Nos últimos dias o mundo passou a estar outra vez em sobressalto com o aparecimento de mais uma variante do vírus Sars-cov-2. O novo espécime detectado na África do Sul, e já declarado variante de preocupação pela Organização Mundial de Saúde (OMS), apresenta mais de 30 mutações em relação ao vírus original.
São mutações que, segundo os cientistas, podem vir a revelar-se facilitadores de contágio e indutores de mais casos de hospitalização e mortes por Covid-19. A rapidez com que se propagou em algumas zonas da África do Sul e o facto de já ter sido detectado em vários países e continentes sugere logo à partida alta transmissibilidade. Quanto à letalidade provavelmente vai-se ter que esperar umas semanas para conseguir dados suficientes para a aferir adequadamente. Preocupante é o facto de, aparentemente, estar a levar a taxas elevadas de hospitalização de crianças com menos de dois anos, o que a distingue de outras variantes que têm, em grande medida, poupado as crianças.
As reacções ao aparecimento da variante têm sido bastante fortes e até desproporcionais ao ponto de o presidente americano Joe Biden relembrar que foi classificada pela OMS como variante de preocupação mas não de pânico. A verdade é que um número significativo de países, particularmente países desenvolvidos da Europa, Ásia e América trataram de cortar viagens para um conjunto de países da África Austral logo que a informação sobre a variante foi facultada, sem se cuidar dos enormes prejuízos que estariam a causar a esses países. Uma reacção considerada por muitos como excessiva e que nem os ganhos discutíveis que podiam advir de um suposto isolamento das origens do novo surto da coronavírus justificavam.
De facto, não se está no mesmo ponto de há um ano atrás no que respeita à preparação para enfrentar surtos de coronavírus. Na época ainda não se tinha conhecimento profundo do vírus, não havia vacinas disponíveis e não se podia contar com antivirais (molnupiravir and Paxlovid) em forma de comprimidos bastante efectivos no combate aos sintomas mais graves da covid-19 a poucos dias ou semanas de serem autorizados pelas reguladoras do sector da saúde na América e na Europa. Ainda bem que, de alguma forma, depois desse passo em falso se está a procurar compensar esses países africanos com gestos de solidariedade que incluem grandes ofertas de vacinas e outros produtos necessários para um combate efectivo contra a pandemia.
Devia ser fácil para todos compreender que o que a humanidade enfrenta é uma pandemia e que a resposta efectiva à ameaça não pode ser pelo isolamento. Tem que ser simultaneamente local e global. De outra maneira, deixando milhares e milhões de pessoas por vacinar, sem ser testadas e não praticando adequadamente as regras de distanciamento social e de utilização de máscaras, só se está a disponibilizar viveiros selectos e diversificados para o vírus produzir mutações que depois partindo de um ponto de origem, não interessa onde no mundo, acaba por chegar em pouco tempo a qualquer outro lugar da face da Terra.
A falta de racionalidade no combate global à pandemia tem a sua contraparte ao nível nacional na resistência à vacinação e na desvalorização que certos grupos e personalidades fazem das vacinas, das medidas de distanciamento global e do uso de máscaras nas ruas, em recintos fechados e em encontros massivos das pessoas. A tensão polarizante criada por esse tipo de atitude diminui consideravelmente a eficácia das medidas tomadas porque na prática deixa sempre uma parte da população desprotegida no seio da qual o vírus pode fazer mutações, desenvolver estratégias para ser mais eficiente na infecção dos humanos e preparar o caminho para surtos sucessivos de covid-19. O mesmo acontece quando largas camadas da população do globo ficam sem vacinas e sem os cuidados que devem ser dispensados aos que são imunodeprimidos ou foram submetidas a reinfecções sucessivas da coronavírus por causa de tratamento inadequado.
O resultado desse tipo de comportamento em termos de variantes potencialmente mais perigosas e de sucessivos surtos da covid-19, aumentando incertezas e provocando disrupções sucessivas da vida das pessoas a todos os níveis, devia ser óbvio para todos e forçar mudanças sérias de atitude, mas não é. Pelo contrário depara-se é com esforços de alguns, em geral os mais afortunados, em procurar açambarcar vacinas, controlar patentes para maximizar lucros e sempre que confrontados com a realidade de novos surtos de covid-19 recorrer a medidas de isolamento. Com isso, aumentam extraordinariamente as incertezas nos países pobres, na prática alimentando o círculo vicioso que tende a perpetuar o problema e a reproduzir as condições que vão quase por certo garantir surtos sucessivos do vírus num futuro não muito longínquo.
Um dos grandes enigmas do nosso tempo é o facto de perante uma ameaça global com a magnitude da covid-19 não se ver crescer uma onda de solidariedade que fosse a expressão forte e sem ambiguidade da consciência de uma humanidade comum. Obras de ficção na literatura e no cinema têm repetidamente debruçado sobre esse momento em que, face à ameaça ou choque externo de contornos planetários, toda a humanidade se unia no esforço para o combater. A verdade é que pelo menos até agora a pandemia da covid-19 ainda não despertou esse sentimento de união e a outra grande emergência planetária, que são as alterações climáticas, tem ficado muito aquém do que seria desejável, como se viu semanas atrás no encontro da COP26 na Escócia.
Essa falta de sentido de urgência manifesta-se também ao nível das políticas nacionais de vários países em que muitas vezes a tendência é continuar na mesma toada de sempre mas com os olhos postos nas novas linhas de financiamentos. Há casos em que se aproveita facilidades de crédito – como por exemplo, a chamada bazuca financeira da União Europeia ou outros fundos facultados por organizações multilaterais criadas para responder às alterações climáticas e às necessidades da transição energética e da transição digital – para fazer mais do mesmo. Raros são os casos, como na Itália de Mario Draghi onde se vai conseguindo reunir vontades para fazer as reformas que se impõem neste momento charneira da vida da humanidade, provando mais uma vez a importância de se ter lideranças visionárias, competentes e comprometidas com o bem público.
Em Cabo Verde o peso da dívida pública, as limitações orçamentais de um país que sofreu das piores contracções da sua economia durante a pandemia e as incertezas quanto a uma retoma sustentada como vem assinalando o BCV não parecem ser razão suficiente para se ultrapassar a rigidez do discurso e do debate político e encontrar compromissos necessários para avançar. A forma como vem sendo tratada a questão da elevação do tecto da dívida interna e do aumento proposto dos impostos é prova de como questiúnculas partidárias tomam precedência sobre tudo o resto deixando o país sem a possibilidade do diálogo necessário para encontrar saídas para os graves problemas existentes. O quase pânico gerado pelo repentino surgimento da variante ómicron da Sars-Cov-2 e as incertezas para as viagens e para o turismo que criou devia ser mais um aviso de como a crise pandémica ainda não terminou e que a retoma da normalidade anterior não é para tão cedo como muitas vezes os governantes se mostram ávidos de proclamar.
Necessário se torna ir além dos discursos repetitivos e presos no passado de governação dos partidos do arco de poder para se focar na procura de soluções para os graves problemas que se colocam agora e também para enfrentar o próximo ano de 2022 que, segundo alguns observadores, estará a perfilar-se como uma espécie de annus horrible com muitas incertezas.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1044 de 1 de Dezembro de 2021.