segunda-feira, dezembro 05, 2022

Corrida ao voto não deve prevalecer

 

Segundo os dados do Instituto Nacional de Estatísticas divulgados ontem, dia 29 de Novembro, o indicador de confiança no consumidor continuou a cair no terceiro trimestre. Inquiridas, as famílias cabo-verdianas fazem uma apreciação negativa do que para os próximos 12 meses será tanto a sua situação financeira como a situação económica do país. A esmagadora maioria confessa incapacidade de fazer qualquer poupança e o número dos já poucos que podiam pensar em comprar carro, ou construir casa, diminui. As incertezas para o ano 2023 são muitas. Está-se perante múltiplas crises e é natural que haja alguma cautela ou mesmo pessimismo em relação ao futuro próximo considerando que ninguém realmente sabe como irá terminar a guerra na Ucrânia e como se irá resolver a crise energética e diminuir a pressão inflacionista que tem prejudicado toda a gente em todo o mundo.

É um sentimento que de certa forma também é partilhado por instituições como o BCV no seu relatório de política monetária e de parceiros como o GAO no seu último comunicado de 18 de Novembro e também patente nas últimas recomendações do FMI. Demonstram sobriedade nas suas projecções e estimam o crescimento económico de Cabo Verde para o ano 2023 à volta de 8,3% e 8%. Do lado do governo, quase com euforia deixa-se passar a ideia que o país poderá crescer dois dígitos. Também dessas instituições ouvem-se recomendações para se conter o défice orçamental e a dívida pública, para se apoiar quem realmente precisa e durante o tempo estritamente necessário e para se investir na competitividade, produtividade e diversificação da economia. Do governo fala-se em alargar o Estado social, eliminar a pobreza extrema e diminuir a pobreza, mas não fica claro que isso só é sustentável com criação de riqueza nacional. De outra forma, terminados os projectos de ajuda externa, na primeira crise revelam-se as vulnerabilidades anteriores e fica claro para todos a precariedade das populações.

Curiosamente, quem em contraste com o sentimento generalizado das pessoas parece compartilhar o aparente optimismo que emana dos lados do governo é a oposição, mas por razões diferentes. O governo ao projectar optimismo quer destacar o sucesso da governação. A oposição aproveita-se da perspectiva rósea do país para reivindicações que embaraçam quem governa e a deixam de bem com sectores da sociedade que poderiam beneficiar da iniciativa. Um resultado de todo esse jogo em nome da caça ao voto é a impressão de que a classe política está algo desfasada do que se passa no país e a projectar e a discutir o futuro económico e social numa perspectiva que nem é comungada pelas instituições mais sóbrias (BCV, FMI, GAO) na apreciação do contexto nacional e internacional, nem pela esmagadora maioria da população do país, como se pode depreender do inquérito do INE.

Compreende-se assim porque da discussão da proposta do Orçamento do Estado, na semana passada, a oposição saiu a acusar que nenhuma das suas propostas foi absorvida e em resposta o primeiro-ministro na comunicação da segunda-feira veio notar que na discussão do Orçamento do Estado “as propostas da oposição são mais para criar problemas do que para resolver problemas”. Acrescentou ainda que são despidas de racionalidade porque “pedem para reduzir o peso da dívida pública e depois vêm com propostas que aumentam a despesa”. Mas governar é priorizar e não é expectável que a oposição e o governo comunguem das mesmas prioridades particularmente quando não há incentivo de nenhuma das partes para se chegar a acordos.

É facto que em Cabo Verde os governos têm sido de maioria absoluta, e como não precisam dos votos dos outros partidos para passar o Orçamento do Estado, não se sentem na necessidade de negociar qualquer proposta vinda das outras bancadas. Aliás, quando pedem à oposição para votar favoravelmente é só para depois a acusar de não querer ou de não se prestar a servir o interesse nacional. Orçamentos do Estado reflectem as opções de política de cada partido e só em situações excepcionais seria expectável que poderiam disponibilizar-se para chegar a algum tipo de compromisso. Como em geral não reconhecem situações excepcionais, ninguém, e em particular os partidos na oposição, se arriscam a perder negociando com o governo.

Curiosamente, neste tipo de arranjos, em que a corrida ao voto parece ser o móbil principal e razão de discórdia, há questões aparentemente tabu. Num momento de maior rigor na definição das prioridades ninguém parece contestar as centenas de milhares de contos gastos em campos relvados por todo o país, ou, num Estado supostamente laico, os investimentos também em centenas de milhares de contos nas igrejas em nome da salvaguarda do património religioso para servir um turismo diversificado. Prefere-se ficar pelo que dá dividendos políticos rápidos porque traz à tona sentimentos como ganância, inveja e ressentimento como são os cargos, as viagens e os carros. Outros projectos que deviam ser estranhos a um Estado sujeito a comando constitucional que o impede de impor ideologias, expressões estéticas e filosóficas aos cidadãos e à sociedade também parecem não merecer escrutínio mais apertado de todos.

É o caso da promessa feita, esta terça-feira, pelo governo de “tudo fazer” para apoiar o projecto da Fundação Amilcar Cabral que, segundo uma nota de imprensa, “decorre da necessidade de os principais protagonistas dessa história narrarem em primeira pessoa a gesta heroica e libertadora de seus povos, visando repor a verdade histórica, a qual vem sendo deliberadamente adulterada nos últimos tempos”. Ninguém compreende como um Estado liberal e democrático como o de Cabo Verde pode querer apoiar ou financiar um projecto dos antigos dirigentes do partido único, que nos moldes descritos mais parece uma acção de Agitação e Propaganda (agitprop), para salvaguardar a memória da luta de libertação que legitimou esses regimes, do que escrever História. Até parece que o surrealismo impera com a maior complacência de todos quando tal não devia ser, considerando os tempos críticos vividos actualmente e as reais prioridades às quais se tem de dar uma resposta eficaz e tempestiva.

As crises múltiplas que afligem o mundo poderiam ser uma oportunidade para, em algumas questões essenciais, se transcender legislatura e agendas partidárias. Mas, sem acordo sobre a situação real do país e em dissintonia com o sentir das populações tudo leva a crer que não vai acontecer. É mais provável que o jogo de quem dá ou promete mais continue. Dizer um basta a isso é fundamental para se evitar o resvalar para as imperfeições de uma democracia simplesmente eleitoral. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1096 de 30 de Novembro de 2022.

segunda-feira, novembro 28, 2022

Quer-se debate construtivo e voltado para o futuro

 

​Nas vésperas da discussão na especialidade do Orçamento do Estado para o ano 2023 vai-se mais uma vez a debate com o Primeiro-Ministro na Assembleia Nacional com o tema “A Transparência como factor de desenvolvimento”.

No ano passado tinha sido o mesmo tema e, recorrentemente, volta-se às questões de governança e de acountability sem que, pelo tom e substância de debates subsequentes no parlamento, se perceba que houve algum progresso no sentido supostamente desejado. Os argumentos continuam primários, não são avançadas soluções e não se vê vontade para fazer reformas, presos como todos parecem estar aos cálculos eleitorais, independentemente da distância que no momento se está das eleições. Os debates acabam por traduzir-se em simples oportunidades para acusações mútuas, para suspeições de favoritismos e até de corrupção e para denúncias de partidarização da administração do Estado. 

Dificilmente no debate de hoje, dia 23 de Novembro, será muito diferente. E é pena porque os tempos actuais de grandes incertezas exigem que se renove e se consolide confiança na democracia. Para isso, porém, é fundamental que, como alguém bem disse, sejam disponibilizados “instrumentos que poderão permitir uma maior transparência, verdade e clareza na defesa de uma sociedade aberta, na qual as políticas públicas resultem de opções realmente partilhadas por todos e adequadamente sujeitas ao controlo efectivo dos cidadãos”. Num ambiente em que se privilegie mais os supostos ganhos de deixar mal o outro, como se todos estivessem envolvidos num jogo de soma zero, não há muito espaço para se chegar a acordo sobre como afinar esses instrumentos. Nem mesmo para reconhecer o caminho em termos institucionais que já se percorreu nas três décadas da democracia para se combater a opacidade do Estado e fazer da transparência e da accountability um princípio fundamental do Estado de Direito democrático. 

De facto, apesar das querelas constantes avançou-se e muito nestes trinta anos. Não é à toa a posição actual de Cabo Verde nos ranking de governação (51) e de corrupção (39). Poderia ser melhor se houvesse um comprometimento para que certas reformas chaves na administração do Estado tivessem continuidade para além das legislaturas. Diferentemente de países tão diferentes como as Maurícias e Botswana que, mesmo com alternância no governo, conseguiram manter uma orientação estratégica consistente e que lhes proporcionou crescimento e prosperidade e os colocou entre os primeiros de África, Cabo Verde deixou-se tolher no seu desenvolvimento pela crispação política. Com isso, quebrou-se o ritmo de reformas e alimentaram-se resistências às mesmas, enquanto o discurso político degradava-se e fixava-se completamente fora de contexto no passado das realizações no governo de cada partido. Depois perguntava-se porque não tiveram continuidade. 

Quando se institui essa forma de fazer política corre-se o risco do país paulatinamente deixar de contar com visões de desenvolvimento dos diferentes partidos porque, de facto, da forma como politicamente se engajam já não estão virados para o futuro. 

A democracia perde porque não apresenta à sociedade reais alternativas mas sim versões “do mais do mesmo”. Por outro lado, toda a acção política passa a configurar no que já foi chamado de técnicas de poder, de como ocupar e usar o Estado para dominar a sociedade e a economia. O calculismo eleitoral acaba por se impor e toda a oportunidade é tida como boa para ganhar pontos sobre o adversário. A tentação maior será de transformar o adversário no “outro” que, conforme as circunstâncias, se pode apresentar como não defensor dos interesses do país, de profeta de desgraças e até de anti-patriota. A democracia, porque baseada no respeito pela dignidade da pessoa humana, reconhece que os indivíduos e cidadãos são livres e têm interesses e que esses interesses são diversos. O facto de se suportar no pluralismo e na tolerância assumidos por todos como princípios permite que da interacção desses interesses resulte o interesse geral. Ninguém, seja ele indivíduo ou grupo, detém o monopólio da verdade ou encarna sozinho o interesse público. Da organização política social e económica que resultam dos princípios democráticos e do Estado de Direito espera-se que emerjam as mais ricas expressões de criatividade, de capacidade inovadora e de energia e vontade para correr riscos e criar o novo. E isso é provado historicamente pelas democracias a todos os níveis, designadamente de crescimento económico, de qualidade de vida, dos avanços científicos e tecnológicos e de expressão artística, quando comparadas com formas de poder autocrático, sejam eles autoritários ou totalitários. Empobrecese, pois, a democracia e o país quando se deixa instituir uma forma de fazer política que exclui e toma o adversário como inimigo e não representativo de interesses legítimos dentro da comunidade, os quais, pela sua expressão contribuem para se definir o interesse nacional. 

Em Cabo Verde, nota-se ainda hoje resistências ao pluralismo e à expressão da diversidade de interesses. Sente-se na hostilidade aos partidos e ao multipartidarismo em certos círculos que, curiosamente, logo nos primórdios da democracia já denunciavam os males do bipartidarismo. Vê-se também na desconfiança como certos sectores da sociedade encaram a iniciativa privada e actividade empresarial e seu impacto nos rendimentos e bem-estar dos indivíduos que são bem sucedidos. Ainda tributários da ideia de que o Estado é o principal provedor de recursos no país não interiorizam como realmente se cria riqueza e como se pode organizar para garantir rendimentos e combater a pobreza de forma sustentada por outras vias que não a da mobilização de recursos externos. A relutância sentida à volta dessas questões não é de estranhar considerando a trajectória histórico- político do arquipélago ao longo da qual se cultivou o igualitarismo, se entregou a política a um grupo supostamente impoluto, porque na “luta” se suicidou como classe social, e se combateu a iniciativa e expressão individual enquanto se procurava enquadrar as pessoas em organizações de massa. 

A política no presente ainda é marcada por confrontos que nos debates trazem ao de cima todo esse legado. Com certo tipo de acusações procura-se excluir o adversário e retirar qualquer legitimidade ou credibilidade aos seus argumentos. Com as suspeições cria-se o ambiente adequado para desconfiança em relação às intenções. Claramente que debates que tem como foco escrutinar a actividade estatal e do governo são os mais propícios para esse tipo de exercício. Em nome da transparência, em vez de procurar consolidar as instituições de controlo e aprimorar o sistema de pesos e contrapesos de forma a se exigir uma prestação de contas atempada e responsável e cada vez mais rigorosa e intransigente, opta-se por repisar velhos argumentos, repetir escaramuças antigas e sair de mãos a abanar depois de mais um debate. 

Há que abandonar essa forma de actuação que não é salutar para a democracia e não ajuda o país e as suas gentes. Se não for agora, que o mundo e também Cabo Verde enfrentam crises múltiplas e sem precedentes, quando será?

Humberto Cardoso

Texto publicado originalmente na edição nº1095 do Expresso das Ilhas de 23 de Novembro

segunda-feira, novembro 21, 2022

Câmaras e populismo: Reforçar pesos e contrapesos

 Com os resultados surpreendentes das eleições brasileiras no dia 30 de Outubro, seguidas das americanas a 9 de Novembro, ouviu-se, no entender de muitos observadores, o quebrar da onda de populismo que há anos tem posto em causa os valores liberais e até ameaçado de morte as democracias.

Bolsonaro e Trump são as duas personalidades cujas vitórias eleitorais em países com peso e influência global tinham tornado plausível a ideia de inverter o curso das democracias e caminhar para autocracias eleitorais. As derrotas por eles sofridas nas eleições referidas necessariamente irão levar a rever o quão longe poderão ir outros movimentos de inspiração populista que vem tendo algum grau de sucesso em países como Hungria, Itália, Polónia e Israel. A verdade é que o ambiente propício para essa forma de entender e fazer política vai continuar a existir e para as democracias particularmente as mais recentes ou ainda pouco consolidadas a questão que se coloca é como atenuar ou neutralizar os seus componentes e, quando isso não for possível, como sobreviver às investidas.

Da experiência do populismo neste século, e em particular nos últimos dez anos, se pode provavelmente dizer que já se viu o “filme” completo: de como se mobilizam paixões no eleitorado servindo-se do nacionalismo, do medo e do ressentimento para chegar ao poder e, como a partir de lá, se move decididamente para fragilizar as instituições, descredibilizar os médias e o sistema judicial, ao mesmo tempo que é afirmado o poder autocrático do líder. Ao longo de todo o processo o “chefe” aparenta ter impunidade perante tudo e todos. Procura mostrar que pode sobrepor-se à lei e às normas estabelecidas, menorizar o papel tradicional dos partidos e do parlamento e, como se viu nas eleições americanas, até proclamar que não aceita o resultado eleitoral se não lhe for favorável. E essa percepção de impunidade tende a consolidar o suporte dos seus seguidores mesmo quando sinais graves de incompetência na governação com resultados às vezes catastróficos, como aconteceu durante a pandemia da Covid-19 nos Estados Unidos com Trump e no Brasil com Bolsonaro. A pouca diferença nas eleições, apesar de desfavorável para os populistas, dá conta de como a sociedade fica polarizada e o quanto se desviou dos padrões da racionalidade, da civilidade e do diálogo político suportado nos factos.

Nenhuma democracia está livre de derivas populistas, especialmente agora que se vive uma época que alguns já chamam de “policrise” em que as crises se sucedem umas às outras e os seus efeitos, interagindo de forma complexa, criam imprevistos e incertezas. E certamente que Cabo Verde não é excepção. A tentação populista existe e é visível a todos os níveis de governação e do exercício do poder. Poderá ganhar força se, perante a incapacidade de se estabelecer um forte sentido de solidariedade nacional em situação de precariedade geral, for desencadeada uma corrida aos recursos do país em particular os públicos. Quando é assim, tudo, designadamente sentimentos de abandono, ressentimentos anti-elites e frustrações de diversa ordem, pode servir para inflamar paixões e abrir caminho à ascensão de pequenos e grandes autocratas. Mas, como bem demonstram as experiências referidas de populismo, o que finalmente põe algum travão à deriva e evita que desemboque na autocracia é a insistência na aplicação nas regras do jogo democrático, no uso dos pesos e contrapesos do sistema político e na afirmação a todo o tempo do primado da lei.

Mais uma razão para uma acção concertada dos vários actores políticos para se pôr cobro à crise político-institucional existente nos municípios da Praia e de São Vicente. Tanto um como o outro tem câmara municipal com composição plural mas as forças políticas não conseguem entender-se quanto ás regras do jogo democrático quando elas deviam ser claras e suportadas por trinta anos de experiência de poder local democrático no país. Não é à toa que só uma única vez, no ano de 1995 em São Vicente, foram realizadas eleições intercalares para se ultrapassar bloqueios nos órgãos municipais. O sistema de governo local é estável apesar do que comparativamente se pode considerar de poderes excessivos atribuídos ao presidente da câmara e que podem deixar espaço para derivas populistas e autocráticas. De facto, a colegialidade da câmara tende a ser sacrificada a favor do poder do presidente e com ela o equilíbrio de poderes no município. De acordo com a Constituição, artº 234, é a câmara, enquanto órgão executivo colegial, que é responsável perante a Assembleia Municipal.

A Constituição, ao estabelecer no artº 121 que os órgãos de poder político colegiais só deliberam com a presença da maioria dos seus membros reforça a natureza colegial e obriga os membros a um diálogo para garantir que o órgão seja efectivo e representativo dos seus eleitores. Parece daí lógico que o que realmente não se pode ter sob pena de desvirtuar toda a razão de ser do sistema é a deliberação de um único eleito ou de uma minoria de eleitos sobre matérias que são da competência da câmara municipal. No caso do imbróglio à volta do orçamento apresentado à assembleia municipal da Praia é evidente que devia resultar de uma deliberação da câmara, da mesma forma que a proposta de orçamento do Estado só vai para discussão e aprovação no parlamento depois de aprovada no conselho de ministros que é o órgão colegial do governo. A proposta do OE não é do primeiro-ministro nem do ministro de finanças, que o elabora, mas sim do governo. E certamente que não seria pela via de uma lei de finanças locais, como se vem sugerindo, que o legislador iria alterar as competências de um órgão de poder político como é a câmara municipal.

Aliás, não é esse o entendimento que todos os órgãos municipais do país, ao longo das três décadas, têm dos procedimentos a seguir na aprovação dos instrumentos fundamentais do município que são o plano de actividades e o orçamento. Insistir em ir por procedimento que não é usual e aceite configura muito do que se tornou prática entre os populistas nas suas investidas contra as instituições. Em São Vicente e na Praia o conflito com o presidente da câmara aparentemente bloqueou o órgão executivo colegial com uma diferença entre os dois casos. Em São Vicente o presidente não ganhou com uma maioria de vereadores e, in extremis, os outros vereadores podem provocar a perda de quórum do órgão e forçar eleições intercalares para reconfigurar a câmara municipal. Na Praia foi o próprio presidente, aparentemente por falta de diálogo, que acabou com a maioria recebida nas últimas eleições e agora procura esvaziar a câmara das suas competências.

Claro que isso só aconteceria com a conivência da mesa da assembleia municipal e da sua maioria de eleitos e com isso efectivamente colocando todos os poderes no município nas mãos do presidente da câmara. Esse é um resultado que não pode ser visto com complacência por parte de todos os outros poderes que garantem que a constituição é cumprida, as regras do jogo democrático são seguidas e que a legalidade no exercício do poder é respeitada. Se faz escola ao nível local essas acções ostensivas para esvaziar de competências os órgãos eleitos, não dura muito tempo que práticas similares sejam tentadas noutras sedes do poder político.

A dificuldade em reverter situações de atropelo às democracias e suas instituições que as últimas eleições brasileiras e americanas revelaram devia um ser aviso a todos os actores políticos para que, seja na sua actuação directa, seja no processo de nomeação de titulares de cargos públicos, tenham presente a importância crucial para a democracia de se ter funcional e efectivo o sistema de pesos e contrapesos previsto na constituição e nas leis.

Humberto Cardoso

Texto publicado originalmente na edição nº1094 do Expresso das Ilhas de 16 de Novembro

segunda-feira, novembro 14, 2022

Foco, um ano depois

Foi há precisamente um ano a tomada de posse do Presidente da República José Maria Neves. Com esse acto terminava o ciclo eleitoral que se tinha iniciado em Outubro de 2020 com as eleições autárquicas e depois continuado nas legislativas de Abril de 2021. À frente, Cabo Verde poderia contar com três anos sem pleito eleitoral, o que provavelmente viria a jeito. Praticamente todo o período eleitoral verificou-se durante a pandemia da covid-19 e o país precisaria de uma certa acalmia nas disputas partidárias para melhor poder focar em como trazer de volta a economia depois de uma violenta contracção de quase 15% do PIB e em como construir bases para resistir futuros choques. Infelizmente não foi isso que aconteceu apesar da invasão da Ucrânia pela Rússia e do seu impacto global a vários níveis terem vindo relembrar a urgência em se obter convergências em questões fundamentais e em conseguir mobilizar vontades para a consecução dos grandes objectivos do desenvolvimento.

O Presidente da República foi eleito por uma maioria confortável e, apesar de ser originariamente de uma área política adversária da do governo, não se descortinava, à partida, que poderiam surgir tensões que impedissem consensos nacionais. Até porque o governo é suportado por uma maioria parlamentar clara, o que em princípio limita o espaço para protagonismos do tipo que se viu recentemente com governos minoritário e a chamada “geringonça” em Portugal. Por outro lado, o que está em jogo no momento é a recuperação da dinâmica pré covid-19 e a preparação do país para enfrentar as incertezas e imprevistos que vão aparecendo quase todos os dias, algo que devia ser a preocupação chave de todos os actores políticos. Por isso é que não deixa de ser revelador o facto de até agora, passado um ano, não se ter conseguido ir além do ambiente habitual de crispação, dos ruídos causados pelo excessivo protagonismo comunicacional dos políticos e das tentações populistas que apostam no ressentimento das pessoas e na descredibilização das instituições para assegurar apoio a certas formas de jogo político que talvez em tempo eleitoral tivessem algum sentido, o que não é o caso. 

No sistema de governo criado pela constituição de 1992 o Presidente da República não governa nem o governo é politicamente responsável perante ele, apesar de por ele nomeado. Mas tem um conjunto de competências tanto na nomeação de altos cargos públicos na magistratura judicial, no ministério público, nas forças armadas e para as representações do país no exterior que deixam claro o papel essencial que desempenha para o funcionamento do sistema e para a estabilidade institucional. Também, enquanto órgão de soberania singular, é representativo da unidade da Nação e do Estado e garante o cumprimento da Constituição. Está, por todas essas razões, em boa posição de desempenhar um papel fundamental na criação do ambiente político-institucional favorável à criação de consensos das forças políticas quanto aos objectivos comuns. 

A dificuldade em ir por esse caminho parece estar no como fazer sem interferir na governação. Até agora as eleições legislativas têm resultado em maiorias absolutas na governação do país limitando o eventual protagonismo e espaço de manobra políticos que os sucessivos Presidentes da República poderiam ter com governos minoritários ou em situações de instabilidade governativa. E isso de alguma forma terá contribuído para cimentar a ideia de que o presidente da república em Cabo Verde não teria poderes reais e seria mais uma espécie de “rainha de Inglaterra”. Poderá também ter provocado reacções dos titulares em certas circunstâncias na forma de protagonismo desajustado. 

A origem dessa interpretação provavelmente estará nas discussões que antecederam à Constituição de 1992. O actual sistema de governo de pendor parlamentar foi adoptado em substituição do sistema semi-presidencialista que a monopartidária assembleia nacional popular tinha forçado no texto constitucional em Setembro de 1990 e que se previa como potencialmente desestabilizadora como veio a revelar-se, por exemplo, em São Tomé e Príncipe e na Guiné-Bissau. Criou-se, no entanto, o preconceito de “presidente fraco” para servir de arma de arremesso político e isso não deixou de afectar a forma como os diferentes titulares acabaram por exercer a presidência. Algum protagonismo excessivo poderá ter sido ajudado pela crescente exposição mediática que se tornou normal entre os políticos, imitando o estilo de Marcelo Rebelo de Sousa requintado em tempos do governo minoritário do PS e da geringonça em Portugal. Não é à toa que com o actual governo suportado por uma maioria absoluta está-lhe a ficar difícil manter o estilo de comentar tudo, interpelar ministros e sectores de governação e de servir de ponte a todos. 

Depois da morte de Elisabeth II e de todas as manifestações de apreço pelo que representou ao longo dos 70 anos de garante da unidade da nação, de afrmação de princípios e valores constitucionais e de estabilidade institucional, a acusação de ser “rainha de Inglaterra” já não deve ter a carga pejorativa de antes. Pelo contrário, nos tempos actuais, em que em vários países se assiste ao espectáculo de presidentes, primeiros-ministros e outros titulares de órgãos de soberania a atentarem contra o Estado de Direito democrático e a ir pelo caminho que recentemente o constitucionalista Vital Moreira chamou de “progressiva subversão do sistema de governo constitucionalmente estabelecido”, deve-se dar a maior importância ao cumprimento dessas funções fundamentais ditas da “rainha de Inglaterra. São indispensáveis para se poder preservar as bases da democracia e o senti- do de pertença à comunidade política e nacional necessários para se ter liberdade, pluralismo e alternância de governo. 

De se evitar também é que, em reacção à acusação ou percepção induzida de presidente da república fraco e insufcientemente ocupado porque não governa, se tenha o que alguém já uma vez caracterizou de um “presidente a falar tanta vez, em todo o lado, a propósito de tudo”. A dignidade e a imparcialidade do cargo exigem necessariamente contenção e discrição nas intervenções. A efectividade da magistratura presidencial também depende disso. E em tempos em que se nota da parte de muitos políticos sinais preocupantes do que o autor inglês David Owen chamou no seu livro Hubris de “impetuosidade, recusa de ouvir os outros ou ser aconselhado”, é de maior importância que na chefia do Estado reine a ponderação e a prudência e uma preocupação fundamental em fazer cumprir as regras. Relevância e dimensão histórica ganha-se com esse serviço à nação e não se deixando apanhar por agendas ultrapassadas e narrativas fracturantes.

Humberto Cardoso

Texto publicado originalmente na edição nº1093 do Expresso das Ilhas de 09 de Novembro

 

segunda-feira, novembro 07, 2022

Não é tempo para complacência

 

Na sexta-feira passada o Banco de Cabo verde, como habitualmente em Outubro/ Novembro, trouxe a público a segunda edição do seu bianual relatório de política monetária. As informações sobre a performance do país foram melhores do que eram esperadas. No World Economic Outlook do Banco Mundial de Outubro último a previsão de crescimento da economia nacional era de 4% para o ano de 2022 e de 4,8% para 2023.

Para o BCV, porém, já se pode contar com um crescimento este ano à volta de 8% e esperar por 5% no ano de 2023. Pensava-se que o PIB do país só iria atingir o nível de 2019 em 2023 mas, segundo os dados agora revelados, isso será possível ainda em 2022. 

A par com outras boas notícias, como por exemplo, a de se ter garantido credibilidade do regime cambial do peg unilateral da moeda cabo-verdiana ao euro e a reserva em divisas correspondente a mais de sete meses das importações, no relatório do BCV veio uma série de recomendações para se manter o país estável e a crescer com sustentabilidade. O mundo não está fácil e incertezas e imprevistos tornam difícil antecipar o futuro, mesmo o mais próximo, e prevenir as dificuldades em forma de choques de vários tipos que eventualmente venham a surgir. 

A humanidade encontra-se numa encruzilhada perigosa. A invasão da Ucrânia pela Rússia e a reacção dos países do Ocidente em apoiar os ucranianos na defesa da sua soberania e integridade territorial e do seu direito à liberdade e democracia lançou o mundo num mar de incertezas e de disrupções de vária ordem, designadamente geopolítica, comercial e militar em relação ao qual ninguém vê um fim à vista. A desglobalização já está a acontecer, blocos de nações rivais já são uma realidade e mesmo a possibilidade de uma guerra nuclear deixou de ser uma hipótese remota. 

Tudo isso ocorre tendo como pano de fundo as alterações climáticas de abrangência planetária cujo impacto no quotidiano de muita gente e na economia global é já praticamente incontornável. E a verdade é que, sem cooperação entre os vários Estados, particularmente as grandes potências políticas e económicas, dificilmente se vão tomar as medidas de protecção do ambiente, agir concertadamente para fazer a transição dos combustíveis fósseis para as energias renováveis e proceder à descarbonização da economia que se impõe no momento. Mesmo a muito curto prazo pouco se consegue prever considerando que imprevistos vários, sejam eles políticos, económicos e até logísticos acabam por afectar num sentido ou noutro. 

Da vitória ou derrota do Lula no Brasil, por exemplo, dependiam decisões com impacto nas alterações climáticas, o mesmo acontecendo com as eleições da próxima terça-feira nos Estados Unidos em que uma eventual derrota dos democratas poderá assinalar mudanças na política de protecção do ambiente com impacto global. Da evolução das relações com a China, a segunda maior economia do mundo, nos últimos tempos marcada por tensões geopolíticas, vai depender muito a possibilidade de avanços numa política global do clima. Também como se está já a constatar, falhas no fornecimento do gás ou do petróleo russo ou então perturbações nos transportes de cereais constituem uma fonte de graves problemas de abastecimento e escaladas de preços que acabam por criar instabilidade geral, em particular nos países mais frágeis. 

A estes, e em especial aos que como Cabo Verde ainda suportam os custos da insularidade, há que preparar para o mundo propenso a choques, de que fala Kristalina Georgieva do FMI, e não cair na tentação de pensar que à conta de alguns indicadores mais favoráveis já se pode dizer que a normalidade está aí mesmo à porta. Aliás, em matéria das exportações do turismo, que mais impacto têm sobre a economia nacional, o BCV veio relembrar que só em 2024 se estima que atinjam os níveis pré-pandémicos de 2019. Acrescenta ainda que há riscos à materialização das actuais projecções, entre os quais, a evolução adversa da guerra na Ucrânia e os seus efeitos nos preços de energia e alimentos e nas cadeias de abastecimento globais, a adopção de políticas monetárias agressivas que poderão expor a vulnerabilidade da dívida e levar ao sobre endividamento e, ainda, um possível ressurgimento da pandemia com uma nova variante. Por isso é que passa a recomendar que a prioridade nos próximos meses seja de combater a inflação e que nesse sentido se tenha atenção nas políticas redistributivas para que sejam direccionadas para quem realmente precisa e se equacione a tempestividade da sua retirada.

Outras recomendações com o mesmo objectivo de combater a inflação e lidar com a dívida incidem sobre a necessidade de coordenação dos agentes económicos para conter aumentos de salários geradores de pressões sobre preços. A solidariedade aí sugerida deverá ser acompanhada de um esforço visível e credível da parte de todo o Estado na contenção das despesas e num funcionamento mais eficiente e eficaz. Aliás, esse esforço deverá servir de elemento motivador do engajamento colectivo necessário para se pôr em prática as sugestões do relatório de se avançar com políticas públicas urgentes, como melhorias na infra-estrutura dos transportes e investimentos na saúde pública para melhor enfrentar eventuais pandemias, e de se proceder a reformas estruturais, abrangendo educação, ambiente de negócios e infra-estruturas digitais. 

É evidente que sem esse comprometimento de todos, neste momento de grandes mudanças e grandes incertezas no mundo, a tentação maior vai ser de gerir o país como se fez nas crises passadas. E da experiência tida sabe-se que não se conseguiu de facto debelar as vulnerabilidades e diminuir a precariedade das populações. Mas, a olho nu, nota-se que a dependência das populações e da sociedade em relação ao Estado aumentou. A tudo isso não é estranho o tipo de política de soma zero que se insistiu em perpetuar e que nem a alternância política no governo conseguiu realmente pôr cobro. Acompanhada de crescente personalização da política que não deixa espaço para diálogo e compromissos e para se criar vontade de reforma, as suas consequências são ainda piores. 

O primeiro-ministro, citado pela Lusa num despacho de 26 de Outubro, apresenta-se como uma espécie de treinador de futebol que toma decisões governativas não em função da reacção daquilo que alguns dirão, seja com que formato, seja com que membro de governo for, focado a fazer bom trabalho. Aos outros, políticos e entidades, provavelmente deverá restar o papel de denunciar situações e procurar tirar benefícios eleitorais das denúncias. Daí talvez se compreenda que nos confrontos políticos em Cabo Verde o que mais se ouve é discurso de abandono e de discriminação e acusações de favoritismo partidário. E também se justifique o frenesim de toda a classe política nas suas visitas às ilhas e nos encontros repetidos com a população que só a pandemia da covid-19 conseguiu travar, deixando a nu o desperdício visível que boa parte dessas deslocações e estadas representam em tempo, em dinheiro e em oportunidade de criação de uma consciência nacional dos problemas do país. Aparentemente não há perspectiva de ganho em dialogar, debater e chegar a acordos. 

Se isso é mau em geral, na actual conjuntura política e económica é muito pior. E nem a publicação agora dos novos indicadores macroeconómicos, aparentemente mais favoráveis do que o esperado, devia retirar gravidade à situação actual e convidar à complacência habitual no país. Tornar o país resiliente para enfrentar choques futuros impõe que se vá além da política rasa e sem imaginação que faz escola no país.

Humberto Cardoso


Texto publicado originalmente na edição nº1092 do Expresso das Ilhas de 02 de Novembro

segunda-feira, outubro 31, 2022

Confiança na justiça é essencial na democracia

 O debate sobre a situação da justiça na Assembleia Nacional marcada para a próxima sexta-feira, dia 28 de Outubro, vai acontecer num contexto algo especial em que questões de justiça têm repetidamente vindo à tona e preocupações com a sua eficácia têm sido manifestadas.

Há mais de um ano que a pretexto do caso Amadeu Oliveira individualidades e grupos da sociedade civil têm procurado, através de petições, manifestações, artigos de jornal e debates na rádio e na televisão, problematizar a situação da justiça no país. Sem respostas que considerem convincentes da parte de todo o sistema judicial e dos órgãos de soberania com responsabilidades no funcionamento do regime, a tendência é para uma progressiva descredibilização das instituições e dos seus titulares e a crescente falta de confiança em acreditar que as coisas podem ainda melhorar. 

O fenómeno não é só de Cabo Verde e é visível em maior ou menor grau em vários países. Para as democracias, sejam elas novas ou maduras, tais disfunções constituem perigo de morte. É só ver as convulsões sociais que se têm verificado nos Estados Unidos devido a omissões das autoridades no controlo de armas, a actuação enviesada e discriminatória da polícia em relação às minorias e a reversão de direitos via alterações na jurisprudência. Em outras situações, como se viu de forma flagrante no Brasil, recorre-se à politização da justiça para atingir determinados objectivos e inevitavelmente acaba-se por desacreditá-la aos olhos de todos. E a verdade é que quando as coisas dão para o torto e as democracias entram em derrapagem, vários exemplos (Itália, 1992; Reino Unido, 2019; Brasil, 2019) têm demonstrado o papel do sistema judicial em pôr cobro a certas derivas. 

Razão importante para que o próximo debate parlamentar sobre a situação da justiça se focar na recuperação da confiança na justiça pelos cidadãos. Democracias não sobrevivem sem a liberdade e a paz que um sistema de justiça independente e eficaz garante. Mas, para recuperar a confiança, o diálogo entre as partes não pode ficar por “tricas e futricas” e acusações mútuas à mistura com promessas e críticas demagógicas e populistas na busca de ganho eleitoral. Também não se pode assumir que os problemas se resumem fundamentalmente à falta de meios e que a solução está simplesmente em disponibilizá-los. Os factos não confirmam isso e de qualquer forma os recursos são finitos e há sempre que ponderar as prioridades nos investimentos e despesas do Estado. Compromissos são necessários nos meios a facultar e compreensão da importância de outros factores para a consecução dos objectivos de justiça é essencial para não se perder em disputas que alimentam uma cultura de irresponsabilização e que a priori justificam insucesso em atingir os níveis de eficácia pretendidos. 

Para essa compreensão é fundamental, por exemplo, saber que “o grosso da magistratura judicial já aderiu à cultura de resultados”, como assegurou o presidente do conselho superior da magistratura judicial em entrevista a este jornal. Também saber que persiste um dos pontos fracos do sistema que é a situação de “inexistência de um corpo de inspectores” judiciais para a melhor gestão da magistratura. E que um outro ponto fraco a ultrapassar são os constrangimentos ao funcionamento do sistema de informação judicial que incluem “aversão à mudança e receio de perda de poderes”. O aumento da produtividade no sistema deve, pois, passar por um esforço de optimização na utilização dos meios existentes e numa melhor gestão dos recursos humanos de forma a que se retire o maior retorno de investimentos futuros em instalações e equipamentos e de acréscimos no número de magistrados e funcionários judiciais. 

Assegurar a todos ao longo do debate sobre a situação da justiça que a investigação criminal não está a ser prejudicada pela falta de cooperação entre os polícias deverá ainda contribuir para o reforço de confiança no sistema. Há um ano o Procurador Geral da República já tinha chamado a atenção para o problema, dizendo que “a cooperação e a concertação entre os órgãos da polícia criminal ainda estão longe do desejado e desejável, com tendência para regredir e com prejuízo claro para a investigação criminal”. Voltou há poucos dias a referir-se ao problema em sede da comissão parlamentar especializada para a preparação do debate sobre a situação da justiça. Espera-se que o governo que através do ministério da administração interna e do ministério de justiça, tem poderes de superintendência respectivamente sobre a polícia nacional e a polícia judiciária resolva definitivamente a questão. É dos tais constrangimentos que eliminados teriam impacto positivo na diminuição do sentimento de impunidade no cometimento de crimes tanto pela investigação rápida e concertada dos mesmos como, por essa mesma razão, pela redução de prescrições. 

Justiça e segurança andam juntas. O slogan da “não justiça” que certos sectores da sociedade têm utilizado em várias intervenções públicas ao longo deste ano traduz tanto o sentimento da não confiança na justiça como o sentimento de insegurança que os casos de assaltos com armas de fogo têm instilado nas pessoas. Em relação à insegurança ainda bem que finalmente o governo levou ao parlamento uma alteração à lei das armas para diminuir e controlar o acesso às armas. Podia ter ido mais longe com uma política de desarmar a população e combater a cultura de uso e posse de armas que vem se enraizando particularmente entre os mais jovens. De qualquer forma espera-se que haja resultados palpáveis na redução de crimes, atenuando a sobrecarga dos tribunais, e que do lado do sistema judicial se sinta um maior engajamento para efectivamente diminuir a morosidade da justiça. 

No debate sobre a situação da justiça as forças políticas e o governo deverão encontrar pontos de convergência que tornem realizável o objectivo geral de mais segurança e mais justiça. Garantir a segurança de todos, a todos os níveis, é uma responsabilidade fundamental do Estado e uma peça central da estratégia de desenvolvimento do país. Reforçar a confiança na justiça é essencial na democracia, para a credibilidade das instituições e para o exercício pleno da cidadania. 

Humberto Cardoso

Texto publicado originalmente na edição nº1091 do Expresso das Ilhas de 26 de Outubro

segunda-feira, outubro 24, 2022

Recomendações para os tempos actuais

 Na última reunião das instituições de Bretton Woods em Washington no dia 14 de Outubro a directora do FMI propôs que se adoptasse uma mentalidade mais proactiva e preventiva para poder construir resiliências num mundo mais propenso a choques. Isso porque, segundo ela, as escolhas certas podem evitar os priores resultados num futuro que se vislumbra de incertezas e imprevistos.

 O mundo está perante a possibilidade de uma recessão global no próximo ano na sequencia de choques sucessivos incluindo a pandemia, a guerra na Ucrânia e a crise energética acompanhados de pressão inflacionária e de perturbações graves nas cadeias de abastecimento. Não será com fórmulas recicladas, com a politiquice habitual e com o descaso na utilização dos recursos existentes ou disponibilizados que se irá enfrentar com sucesso a situação actual e a que se desenha nos próximos tempos. 

A crise expôs todas as actuais fragilidades. Cabe agora reconhecê- las e, seguindo as recomendações do FMI, fazer diferente, ciente que a economia terá de funcionar num outro quadro, mais resistente a choques e mais solidário e inclusivo. As pessoas terão que ser capacitadas para responder a outros desafios e estarem na posição de aproveitar novas oportunidades. O impacto já visivelmente sentido das alterações climáticas terá que levar a outros comportamentos na relação com o ambiente, mudanças nos padrões de consumo e a uma acelerada transição para as energias renováveis. A urgência em fazer isso é relembrada todos os dias pelo crescente aumento dos preços energéticos e dos alimentos, pela inflação que se mantém alta e o abrandamento já notório das principais economias do mundo. Ninguém deve se descuidar levado por optimismos fantasiosos do tipo “retoma está aí mesmo à porta”. 

Agrava essa urgência o facto destas crises sucessivas terem acontecido num quadro de crise da democracia de há uma década atrás. Na sequência da crise financeira de 2007/08 instalou-se um mal-estar nas democracias tanto maduras como mais jovens alimentado pelo aumento das desigualdades sociais e pela percepção de falta de representatividade nas instituições e de diminuição nacional de capacidade decisória. Em resumo, desenvolveu-se o sentimento que a globalização tinha ido longe de mais e que em nome de maior eficiência da economia uma elite enriquecia ainda mais enquanto se perdiam empregos bem pagos emagrecendo a classe média e para os mais novos só sobravam os salários baixos dos empregos no sector de serviços. Em acréscimo a questão das migrações que, entretanto, surgiu foi mais uma acha na fogueira da frustração e do ressentimento que em devido tempo foi instrumentalizada por certas forças políticas fragilizando ainda mais as democracias com questões identitárias polarizantes. 

O problema que se coloca é saber como ultrapassar as várias crises que em simultâneo estão a afectar os diferentes países e em particular as democracias. Facto é que com a invasão da Ucrânia pela Rússia e a reacção do Ocidente com as sanções abrangentes em termos económicos, financeiros e tecnológicos a globalização de antes já não mais existe. A procura de eficiência foi substituída pela resiliência, as cadeias de abastecimento estão a ser refeitas e programas de revitalização da manufactura estão a ser realizadas no quadro das chamadas políticas industriais. Conjectura-se que blocos económicos de um mundo multipolar poderão estar no horizonte e das rivalidades entre eles vai-se ter um mundo de dinheiro mais caro, crescimento mais raso e inflação elevada. Os tempos de abundância, referidos pelo presidente francês Macron, estariam a chegar ao fim. 

Para vários economistas como por exemplo Dani Rodrik as novas “políticas industriais”, encetadas por vários países para avivar a manufactura, criar empregos qualificados e bem pagos com o objectivo entre vários outros de diminuir a desigualdade e a exclusão social, irão se mostrar insuficientes. Segundo esse economista, numa publicação recente no quadro do projecto Hamilton, a importância do sector de serviços para a produtividade e competitividade da economia é cada vez maior e com a actual automação e robotização do sector industrial não há como regressar aos tempos anteriores particularmente no que respeita à criação de um grande número de postos de trabalho nos moldes do antigamente. A solução que ele propõe é uma política industrial para o sector de serviços que também se prima pelo aumento da produtividade e da qualidade e seja capaz de sustentar bons empregos.  

Seria interessante verificar até que ponto essa proposta de política industrial para o sector de serviços feita pelo economista Dani Rodrik poderia aplicar-se a países que, com desenvolvimento tardio, perderam a oportunidade da industrialização para criar empregos em larga escala. Ou a países como Cabo Verde que praticamente têm que, em termos da estrutura produtiva e de aplicação de mão-de-obra, dar o salto diretamente do sector primário para o sector de serviços. Talvez resulte a abordagem que faz no sentido da formalização do sector, incluindo capacitação das pessoas, organização de carreiras, estruturação do mercado de prestação de serviços e coordenação para criação de externalidades positivas com vista ao aumento da produtividade e â melhoria da qualidade dos serviços. Poderia ser o caminho para o desenvolvimento de cuidados de saúde abrangentes e de qualidade que viessem a articular com o turismo, em particular com o residencial e o dirigido aos mais velhos. Aplicar-se-ia a outras áreas de serviços que também se suportam da digitalização e gestão de dados e mesmo ao sector das energias renováveis com as suas necessidades de instalação, manutenção e monotorização. Aumentando a produtividade dos serviços prestados já se tinha a base para salários mais altos. 

De qualquer forma para os países em desenvolvimento como é o caso de Cabo Verde a actual crise coloca particulares desafios. Além de enfrentar os altos preços de energia e alimentos, os constrangimentos no abastecimento e a inflação a subir em flecha têm agora de lidar com a alta do dólar e o seu impacto no custo das importações, no défice orçamental e na dívida pública. A tornar ainda pior a situação vem agora o risco de recessão global provocado pelo aumento quase generalizado da taxa de juros numa tentativa de controlo da inflação nos países desenvolvidos. Mesmo que que não venha a acontecer, o abrandamento da economia que vai provocar, agravado pelo facto de todas as grandes economias, incluindo a China, registarem taxas baixas de crescimento, trará grandes problemas aos países em desenvolvimento ainda não refeitos dos efeitos da pandemia da covid-19. 

A recomendação que vem do FMI para a travessia destes conturbados tempos é para contenção no défice orçamental e no montante da dívida pública. Nesse sentido é de se apoiar estritamente os mais necessitados, cortar nas despesas e melhorar na cobrança de impostos e certificar- -se que a política fiscal está em sintonia com a política monetária. A importância de se seguir por esse caminho ficou dramaticamente demonstrado no Reino Unido com a reversão sob pressão dos mercados da política fiscal da nova primeira-ministra que iria conduzir ao aumento do défice e da dívida pública. Demonstraram o seu descontentamento com a depreciação da libra esterlina em relação ao dólar. 

Em Cabo Verde, onde a discussão da política orçamental fica demasiadas vezes pelo básico de acusações de abandono e descriminação e por propostas de despesa movidas por razões eleitoralistas, os tempos de rigor deveriam levar a uma outra abordagem. Aliás, se há algo visível a olho nu são os gastos excessivos feitos pela máquina do Estado. Nestes tempos de rigor seria um grande serviço feito ao país se chegassem a acordo no controlo das despesas e na diminuição das ineficiências. O mesmo se acontecesse na melhoria da cobrança e no alargamento da base tributária. Infelizmente o eleitoralismo que domina a política cabo- -verdiana provavelmente deixará passar mais esta oportunidade para procurar ter um aparelho de Estado enxuto, eficiente e competente como bem o país precisa para se desenvolver e servir bem a todos os cidadãos.

Humberto Cardoso

Texto publicado originalmente na edição nº1090 do Expresso das Ilhas de 19 de Outubro

segunda-feira, outubro 17, 2022

Maior cultura constitucional precisa-se

 

É de saudar a realização ontem, dia 11 de Outubro, da sessão solene da Assembleia Nacional por ocasião do trigésimo aniversário da Constituição de 1992 que inaugurou a II República. Finalmente conseguiu-se reunir os consensos necessários das forças políticas para a celebração da data de entrada em vigor da Lei Fundamental do país. Não foi tarefa fácil. Em outras ocasiões de comemoração de datas redondas da Constituição realizavam-se actividades de natureza académica ou acções de divulgação por iniciativas de um ou outro órgão de soberania de um dos partidos ou de instituto ou universidade, mas nunca era assumida pelo conjunto dos órgãos de soberania e das forças políticas do país.

A assunção da comemoração das datas que definem a II República tem sido paulatina como se pode ver na do dia 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia, que só foi merecedora de uma sessão solene em 2017. Compreende-se que tenha sido assim pela persistência até hoje de narrativas e simbolismos legitimadores do antigo regime que ainda de uma forma ou outra convivem em tensão permanente com os princípios e valores da nova Constituição e com a ideia de que o poder só é legítimo se resultar do voto popular, livre e plural. Com o passo dado ontem Cabo Verde junta-se às democracias que rodeiam de maior solenidade a celebração da liberdade, da democracia e da Constituição. E a exemplo do que acontece nos países democráticos cabe ao parlamento enquanto órgão de soberania representativo de todos os cidadãos na pluralidade das suas opiniões e diversidade dos seus interesses organizar as festividades e acolher todos os outros órgãos de soberania.

Todos os intervenientes nas solenidades do dia 11 de Outubro referiram-se à necessidade de se cultivar uma cultura constitucional. Num certo sentido o foco nesse ponto pode ser entendido como resultado de um amplo consenso da necessidade de cumprir e fazer cumprir a Constituição da República. Se assim for é de maior importância porque precisamente vive-se um momento nas democracias em que se nota uma tendência para se contornar as regras, para desafiar o sistema instituído e até explorar o quão longe se consegue ir impunemente em contramão com as práticas de há muito estabelecidas. Exemplos encontram-se por aí proeminentemente na América de Trump, no Brasil de Bolsonaro e nas práticas iliberais em países com a Polónia, a Hungria e a Índia e mais dissimuladamente em quase todas outras democracias. E pode-se imaginar que Cabo Verde certamente não é excepção.

A adopção de uma Constituição resulta no estabelecimento de uma ordem política, económica e social com os seus órgãos, normas, processos e procedimentos. Consegue-se consolidação institucional e adquire-se cultura institucional respeitando os princípios e valores e aplicando as regras existentes. Há ganhos nesse sentido quando no quadro das relações estabelecidas por essa ordem democrática houver reconhecimento e valorização do mérito particularmente no acto de tornar produtiva e construtiva a interacção de pessoas, partidos, empresas e outras entidades e em virá-la para a consecução do bem comum. Perde-se, pelo contrário, quando se deixa passar a impressão que a via para conseguir protagonismo, popularidade e marca de autenticidade na política e na sociedade é com discurso hostil ao parlamento e ao sistema de justiça, com o atiçar de sentimentos anti-partido e com políticas populistas e eleitoralistas.

A questão é saber para que lado apontam os incentivos existentes na sociedade e até no Estado. As tensões ainda existentes de valores, narrativas e legitimidades, a falta de consenso nas questões fundamentais do país e a crispação que torna a política inefectiva em vários aspectos designadamente em matéria de reformas fundamentais não são muito favoráveis à consolidação de uma cultura constitucional como aparentemente desejada por todos. As crises sucessivas que deixaram a claro vulnerabilidades e a precariedade do país e da sua população podiam ter invertido a tendência actual e precipitado a procura de soluções para se ultrapassar o problema. Nota-se, porém, que nem as incertezas no futuro próximo marcado pela guerra na Ucrânia e pela crise energética, realçadas esta terça-feira no World Economic Outlook do FMI com a perspectiva do FMI que “o pior ainda está para vir e para muitas pessoas o ano de 2023 vai saber a uma recessão”, conseguem mudar a postura dos dois principais partidos no seu confronto habitual em tempo de Orçamento do Estado.

O governo ao invés de construir uma narrativa de solidariedade e propor políticas mobilizadoras da vontade geral indispensável para enfrentar os tempos difíceis que se anunciam põe-se na posição de ser acusado de ter um “orçamento egoísta”. O próprio processo de preparação do Orçamento do Estado deixa confuso ou frustrado os interlocutores. Sindicatos e empregadores queixam-se de não terem dados suficientes para participar efectivamente na reunião de concertação social em particular sobre a matéria de rendimentos e salários. Numa inversão dos procedimentos leva-se a proposta de orçamento ao presidente da república antes da entrega ao parlamento que é o órgão de soberania que primeiramente o deve discutir e aprovar e só depois o enviar para promulgação. Também estranho é chamar os partidos para os escutar sobre a proposta que já foi entregue no parlamento onde estão representados. Faz lembrar a socialização das decisões no quadro da “democracia nacional revolucionária” e não como o sistema de governo parlamentar estabelecido na Constituição de 1992 deve funcionar.

A cultura constitucional que todos reclamam que se deve desenvolver não é certamente muito compatível com o “disparar para todos os lados e estar em todos lugares” que parece caracterizar a postura dos actores políticos. Funcionar assim não deixa muito tempo para reflexão nem para a tomada de decisões devidamente ponderadas. Há que ultrapassar as tensões derivadas em particular da actuação de agentes do Estado que prejudicam o aprofundamento da cultura constitucional para que as virtualidades da ordem estabelecida pela Constituição de 1992 sejam desenvolvidas em toda a plenitude. Nestes tempos de incertezas e desafios é fundamental que se desenvolva nas pessoas o sentido de pertença que permita construir uma sociedade inclusiva, voltada para o futuro e construída à volta de um Estado de Direito democrático. E não se deixar enrolar no nacionalismo xenófobo e divisivo, voltado para o passado e que não esconde a sua atracção autocrática.

Humberto Cardoso

Texto publicado originalmente na edição nº1089 do Expresso das Ilhas de 12 de Outubro

segunda-feira, outubro 10, 2022

Demografia não é destino

 

Atribui-se ao sociólogo francês August Comte a frase demografia é destino, significando que tendo uma população a rejuvenescer ou a envelhecer conta para as perspetivas de prosperidade futura em termos da sua dinâmica ou sustentabilidade. No mundo actual vários países ou regiões do globo estão em fases diferentes de dinâmica populacional.

Em alguns a tendência é para o envelhecimento como é o caso da Europa. Noutros nota-se o rejuvenescimento e fala-se, por exemplo, da África como o continente mais jovem no ano 2050. As migrações dirigidas para várias partes do mundo, em particular para Europa, Estados Unidos da América, Canadá e Austrália têm na origem, entre outras razões, a tentativa de repor algum equilíbrio designadamente quanto à mão-de-obra, que é deficitária em alguns países e regiões e excedentária noutros.

Cabo Verde um arquipélago com uma população jovem e elevada taxa de desemprego de há muito que tem participado nesse movimento migratório global. Isso deve-se à sua condição de país prejudicado pelo afastamento, insularidade, pequena superfície, relevo e clima difíceis, e por uma economia muito pouco diversificada. As secas cíclicas agravam a situação e limitam a actividade económica a uma agricultura em grande parte de subsistência, à prestação de serviços e recentemente ao turismo. Incapacitado por isso de absorver a sua população jovem que ainda para mais tem-se massivamente escolarizado nas últimas décadas ao nível do básico e do secundário, o país só pode assistir à sua crescente emigração em direcção à Europa e à América. O resultado viu-se nos dados do censo geral da população organizados e divulgados pelo INE em 2012 que deram conta que a população tinha diminuído no arquipélago. Em vez dos cerca de 550 mil habitantes esperados, ficou-se pelos 483.628. Foi uma surpresa geral quando talvez não devia ter sido.

Se no passado a demografia era destino, agora que o país é senhor das suas políticas, devia ter os mecanismos para atingir um outro resultado que, mesmo que fosse a emigração, tivesse uma intencionalidade e uma qualificação que potenciasse todo o investimento feito nas pessoas. As Filipinas fazem isso com aposta em profissões nas áreas da saúde e marinha mercante e na Índia em áreas da ciência, matemática, engenharia e tecnologia de informação e comunicação. É verdade que o fluxo espontâneo para a emigração beneficia as pessoas, os familiares e o país pelo rendimento e as remessas que gera. Também investimentos futuros em negócios diversos e construção de casas trazem ganhos para a economia nacional. Potenciado, porém, com políticas públicas dirigidas para conseguir formação certificada por padrões aceites na União Europeia, a emigração teria um outro alcance.

Não o carácter aparentemente informal a que se vem assistindo nos últimos tempos de recrutamento de trabalhadores para Portugal com possíveis perdas para os próprios por falta de garantias suficientes e prejuízos para as empresas que de repente se veem sem trabalhadores e terão que formar outros para continuar a prestar serviço. Já há algum tempo que era previsível o aumento em Portugal da demanda de trabalhadores especializados em várias áreas. Eles próprios sofrem o efeito da emigração para outros países europeus. Não se conseguiu prever a situação ou não se agiu em tempo talvez porque muito do que diz respeito a emprego e desemprego em Cabo Verde não é vista de forma sistemática e compreensiva.

Por um lado, não se mostra consistência na forma como se aborda a questão do emprego designadamente quanto à ligação entre formação e mercado de trabalho e à necessidade de estruturação e formalização da economia. Também se age como se migrações internas não fossem inevitáveis face aos enormes investimentos feitos e ao número de postos de trabalho criados. Ainda hoje percebe-se que não se imprimiu a necessária urgência na criação de condições de trabalho nos locais e ilhas no que respeita à habitação bem como à saúde e educação. Paradoxalmente, o que mais se ouve são apelos para a criação de condições para as pessoas ficarem nas suas ilhas e nos seus municípios. Até se promete portos e universidades para as pessoas não deixarem as suas respectivas ilhas e também para não emigrarem. Queixa-se que as populações mais vulneráveis e pobres estão nas zonas rurais e no momento seguinte promete-se que tudo será feito para lá ficarem. Repete-se a falácia que é possível construir uma economia que as pode assegurar os rendimentos para as tirar da pobreza.

Fica-se com a impressão de que predomina no país uma visão estática e não dinâmica da movimentação de pessoas, de mão-de- obra, de cultura e do saber. Por isso que não se pôde prever as migrações internas e evitar os problemas graves que existiram e ainda existem por exemplo na ilha do Sal e da Boa Vista. Por essa mesma razão também não se considera qualificar para emigrar. Como que não entra na equação que Cabo Verde tem as características de afastamento, insularidade, pequena superficie, população diminuta, relevo e clima e falta de diversidade económica que a União Europeia qualifica as suas regiões ultraperiféricas como Açores, Madeira e Canárias e as subsidia largamente e em vários sectores designadamente dos transportes aéreos e marítimos. Cabo Verde é tudo isso e em algumas coisas multiplicado pelas nove ilhas.

Seria bom que os governantes e toda a classe política tivessem tudo isso em devida consideração quando procuram diminuir o desemprego, combater a pobreza particularmente nas zonas rurais, enfrentar o problema dos transportes e a necessidade de unificação do mercado nacional, garantir a segurança e capacidade de respostas emergenciais em qualquer ponto do território nacional. Podiam adoptar a mesma abordagem para conseguir o maior retorno do investimento que se faz na educação e qualificar profissionais tanto na perspectiva do mercado interno como do mercado externo. A formalização da economia e a estruturação do mercado de trabalho necessariamente exigirá o contributo de parceiros e entidades privadas que devem ser contemplados com pacotes de incentivos tanto para a formação de mão-de-obra como para a certificação dos produtos e serviços e também dos seus profissionais.

A superação dos constrangimentos próprios dos territórios insulares e ultraperiféricos deve ainda considerar a questão da população caboverdiana que é demasiado pequena para se conseguir economias de escala em qualquer sector. O aumento e a diversificação do fluxo turístico constituirão sempre um grande contributo para minimizar o défice populacional. Uma aposta mais permanente seria o turismo residencial e nessa perspectiva a exploração estratégica das necessidades de lazer, sossego e cuidados básicos da população europeia crescentemente envelhecida podia ser o ideal. Para isso, porém, é fundamental que se equacione os problemas do país e, em particular, a questão demográfica. Quando se preparam alterações à lei da nacionalidade e se facilita a imigração há que ponderar todos esses elementos. A demografia pode não ser destino, mas para isso é fundamental que se encontre políticas públicas certas para se ultrapassar os obstáculos que são muitos e complexos a fim de se conseguir produzir riqueza, diminuir o desemprego e combater a pobreza.

segunda-feira, outubro 03, 2022

Pôr de lado o muro de lamentações e agir

 

Já nas vésperas de um novo ano político seria de esperar algum sinal de um discurso diferente e de uma postura mais ponderada em relação a matérias de interesse geral do país e mais condizente com a situação nacional e internacional actualmente vivida no mundo. Infelizmente não é o que se vê. A impressão geral é que apesar dos desafios serem diferentes a tendência é para se fazer o mais do mesmo e continuar a procurar ganhos eleitorais em todas as ocasiões como se as eleições estivessem à porta. Isso aplica-se dos dois lados tanto da situação como da oposição e nota-se ao nível da administração local e do poder central.

É verdade que sempre que a oportunidade se oferece todos falam da tripla crise da seca, da Covid-19 e da guerra da Ucrânia e da necessidade de mitigação dos seus efeitos junto das populações. Mas fica-se por aí. Entretanto, a realidade passa ao lado quando se propõe a injecção de 3 milhões de contos na TACV para depois a reprivatizar em 2024, ou quando se proclama o presidente da Câmara da Praia, quase a meio do mandato, mas já sem maioria, autarca do ano e se apela à descolonização da administração pública pelos partidos políticos. De facto, questões assim formuladas (como o futuro dos transportes aéreos, os problemas de legalidade e de accountability no poder local e a importância crucial de se ter uma administração pública competente, servidora do interesse público e engajada com o desenvolvimento do país) não se prestam para iniciar um diálogo construtivo. Como seria de esperar, só justificaram mais um “round” de ataques e contra-ataques que deixam o país crispado, exausto e sem soluções.

O momento, porém, não devia ser de distracções e muito menos de perca de esperança. O Banco Mundial há duas semanas chamou a atenção para o risco de uma recessão global com particular impacto nos países em desenvolvimento. Na origem está a quebra sincronizada da dinâmica de crescimento das maiores economias do mundo - Estados Unidos, Europa e China - provocada em parte pelo aumento das taxas de juro, pela escalada de preços no sector energético e pela inflação a níveis não vistas há décadas. Os efeitos já se fazem sentir principalmente entre os países mais pobres que por conta da corrida ao dólar têm que lidar com menos investimento externo, com um serviço da dívida denominado em dólar mais pesado e com importações mais caras. A situação é agravada com as incertezas na guerra na Ucrânia que cada dia mais se transforma num confronto directo entre o Ocidente e a Rússia.

A possibilidade real do conflito acabar por envolver o uso de armas nucleares mesmo que só ao nível táctico dos campos de batalha elevam o rol de imprevistos para um outro patamar. O aviso das autoridades americanas perante as ameaças russas de uso de armas nucleares que as consequências poderão ser catastróficas cria um cenário até há pouco tempo inimaginável. Também a se verificar o enfraquecimento do regime de Putin, devido às perdas na guerra, à reacção da população russa à mobilização de reservistas das forças armadas e ao descontentamento das elites e dos militares e de outras forças de segurança, outros imprevistos poderão surgir que dificultem uma saída para o conflito, já de si difícil de se encontrar a contente de todos.

Por outro lado, a continuidade do conflito por mais tempo numa espécie de guerra de atrito sem fim à vista pode acelerar ainda mais o processo de desglobalização e o aparecimento de blocos económicos rivais. Um processo que será certamente acompanhado por constrangimentos nas cadeias de abastecimento e pela volatilidade dos preços de produtos energéticos que, por sua vez, tornarão mais difícil controlar a inflação e evitar a recessão económica que segundo alguns observadores poderá estender-se até 2024.

Isso tudo sem falar de mudanças mais ou menos profundas ou mesmo radicais que poderão verificar-se no panorama político das democracias enquanto as suas populações enfrentam dificuldades derivadas do aumento do custo de vida e do desemprego e lidam com questões culturais como a diversidade, lutas identitárias e igualdade de género num ambiente de acolhimento de migrações. Na Itália a eleição esta semana da direita radical para o governo pode ser um sinal de eventuais mudanças na configuração de forças políticas de outras democracias (caso também da Suécia), que eventualmente poderão levar a tensões no relacionalmente no campo dos países democráticos, (exemplo da Hungria), aumentando ainda mais os imprevistos nestes tempos de incerteza.

Cabo Verde sem ainda ter recuperado completamente da recessão de 2020 provocado pela pandemia da Covid-19 e em sectores vitais como o turismo sem atingir os números de 2019 terá agora que enfrentar uma situação internacional difícil que afecta particularmente os países e as economias com que o arquipélago e as suas comunidades têm uma relação mais estreita. Agora que o país vai entrar na época alta do turismo provavelmente um factor que poderá condicionar o fluxo turístico poderá ser a tendência para a depreciação da libra esterlina considerando que a maioria dos turistas vem do Reino Unido. Mais uma razão para qualificar e diversificar a oferta turística como, aliás, toda a economia nacional na perspectiva de se ter o país mais bem preparado para as incertezas actuais. Para isso, porém, são necessárias políticas consistentes e um consenso nas reformas de fundo que o país precisa, mas que infelizmente mesmo com a tríplice crise de que todos falam, não parece que haja muita disponibilidade para estabelecer o diálogo que implicaria. Prefere-se reduzir a política à condição de luta tribal.

Numa entrevista recente, o presidente da república José Maria Neves disse e bem que a África não pode transformar-se num muro de lamentações. O problema é quando se faz do muro de lamentações um modelo de negócios e se vive do que se consegue captar a partir da generosidade ou do sentimento de culpa dos outros. Ou então toma-se a lamentação no muro como forma de estar na vida e entra-se numa espiral descendente de vitimização carregado de frustração e de ressentimento que não deixa trilhar o caminho da dignidade, da autonomia e da responsabilidade. Nas duas circunstâncias sacrifica-se a liberdade e o desenvolvimento.  

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1087 de 28 de Setembro de 2022.

segunda-feira, setembro 26, 2022

Três décadas depois é preciso maior responsabilidade constitucional

 

O próximo dia 25 de Setembro marca o trigésimo aniversário da Constituição da República.

O normal e esperado é que já viessem de longe os actos comemorativos desta data histórica. Pelos convites que têm sido distribuídos nos últimos dias tudo indica que só a partir do dia 22 é que terão lugar alguns eventos comemorativos. E é pena porque com a evidente falta de cultura constitucional que se vem notando nos últimos tempos, designadamente no questionamento do papel dos partidos e do parlamento, nos ataques dirigidos à justiça e nos pedidos irrazoáveis dirigidos ao presidente da república, o ano de 2022 podia ter sido dedicado ao reforço da consciência cidadã via aprofundamento do conhecimento pelas pessoas dos termos do contrato social representado pela Constituição. Algo que, como está comprovado, é essencial para se ter liberdade, paz, justiça e a solidariedade tão necessária nestes tempos de crise e de incertezas.

Nem com as aulas iniciadas na segunda-feira em todo o território nacional houve aparentemente a preocupação de incluir a celebração da Constituição na primeira semana escolar enquanto parte da educação cívica dos alunos e de promoção de uma cidadania activa e participativa. Nas democracias um objectivo da escola pública é de, como escreveu no Project Syndicate o conselheiro de Guterres para a Cimeira sobre a Transformação da Educação, Leonard Garnier, enfatizar a responsabilidade cívica, a governança democrática, o respeito pela diversidade humana e um compromisso activo com o desenvolvimento sustentável para além do seu esperado papel de desenvolver as habilidades académicas de “literacia, numeracia e raciocínio científico”. Infelizmente em Cabo Verde as escolas parece que só não falham é no culto de “heróis” em linha com a velha política de “reafricanização dos espíritos” cuja última encarnação é a luta para, a todo o custo, transformar o crioulo em língua de ensino. No início do ano escolar já se viu na comunicação social como a iniciativa da introdução do crioulo no 10º ano já suplantou a procura de qualidade no ensino como tema mais importante.

O confronto de princípios e valores existente traduz muito do consenso algo precário que ainda existe à volta da Constituição. Uma fragilidade que se nota na forma tímida como é celebrada, ensinada e cultivada e que contrasta com o entusiasmo e convicção como certos sectores da sociedade se agarram a memórias, valores e práticas que se situam nas antípodas dos seus princípios. A estabilidade governativa ao longo dos trinta anos com governos de maioria absoluta tem de uma certa forma mascarado essa fragilidade que sempre acaba por fazer mossa. Nota-se isso na permanente crispação política, na tendência para a partidarização da administração pública, na postura rígida de interesses instalados que juntos dificultam reformas estruturais. O desgaste de instituições como o parlamento e o sector da justiça e as dificuldades que depois se vê se acumulando em diferentes sectores e em particular nos mais visíveis como os transportes, habitação, água e energia, mas também na falta de diversificação da economia e na sua crescente informalidade, resultam em boa medida desse estado de coisas.

Há muito que já se deveria ter ultrapassado o que ainda impede o consenso nacional à volta do contracto social que se estabeleceu em 1992. Infelizmente nem as crises sucessivas e inéditas tanto no seu escopo como nas incertezas quanto ao devir têm servido de catalisador para reflexão e acção no sentido de se criar a unidade necessária para o país fazer as reformas necessárias e avançar. Trinta anos não parece ser tempo suficiente para se olhar com distanciamento e desapaixonadamente o processo que conduziu à aprovação da Constituição em 1992.

Há quem diga que não é uma nova Constituição, mas sim a Constituição de 1980 revista. Tudo para se conformar a uma narrativa de mudança no quadro institucional que se quis impor, mas que foi furada por uma votação que resultou em maioria qualificada e que efectivamente ditou o fim do regime de partido único. No quadro da narrativa referida primeiramente não se considerou necessário eleger uma assembleia constituinte para adoptar a Constituição de um novo regime político. Quando das eleições resultou uma maioria qualificada que permitiu que uma revisão total da outra Constituição, e de facto uma nova Constituição, o partido então minoritário, não participou no debate e não votou favoravelmente. A discórdia foi lançada e iria perdurar nos anos seguintes e condicionar a emergência das novas instituições democráticas.

Em Cabo Verde diferentemente de Portugal (1976), Espanha (1978) e França (1958) e de outras democracias não houve um “bloco central” de partidos de apoio à constituição vigente. Um outro foco de potencial tensão que surgiu foi com o presidente da república que considerou os seus poderes reduzidos com a nova Constituição. Visto de longe o problema que aparentemente poderia ser de “legitimidade”, porque a nova Constituição não resultou de uma assembleia constituinte, talvez pudesse ser ultrapassado com um referendo do texto aprovado como o foi na Espanha, França e recentemente no Chile. O problema é que aqui ninguém o propôs, a dúvida ficou no ar e uma responsabilidade constitucional conjunta dos principais partidos essencial para a consolidação da democracia não foi assumida.

Em consequência, instituições foram negativamente afectadas como o Tribunal Constitucional que levou mais de 14 anos para ser instalado, o mesmo acontecendo com o Provedor de Justiça, enquanto outras como o Conselho para o Desenvolvimento Regional e o Conselho Económico e Social nunca viram a luz do dia. Também questões em sectores-chave como a defesa nacional e as forças armadas não puderam ser objecto de uma discussão aprofundada que levasse a outras opções mais consentâneas com a realidade de país arquipélago que, com os meios escassos que pode angariar, precisa ter o controlo das suas águas territoriais e capacidade de resposta a emergências diversas no seu espaço de jurisdição. Algo similar se poderia dizer do sector da justiça sobre o qual, críticas de corporativismo talvez obrigasse a rever normas que dão aos magistrados judiciais o exclusivo nos concursos para lugares no supremo tribunal de justiça, a encontrar solução mais eficaz para a inspecção judicial e a ponderar a reposição do presidente do SJT como presidente do Conselho de Magistratura Judicial.

Nestes trinta anos da Constituição uma coisa deve ficar clara: que há sinais de crise em todas as democracias e Cabo Verde não é excepção. Por todo o lado as pessoas não se sentem devidamente representadas, as desigualdades sociais têm se agravado e os partidos políticos cada vez mais se mostram incapazes de responder às expectativas e de constituir reais alternativas na governação. No ambiente de desconfiança, de incerteza e de ressentimento que tende a se desenvolver, surge o populismo, a demagogia e tendências autocráticas como uma ameaça bem real. O acesso crescente das pessoas às redes sociais formatadas como estão para incentivar o extremar dos pronunciamentos, de juntar pessoas com as mesmas ideias e fechá-las em câmaras de eco das suas posições só agrava ainda mais a situação.

A saída passa provavelmente pela convergência em questões fundamentais para se poder conviver com o dissenso e do jogo do contraditório conseguir ganhos para a colectividade. Em Cabo Verde o esforço deve ser maior porque divisões antigas não foram ultrapassadas, em parte devido à cumplicidade de sectores no Estado que ainda não alinham pelos princípios e valores constitucionais. A morte da rainha da Inglaterra e a comoção mundial que se seguiu revelou que de alguma forma a generalidade das pessoas aprecia as instituições que transmitem o sentimento de pertença e garantem a estabilidade que permite criar e inovar. Para isso, dos líderes deve-se esperar um sentido de dever e disponibilidade para o serviço público por todos referenciados como as qualidades maiores de Elisabeth II e não simples protagonismo pessoal e procura de privilégios adstritos ao exercício de cargos públicos. Neste trigésimo aniversário é a responsabilidade constitucional aí implícita que deve ser assumida por todos para se poder enfrentar o presente e o futuro com confiança.

segunda-feira, setembro 19, 2022

Estado ideologicamente comprometido?

 Pelo telejornal da TCV, na segunda-feira à noite, podia-se ficar com a impressão que Cabo Verde teria regredido para a condição de um Estado que, embora afirmando-se uma democracia, vestia as roupagens ideológicas do regime de partido único dos primeiros quinze anos pós-independência. Como na época se fazia nos dias festivos do regime, as imagens da luta de libertação produzidas pela propaganda do PAIGC nos anos sessenta e setenta foram passadas e ao longo de toda a entrevista feita a Graça Machel teve-se como pano de fundo a fotografia icónica do “líder supremo”. Em declarações nesse mesmo telejornal o presidente da república completou o quadro dizendo que “precisamos para cumprir Cabral dar o grande salto na transformação e modernização do país”.

Cumprir Cabral foi a justificativa de base das opções políticas, económicas sociais e culturais do anterior regime. E o resultado viu-se. Nos finais dos anos oitenta o país sem liberdade, sem cidadania plena e com uma economia estagnada ansiava por mudança. Numa conjuntura internacional marcada pela queda do Muro de Berlim e do império soviético, o país acabou por enveredar por um processo de democratização que culminou com a adopção da Constituição de 1992 baseada no respeito pela dignidade humana e consagrando os princípios e valores da liberdade, do pluralismo e o primado da lei. É evidente que na segunda república assente nesses valores não há espaço para culto de personalidade orquestrado pelo Estado. Isso só acontece nos regimes autoritários e totalitários. Nas democracias não se fala em cumprir Churchill, Roosevelt ou qualquer outro político de renome.

Naturalmente que no quadro do pluralismo e da liberdade de expressão associações, fundações e outras organizações podem promover os respectivos patronos. Não cabe ao Estado e aos seus titulares apelar aos cidadãos para cumprir com os sonhos de alguma figura histórica e a se inspirarem no pensamento ou acção de alguma personalidade. A vitalidade da democracia tanto para se encontrar os caminhos da prosperidade colectiva como para corrigir erros de liderança e de políticas depende da crença que não há verdade única, nem líderes eternos. O mesmo se passa com a liberdade e a segurança de cada cidadão que também só estão garantidas porque a ninguém é dado o poder de impor a sua verdade aos outros sem qualquer controlo. O progresso do país nos últimos trinta anos aconteceu em boa parte porque se criou um ambiente em que ideias, projectos, políticas e estratégias foram lançados, contestados e testados na prática e obteve-se saldo positivo apesar das múltiplas insuficiências que ainda perduram.

O futuro vai depender muito da capacidade de se manter esse mercado de ideias livre da interferência de um Estado ideologicamente comprometido e em contramão com o comando constitucional que o proíbe de estabelecer “directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas e religiosas”. São evidentes os sinais do crescente comprometimento ideológico do Estado e, por extensão, da comunicação social pública, do sistema educativo e de outras instituições. A parceria cada vez mais estreita com a Fundação Amilcar Cabral reiterada esta segunda-feira pelo primeiro-ministro quando questionado sobre a celebração do centenário de Amilcar Cabral vai nesse sentido. Ninguém espera que a fundação nesta parceria não procure realizar o seu objectivo de preservar os fundamentos ideológicos e a memória da luta na Guiné e do regime de partido único. O que não é aceitável é que o Estado democrático assuma essa agenda e que participe activamente de várias formas entre as quais com fundos públicos.

Em particular o que briga com qualquer sensibilidade democrática é o culto de personalidade que cada vez mais se faz da figura de Amilcar Cabral. Primeiro timidamente, mas agora abertamente, como se ouviu na rádio e televisão públicas, está-se a passar a ideia de que ele é considerado o segundo maior líder da história da humanidade com base numa evidência tão frágil como uma votação online organizada por uma revista da BBC, a World Histories Magazine. Cinco mil leitores votaram e ganhou o marajá Ranjit Singh da Índia com 38% dos votos, cabendo a Cabral 25%.

De facto, tudo parece servir para construir o mito. Em matéria de rituais do Estado como deposição de coroa de flores nas datas nacionais e nas visitas de chefes de Estado estrangeiros o que se faz em Cabo Verde não tem respaldo no que as democracias são e representam, mas com o que se via na União Soviética nas cerimónias no túmulo de Lenine e ainda se vê na Coreia do Norte e em regimes similares com culto de personalidade instituídos. No mesmo sentido vai a proclamação de Cabral como Fundador da Nacionalidade feita pelo regime de partido único logo na primeira sessão da Assembleia Nacional Popular a 4 Julho de 1975 num país em que a consciência de nação, no sentido de identificação territorial, cultural e linguística, vem de muito antes do seu nascimento.

Far-se-ia mais justiça a Amilcar Cabral se ao invés de insistir no mito se deixasse conhecer realmente o homem e a sua época abrindo os arquivos e financiando estudos por investigadores e historiadores. Isso o Estado de Cabo Verde deveria promover. Afinal em seu nome se erigiu e se manteve um regime durante quinze anos e que na primeira oportunidade que os cabo-verdianos tiveram liberdade para votar massivamente o rejeitaram. Faria ainda melhor o Estado de Cabo Verde em manter bem vivo os princípios e valores que a esmagadora maioria dos cabo-verdianos desfraldaram em bandeira para pôr um fim à ditadura dos quinze anos.

Em vez da parceria com a fundação Amilcar Cabral, que certamente tem os meios para realizar a sua agenda – ou não é o seu presidente recipiente do prémio milionário de Mo Ibrahim – o que se devia esperar do governo e de outras instituições do Estado seria um engajamento mais forte e mais visível na celebração do trigésimo aniversário da Constituição da República. A escassos dias do 25 de Setembro, o Dia da Constituição, não se conhece ainda o programa de uma comemoração que ao longo de todo o ano de 2022 devia ter tido o maior impacto na sociedade, na academia e junto das pessoas. Porque o que realmente se precisa é conhecer e cumprir a Constituição para que o país tenha liberdade, democracia e uma justiça eficaz. Com a garantia de ordem social e política pode-se, com iniciativa, criatividade e capacidade de inovar, enfrentar os actuais desafios, preparar o futuro e fazer prosperar o país.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1085 de 14 de Setembro de 2022.

segunda-feira, setembro 12, 2022

Reacender o gosto pelo conhecimento

 Entrou Setembro e as escolas, os pais e os alunos preparam-se para um novo ano lectivo. Prevê-se um total de quase 114 mil alunos distribuídos em cerca de 82 mil pelo Ensino Básico e de 32 mil pelo Ensino Secundário. Segundo o ministério da Educação está tudo a postos para um começo na normalidade.

De facto, é bom que toda a logística para o funcionamento tenha sido montada e pronta a operar e que os recursos humanos, em particular os professores, tenham sido alocados de acordo com as necessidades. Mas não se deve ficar por aí. Os tempos actuais não são de normalidade, aliás, são de crises múltiplas e sucessivas, e o futuro próximo está cheio de incertezas. Por isso, no regresso às aulas uma outra dedicação, urgência e ambição deverá ser transmitida ao sistema para que seja possível a produção de capital humano à altura dos desafios presentes e futuros do país.

A aposta dos cabo-verdianos na educação dos filhos é algo que vem de longe, de séculos atrás. Sempre que oportunidades se ofereceram, com a disponibilização de escolas públicas ainda no século dezanove, posteriormente via Seminário na ilha de S. Nicolau e mais tarde dos liceus ao longo do século vinte, as famílias de todos os extractos sociais tudo faziam para as aproveitar. O desejo de ver os filhos com possibilidade de uma vida diferente e até de uma carreira na administração pública resultava em boa parte da percepção da precariedade da existência derivada das secas cíclicas e de outras vulnerabilidades do arquipélago. Havia também reconhecimento da importância do conhecimento traduzido no forte e generalizado apreço da população pelos seus intelectuais e homens e mulheres da cultura.

Com a independência nacional, os sucessivos governos servindo-se da extraordinária ajuda do exterior que foi disponibilizada ao longo dos anos para financiamento de escolas, formação de professores e bolsas de estudos proporcionaram os meios para responder a esse desejo arraigado da população de pôr os filhos a estudar. Construíram-se escolas do ensino básico por todas as ilhas, depois liceus a partir dos anos noventa e na década seguinte seguiram-se as universidades. O resultado desse esforço é que hoje a população alfabetizada do país situa-se à volta dos 89%. Entretanto, a massificação do ensino que tornou isso possível não foi acompanhada da preocupação com a qualidade do ensino prestado.

Com esses desenvolvimentos quebrou-se de alguma forma a ligação anterior entre conseguir diploma e ter conhecimento. Caiu também o estatuto social dos professores e da elite cultural do país. A situação piorou ainda mais quando se constatou que a esperada mobilidade social derivada de maior escolaridade afinal materializava-se, mas por outras vias que não do mérito. Se se associar a isso tudo o facto de a economia não acompanhar com a criação de postos de trabalho suficientes para o número de jovens que terminavam a formação nos diferentes níveis das escolas do país, imagine-se a frustração dos indivíduos e das famílias e o círculo vicioso que se cria e se alimenta com a perda de vontade em continuar os estudos como revelam as altas taxas de abandono no ensino secundário. Acrescenta-se ainda o desperdício em termos de capital humano que ano após ano o país acumula com a incapacidade de conseguir retorno adequado dos enormes investimentos feitos no sector da educação.

Há muito que se devia ter feito um esforço concertado da sociedade e do Estado de inflectir a actual situação e de efectivamente procurar valorizar o capital humano do país. Se não se vê muito progresso nesse sentido é talvez porque alguma inércia institucional se instalou e múltiplos círculos viciosos não permitem que tentativas de reforma do sistema sejam bem-sucedidas. Também não ajuda a falta de engajamento com o conhecimento que pudesse traduzir na exigência, designadamente de maior qualidade de ensino e de infraestruturas como bibliotecas, casas de ciência e museus e também de uma televisão pública culturalmente mais rica. De facto, o apreço anterior pelo conhecimento e pelos seus expoentes máximos nacionais não foi potenciado e deixou-se instalar em substituição a mediocridade e a ideologia. Reviver a paixão pelo conhecimento e valorizar o mérito é fundamental para pôr o país no caminho certo. O exemplo vem de países, particularmente os mais pequenos e insulares, como Singapura, Estónia e Maurícias, que conseguiram dinâmicas sustentáveis no seu processo de desenvolvimento.

Paixões de outro tipo não faltam, mas provavelmente são deslocadas porque não se concentram no essencial. Um exemplo flagrante é a que alimenta a movimentação para a oficialização do crioulo. Parte-se do pressuposto errado que o crioulo está em perigo ou encontra-se num estado de inferioridade em relação ao português e desencadeia-se um combate sem tréguas para a supostamente salvá-lo. Faz-se tudo por ignorar que emergiu dentro do império português e que, se enquanto língua materna dos cabo-verdianos não foi constrangida ou foi confinada pela língua oficial portuguesa, como por exemplo aconteceu com as outras línguas no Brasil, não seria depois da independência que isso iria acontecer quando na relação com todas as instituições democráticas e os seus titulares é livre o seu uso. Com o mesmo descaso para com a verdade dos factos quer-se fazer acreditar que se trata de uma luta identitária central para o país quando é matéria assente que a consciência da nação há séculos que se consolidou no arquipélago.

Mas a verdade é que paixões assim soltas conseguem resultados. Ideologicamente motivadas pressionam o Estado para se submeter aos seus ditames. No processo não se devia deixar de contabilizar os estragos na aprendizagem da língua oficial que afecta milhares de jovens e crianças e as deficiências que deixam em muitos outros que distraídos por todo esse combate fictício não conseguem obter as necessárias competências para uma cidadania plena e para uma actuação vantajosa no mundo actual interconectado e globalizado. Para o crioulo também há estrago porque acumula prejuízos à medida que se acentua a sua oralidade mesmo que apareça suportada por uma escrita de variantes à descrição do falante em particular e se afasta cada vez de uma escrita estandardizada com capacidade de expressão da toda a produção literária e institucional do país. E enquanto se está assim engajado à cata de objectivos ideológicos e de moinhos de vento não há paixão pela verdade e pelo conhecimento que se desenvolva.

Ora, sem isso não há como travar a grande luta pelo desenvolvimento do capital humano essencial para o crescimento do país particularmente neste período de crises que tudo leva a crer que vários anos vão passar até que surja alguma aparência da normalidade. Várias personalidades e figuras do Estado, entre os quais o presidente da França Emmanuel Macron já anunciaram o fim de uma era. À abundância que caracterizou os tempos recentes, deve suceder um tempo mais frugal, mais caro e mais exigente. É evidente que para se sobreviver e prosperar num mundo desses a qualidade do capital humano essencial para criar, inovar e aumentar a produtividade é crucial. Neste início de ano lectivo é momento certo para deixar de lado paixões ideologicamente motivadas e reacender o gosto pelo conhecimento, pela descoberta e experimentação. Também é tempo para renovar a vontade de aquisição de competência científicas e linguísticas necessárias para o sucesso ao nível individual e indispensáveis para o país prosperar. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1084 de 7 de Setembro de 2022.

segunda-feira, setembro 05, 2022

A democracia precisa de uma sociedade civil actuante

 

É consenso geral que a democracia para se consolidar precisa de ter uma sociedade civil actuante e ciosa da sua autonomia. Tocqueville nas primeiras décadas da república americana já chamava a atenção para a importância crucial do associativismo e do que hoje se chama de capital social para o funcionamento pleno da democracia.

Cabo Verde a completar no dia 25 de Setembro 30 anos de construção das suas instituições democráticas no quadro da Constituição de 1992 depara-se ainda com uma sociedade civil incipiente porque extremamente dependente do Estado e com capital social baixo, como comprovado em vários estudos, incluindo os do Afrobarómetro. Esse desequilíbrio entre a sociedade política e a sociedade civil além de prejudicar a acountability necessária para a consolidação da democracia acaba por ser uma fonte de frustração e ressentimento das pessoas que com o passar do tempo já não se sentem representadas ou se veem impotentes para fazer mudanças.

As recentes manifestações em várias ilhas a pretexto do problema dos transportes entre as ilhas e da agitação social à volta do caso Amadeu Oliveira são exemplos disso. Assim como são outras reivindicações como as de maior autonomia para ilhas, de descentralização dos poderes no país e de uma justiça mais eficaz. Na sequência de todas elas e pelo facto de não se conseguir da parte do governo e do conjunto da classe política resposta compreensiva para os problemas, nota-se um sentimento de impotência que primeiramente indispõe as pessoas contra as instituições em particular o parlamento e contra os partidos políticos. Depois, como veio a acontecer, esse sentimento pode progredir para atingir instituições como a justiça se tentativas de mexer com o actual sistema, via criação de outros partidos ou participação em eleições autárquicas com grupos de cidadãos, acabar por falhar.

A evolução dos Sokols e de outros movimentos em S. Vicente é paradigmático a esse respeito. Noutras ilhas algo similar vem acontecendo. Alguns viram-se em dificuldades depois de ter falhado a via eleitoral com os poucos votos conseguidos nas urnas. Também não resultou a tentativa de manter alguma continuidade de acção com indignações sucessivas porque acabam por se revelar efémeras e não dão consistência aos grupos. Uma outra via podia ser através das redes sociais que, por terem sido adoptadas por quase todos e pelo seu aparente alcance, criam a ilusão de um protagonismo que, desde a Primavera Árabe e dos movimentos de Occupy Wall Street de há dez anos atrás, se sabe que não têm tradução na realidade. De facto, cedo se percebeu que as redes sociais podem ser muito úteis na mobilização para eventos de rua, mas que dificilmente se prestam para garantir continuidade de acção de grupos por tempo suficiente para serem transformadores. O problema é que, depois da ilusão criada, a frustração é ainda maior e o efeito disso tudo nem sempre é de mudar a abordagem, mas sim de insurgir contra as instituições. O conteúdo de algumas declarações à volta do caso Amadeu Oliveira é ilustrativo a esse respeito.

E ninguém ganha com isso. Não ganha a sociedade política, nem a sociedade civil. Como diz Mo Ibrahim “O Estado de Direito (rule of law) é o elemento mais importante em qualquer sociedade civil”. Não se compagina com vigilantes, heróis ou mártires e a sua defesa é fundamental para se ter liberdade e segurança na democracia. Perante o que configura um caminho que até agora só vem acumulando frustração e ressentimento em vários sectores, a questão que se coloca é procurar saber as razões da fragilidade da sociedade civil cabo-verdiana. A partir daí avançar com uma outra abordagem que a torne efectiva no papel que deve desempenhar na consolidação da democracia.

A ideia da sociedade civil ganhou um outro vigor nos processos de transição para a democracia de regimes autoritários e totalitários verificados nos finais da década de oitenta e princípios da década de noventa na sequência das reformas “Glasnost e Perestroika” introduzidas por Mikhail Gorbatchev na União Soviética. Em Cabo Verde, a ideia da sociedade civil ainda foi suprimida nos textos do III Congresso do então partido único em 1988, mas depois da queda do Muro de Berlim e da abertura política foi recuperada no movimento popular de 1990 que levou ao 13 de Janeiro de 1991. Os efeitos de quinze anos de confinamento da intervenção social das pessoas aos limites e condicionalismos das organizações de massa porém não desapareceram completamente. A dependência do Estado não acabou e a tendência para políticas eleitoralistas num quadro de precariedade e de grandes vulnerabilidades da população certamente que não contribuiu para a autonomia e afirmação da sociedade civil.

Um outro facto é que a política seguida nos quinze de anos de partido único de intimidação das elites anteriores dirigida contra proprietários agrícolas, comerciantes e intelectuais em Maio de 1977 e no dia 31 de Agosto de 1981 designadamente levaram a um vazio substituído por uma elite dócil à volta do Estado. Como a centralidade do papel do Estado na economia e noutros sectores da vida do país ainda não foi contrabalançada por um sector privado dinâmico é evidente que muito condicionalismo das elites actuais ainda persiste, não obstante o ambiente de liberdade e pluralismo formalmente existente. Nem aparentemente o surgimento das universidades tanto públicas como privadas resultaram num revigor do discurso e um maior nível de participação na esfera pública protagonizado por elementos da academia e por estudantes livre-pensadores e inconformistas. O espectáculo recente de um ministro a anunciar uma cátedra da emigração na Uni-CV e a escolher a sua sede na presença do magnífico reitor não foi um bom sinal da autonomia que se espera encontrar nas universidades.

O caminho para se ter uma sociedade civil mais autónoma e mais actuante tem que ser percorrido com renovado vigor e energia e ciente dos muitos percalços ainda existentes. Fundamental para isso é construir uma economia próspera suportada pelo sector privado que diminua a dependência das pessoas em relação ao Estado. A par de se pôr de lado os resquícios do igualitarismo que promove a mediocridade e não reconhece o mérito há que elevar o sentido de responsabilidade pessoal tanto na consecução do bem comum como na intervenção cívica e política que mais se coaduna com o exercício de uma cidadania livre. Só com isso é que se pode evitar as derivas na participação no espaço público que levam à frustração e ao ressentimento e aumentam o sentimento de impotência. Também por aí é que se evita que demagogos, autocratas e populistas de outras estirpes consigam mobilizar adeptos na luta para destruir a democracia. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1083 de 31 de Agosto de 2022.