceres sobre o plano nacional de desenvolvimento regional e os planos regionais. Depois da revisão constitucional de 1999 e a criação do Conselho Económico e Social, a lei do Conselho de Desenvolvimento Regional aprovada em Julho de 2014 consagrou as mesmas competências e reafirmou o princípio da igualdade de representação das ilhas. Uma quinta incongruência é fazer da Praia a sede da região Santiago Sul e nessa condição centro gerador de uma identidade da região quando constitucionalmente se lhe dá um estatuto administrativo especial para se assumir em pleno como Capital da Nação.
Finalmente encontra-se uma incongruência de monta entre a intenção de fazer da regionalização o instrumento para criação de riqueza com valorização das especificidades próprias da ilha, potenciação de recursos e desenvolvimento de vantagens comparativas e competitivas e o discurso com enfase na redistribuição dos recursos do Estado pelas ilhas que tem acompanhado toda a agitação política sobre a matéria. Diz-se que se quer as ilhas mais autónomas, dinâmicas e voltadas para o futuro, mas de algum modo continua-se a encorajar e a alimentar reflexos nocivos já profundos nas pessoas e na sociedade cabo-verdiana produzidos pelo reciclar de dádivas vindas directamente do exterior ou por intermediação do poder central.
Os ganhos político-eleitorais, com vantagem para quem governa, que os partidos irão querer obter logo à cabeça poderá ser o maior obstáculo à substituição nas ilhas da narrativa de ressentimento de quem até agora se se considerou discriminado pela narrativa de possibilidade que o empoderamento das regiões deverá criar. Eleitoralismo e dependência ficaram ligados por demasiado tempo. Custa romper a ligação existente e construir outros laços entre o Poder e a sociedade no pressuposto de que é o sucesso na promoção do desenvolvimento para todos que assegura uma legitimidade maior e sustentada à governação.
Incongruências várias caracterizam políticas públicas em Cabo Verde devido à falta de visão e a ausência de estratégia que tem caracterizada a actuação dos governantes durante décadas Ao focar a sociedade na procura de meios propiciados pelos outros não se deixa espaço para encontrar via própria de produção de riqueza nem capacidade para aproveitar oportunidades. Não espanta que os anos passam e não se consegue confrontar adequadamente o problema do desemprego como mostram os últimos dados do INE mesmo face a um crescimento do PIB de 5,5%. A governação do país ao longo de décadas deixou a maior parte mão-de-obra em sectores de baixa produtividade, foi incapaz de no tempo próprio aproveitar as janelas que se abriram à indústria virada para exportação e criação rápida de emprego e não se mostrou suficientemente visionário para investir na educação de qualidade necessária para a sociedade digital e de conhecimento que se anunciava. Incongruências nas políticas públicas levam a isso. Infelizmente não há muitos sinais de se querer ir mais além, como se pode depreender das últimas discussões na Assembleia Nacional.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 905 de 03 de Abril de 2019.
Daí as múltiplas incongruências que se pode vislumbrar nas propostas apresentadas. A primeira que faz de cada ilha uma região, ou seja, uma autarquia supramunicipal, confronta-se com a dificuldade de nas ilhas com um único município o território e a população das duas categorias de autarquias coincidirem. Aparentemente não se está a criar regiões para ganhar escala, aumentar os recursos materiais e humanos e elevar o nível de actuação. Uma segunda incongruência é criar excepção à regra de região-ilha que tem como base o reconhecimento do percurso histórico e cultural único de cada uma delas – e por isso força a criação de regiões mesmo em ilhas como Brava e Maio com pequena população e fracos recursos – para depois criar duas regiões em Santiago com o simples argumento do peso demográfico da ilha. Uma terceira incongruência que é consequência da segunda vê-se na quebra do princípio da igualdade na representação das ilhas em instâncias de decisão sobre a utilização de recursos do Estado como parece consagrar a Constituição de 1992 ao atribuir ao Conselho dos Assuntos Regionais, onde as ilhas são igualmente representadas, competências na emissão de pareceres sobre o plano nacional de desenvolvimento regional e os planos regionais. Depois da revisão constitucional de 1999 e a criação do Conselho Económico e Social, a lei do Conselho de Desenvolvimento Regional aprovada em Julho de 2014 consagrou as mesmas competências e reafirmou o princípio da igualdade de representação das ilhas. Uma quinta incongruência é fazer da Praia a sede da região Santiago Sul e nessa condição centro gerador de uma identidade da região quando constitucionalmente se lhe dá um estatuto administrativo especial para se assumir em pleno como Capital da Nação.
Finalmente encontra-se uma incongruência de monta entre a intenção de fazer da regionalização o instrumento para criação de riqueza com valorização das especificidades próprias da ilha, potenciação de recursos e desenvolvimento de vantagens comparativas e competitivas e o discurso com enfase na redistribuição dos recursos do Estado pelas ilhas que tem acompanhado toda a agitação política sobre a matéria. Diz-se que se quer as ilhas mais autónomas, dinâmicas e voltadas para o futuro, mas de algum modo continua-se a encorajar e a alimentar reflexos nocivos já profundos nas pessoas e na sociedade cabo-verdiana produzidos pelo reciclar de dádivas vindas directamente do exterior ou por intermediação do poder central.
Os ganhos político-eleitorais, com vantagem para quem governa, que os partidos irão querer obter logo à cabeça poderá ser o maior obstáculo à substituição nas ilhas da narrativa de ressentimento de quem até agora se se considerou discriminado pela narrativa de possibilidade que o empoderamento das regiões deverá criar. Eleitoralismo e dependência ficaram ligados por demasiado tempo. Custa romper a ligação existente e construir outros laços entre o Poder e a sociedade no pressuposto de que é o sucesso na promoção do desenvolvimento para todos que assegura uma legitimidade maior e sustentada à governação.
Incongruências várias caracterizam políticas públicas em Cabo Verde devido à falta de visão e a ausência de estratégia que tem caracterizada a actuação dos governantes durante décadas Ao focar a sociedade na procura de meios propiciados pelos outros não se deixa espaço para encontrar via própria de produção de riqueza nem capacidade para aproveitar oportunidades. Não espanta que os anos passam e não se consegue confrontar adequadamente o problema do desemprego como mostram os últimos dados do INE mesmo face a um crescimento do PIB de 5,5%. A governação do país ao longo de décadas deixou a maior parte mão-de-obra em sectores de baixa produtividade, foi incapaz de no tempo próprio aproveitar as janelas que se abriram à indústria virada para exportação e criação rápida de emprego e não se mostrou suficientemente visionário para investir na educação de qualidade necessária para a sociedade digital e de conhecimento que se anunciava. Incongruências nas políticas públicas levam a isso. Infelizmente não há muitos sinais de se querer ir mais além, como se pode depreender das últimas discussões na Assembleia Nacional.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 905 de 03 de Abril de 2019.