Acusações de corrupção são das piores armas políticas
usadas nas democracias. Deixam saber que não há transparência na
condução dos assuntos públicos e que há interesses particulares a serem
protegidos em detrimento de bens e serviços que deveriam servir a todos.
Não poucas vezes são a arma de escolha
no combate contra as elites ou de arremesso entre as forças políticas na
sua luta pelo poder ou ainda para demonizar um adversário.
Independentemente do seu grau de correspondência à realidade, o impacto
sócio-político de acusações sistemáticas de corrupção é a todos os
níveis desastroso. Provocam descrença nas instituições, justificam a
desconfiança de muitos em relação aos políticos e alimentam o cinismo
sobre o próprio regime democrático. Em termos económicos, ao indiciar
que as regras não são iguais, aumenta os custos para os operadores,
favorece a concorrência desleal e prejudica o consumidor. Se para
qualquer país são enormes os prejuízos de fazer política com acusações
mútuas de corrupção, para os países que estão a se enveredar pelos
caminhos sinuosos do desenvolvimento são de facto terríveis.
A experiência de vários países demonstra que é possível evitar os efeitos da “política politiqueira” que em tudo vê corrupção com uma cultura de transparência e mecanismos de prestação de contas, com particular atenção a eventuais conflitos de interesses nos processos de decisão, com um sistema judicial eficaz e com uma imprensa livre e uma cidadania activa. A urgência em agir concertadamente para não deixar esse mal se instalar é cada vez maior no mundo de hoje. Mesmo em regimes não democráticos aumenta extraordinariamente a sensibilidade perante casos de corrupção como demonstra a ofensiva anti-corrupção que está a ter lugar em vários países asiáticos como a China, o Vietname e a Malásia. A legitimidade do governo desses países parece cada vez mais depender não só da dinâmica de crescimento que conseguem imprimir como também da sua eficácia em impedir que alguns se apropriem de forma desproporcional e ilegal da riqueza criada por todos.
Nas democracias também nos últimos anos cresceu consideravelmente a intolerância perante quaisquer sinais de corrupção. Basta ver o número de ex-chefes de Estado e de governo que estão ou já foram investigados por corrupção em países como a França, a Itália, Portugal, Espanha e Israel. Na sequência da crise financeira de 2007/2008 e da Grande Recessão ficou o sentimento no grande público que os custos da crise foram sofridos desigualmente pelos mais pobres enquanto uma elite financeira responsável pela crise foi salva e até lucrou com a situação. Esse sentimento de desencanto foi ainda agravado pela aparente incapacidade das elites políticas em encontrar soluções para as piores consequências da globalização que se têm traduzido na perda de trabalho e de rendimentos de milhares de pessoas na Europa e na América. Uma incapacidade que também demonstram em pôr cobro à concentração de riqueza num número cada vez mais restrito dos chamados 1% e em encontrar sistemas de redistribuição criativos que revalidem o actual contrato social e suporte a expectativa de diminuir a desigualdade social reinante. A perspectiva de um papel mais interventivo do Estado nos próximos anos tanto no papel de regulador como também de promotor da economia e de agente da redistribuição de riqueza, essencial para se manter a paz social, diminuir o ressentimento em relação às elites e construir um futuro, obriga a uma maior preocupação com a corrupção e a estar mais atento a políticas que a podem agravar.
Em países em desenvolvimento como Cabo Verde conseguir que o Estado desenvolva esses papéis essenciais que envolvem o fomento da iniciativa privada, a consolidação do tecido empresarial nacional e a atracção do investimento sem se deixar enredar no mar de interesses muitas vezes conflituantes não é tarefa fácil. Países como os do Sudeste asiático que em décadas passadas conseguiram vencer a batalha do desenvolvimento com um forte intervencionismo do Estado na economia e na criação de um sector privado dinâmico não o fizeram sem que num momento ou outro não tivessem sido confrontados por situações que configurem clientelismo, patronagem e nepotismo. Hoje o mundo é muito diferente e a intolerância a quaisquer actos que podem indiciar alguma relação de corrupção pode ser fatal. Mantém-se porém o objectivo central de fazer surgir e consolidar-se um sector empresarial moderno sem que o Estado se deixe apanhar pelos interesses. Saber a todo o momento conciliar esse objectivo com a realidade existente da fragilidade do sector, dos hábitos de dependência do Estado, dos constrangimentos ao empreendedorismo e das insuficiências do mercado não é certamente fácil. Muitos tentaram, poucos conseguiram.
A verdade é que não se consegue construir o ambiente adequado para uma interacção frutífera entre o público e o privado com vista a potenciar o desenvolvimento do país se a política se resumir a acusações de corrupção, se medidas políticas forem vistas sempre através de um prisma de que se quer lesar intencionalmente o interesse do país e se a insistente discussão do passado servir para invalidar qualquer discussão do futuro. O que se tem visto e ouvido nestas últimas semanas no parlamento, nos órgãos de comunicação social e nas redes sociais sugerem que é nessa direcção que teimosamente se está a querer ir. Que essa é a tendência que se nota em várias democracias, é um facto. Os populismos vivem de indignação, acusações e ressentimentos. Mais uma razão para não se deixar arrastar por tal caminho.
O desenvolvimento de Cabo Verde implica necessariamente uma intervenção estratégica do Estado na construção das bases da sua economia. É supostamente consenso que o crescimento económico terá que contar com um forte contribuição do sector privado que o país puder criar e motivar. Também é verdade que nenhum recurso que através dos impostos tenha sido subtraído ao rendimento das pessoas deva ser utilizado de forma ilegal por qualquer individualidade ou direccionado para interesses particulares. Se assim é, há que construir as bases institucionais, desenvolver a cultura de serviço público e fortalecer os checks and balances do sistema político para que o esforço de desenvolvimento do país não beneficie alguns em detrimentos de outros. Diálogo construtivo em vez de acusações mútuas de corrupção precisa-se para que se possa evitar os percalços de um caminho difícil e não cair numa deriva com consequências graves para o país.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 912 de 22 de Maio de 2019.
A experiência de vários países demonstra que é possível evitar os efeitos da “política politiqueira” que em tudo vê corrupção com uma cultura de transparência e mecanismos de prestação de contas, com particular atenção a eventuais conflitos de interesses nos processos de decisão, com um sistema judicial eficaz e com uma imprensa livre e uma cidadania activa. A urgência em agir concertadamente para não deixar esse mal se instalar é cada vez maior no mundo de hoje. Mesmo em regimes não democráticos aumenta extraordinariamente a sensibilidade perante casos de corrupção como demonstra a ofensiva anti-corrupção que está a ter lugar em vários países asiáticos como a China, o Vietname e a Malásia. A legitimidade do governo desses países parece cada vez mais depender não só da dinâmica de crescimento que conseguem imprimir como também da sua eficácia em impedir que alguns se apropriem de forma desproporcional e ilegal da riqueza criada por todos.
Nas democracias também nos últimos anos cresceu consideravelmente a intolerância perante quaisquer sinais de corrupção. Basta ver o número de ex-chefes de Estado e de governo que estão ou já foram investigados por corrupção em países como a França, a Itália, Portugal, Espanha e Israel. Na sequência da crise financeira de 2007/2008 e da Grande Recessão ficou o sentimento no grande público que os custos da crise foram sofridos desigualmente pelos mais pobres enquanto uma elite financeira responsável pela crise foi salva e até lucrou com a situação. Esse sentimento de desencanto foi ainda agravado pela aparente incapacidade das elites políticas em encontrar soluções para as piores consequências da globalização que se têm traduzido na perda de trabalho e de rendimentos de milhares de pessoas na Europa e na América. Uma incapacidade que também demonstram em pôr cobro à concentração de riqueza num número cada vez mais restrito dos chamados 1% e em encontrar sistemas de redistribuição criativos que revalidem o actual contrato social e suporte a expectativa de diminuir a desigualdade social reinante. A perspectiva de um papel mais interventivo do Estado nos próximos anos tanto no papel de regulador como também de promotor da economia e de agente da redistribuição de riqueza, essencial para se manter a paz social, diminuir o ressentimento em relação às elites e construir um futuro, obriga a uma maior preocupação com a corrupção e a estar mais atento a políticas que a podem agravar.
Em países em desenvolvimento como Cabo Verde conseguir que o Estado desenvolva esses papéis essenciais que envolvem o fomento da iniciativa privada, a consolidação do tecido empresarial nacional e a atracção do investimento sem se deixar enredar no mar de interesses muitas vezes conflituantes não é tarefa fácil. Países como os do Sudeste asiático que em décadas passadas conseguiram vencer a batalha do desenvolvimento com um forte intervencionismo do Estado na economia e na criação de um sector privado dinâmico não o fizeram sem que num momento ou outro não tivessem sido confrontados por situações que configurem clientelismo, patronagem e nepotismo. Hoje o mundo é muito diferente e a intolerância a quaisquer actos que podem indiciar alguma relação de corrupção pode ser fatal. Mantém-se porém o objectivo central de fazer surgir e consolidar-se um sector empresarial moderno sem que o Estado se deixe apanhar pelos interesses. Saber a todo o momento conciliar esse objectivo com a realidade existente da fragilidade do sector, dos hábitos de dependência do Estado, dos constrangimentos ao empreendedorismo e das insuficiências do mercado não é certamente fácil. Muitos tentaram, poucos conseguiram.
A verdade é que não se consegue construir o ambiente adequado para uma interacção frutífera entre o público e o privado com vista a potenciar o desenvolvimento do país se a política se resumir a acusações de corrupção, se medidas políticas forem vistas sempre através de um prisma de que se quer lesar intencionalmente o interesse do país e se a insistente discussão do passado servir para invalidar qualquer discussão do futuro. O que se tem visto e ouvido nestas últimas semanas no parlamento, nos órgãos de comunicação social e nas redes sociais sugerem que é nessa direcção que teimosamente se está a querer ir. Que essa é a tendência que se nota em várias democracias, é um facto. Os populismos vivem de indignação, acusações e ressentimentos. Mais uma razão para não se deixar arrastar por tal caminho.
O desenvolvimento de Cabo Verde implica necessariamente uma intervenção estratégica do Estado na construção das bases da sua economia. É supostamente consenso que o crescimento económico terá que contar com um forte contribuição do sector privado que o país puder criar e motivar. Também é verdade que nenhum recurso que através dos impostos tenha sido subtraído ao rendimento das pessoas deva ser utilizado de forma ilegal por qualquer individualidade ou direccionado para interesses particulares. Se assim é, há que construir as bases institucionais, desenvolver a cultura de serviço público e fortalecer os checks and balances do sistema político para que o esforço de desenvolvimento do país não beneficie alguns em detrimentos de outros. Diálogo construtivo em vez de acusações mútuas de corrupção precisa-se para que se possa evitar os percalços de um caminho difícil e não cair numa deriva com consequências graves para o país.
Humberto Cardoso