O ano de 2024 anuncia-se complicado. Não deveria precisar de mais problemas, mas foi o que precisamente veio à tona na última semana do ano passado, a partir da presidência da república. Foi revelado ao público que a primeira-dama auferia salário, algo que acontece pela primeira vez na história do Cabo Verde democrático sem qualquer base legal.
Pelas explicações do chefe da Casa Civil publicadas num post da sua página pessoal do Facebook ficou-se a saber da intenção de dotar o país de um estatuto de primeira-dama que prevê salário por exercício de funções incluído num ante-projecto da lei orgânica da presidência. A complicação surgiu do facto de, sem ainda ter lei orgânica aprovada que é matéria absolutamente reservada da Assembleia Nacional, os salários da primeira-dama passaram a ser pagos a partir de Janeiro de 2023, em cumprimento da directiva nº 01/CCC/2023 assinada pelo chefe da Casa Civil.
A reacção geral das pessoas não se fez esperar tanto pela falta de respaldo legal como pelo montante que ultrapassou o auferido por titulares de órgãos de soberania, incluindo o presidente da república. A forma como em comunicados sucessivos a presidência da república respondeu às indagações do público e às questões dos jornalistas não foi convincente como dificilmente poderia ser por não existir suporte legal para os actos praticados. As posteriores declarações do PR não contribuíram para clarificar a situação ao ficar por solicitar ao Tribunal de contas e à Inspecção Geral das Finanças o seu pronunciamento sobre a matéria e por decisões pouco avisadas de suspender o uso de transporte e segurança pessoal à primeira-dama.
No imbróglio ainda foi introduzida a exoneração do conselheiro jurídico que pelo “timing” do acto sugeriu que se estaria a apontar um culpado ou a procurar um bode expiatório. Deixou-se o “equívoco” arrastar-se demais o que levou o presidente da república, num gesto inédito, a pedir desculpas publicamente à pessoa visada através de um post nas redes sociais. Finalmente, acabou por aparecer o chefe da Casa Civil também via Facebook a afirmar que o Estatuto de primeira-dama, embora “não sistematizado e lacunoso”, existe. Prossegue, exigindo celeridade ao governo porque, segundo ele, só “há dois caminhos possíveis: decide o Legislador (Parlamento e Governo) por fixar em diploma único, sistematizado, todo o Estatuto ou, reconhecendo o que já existe, opta pela regulação do que falta”. Fica a sugestão que todo o imbróglio actual é devido à procrastinação do legislador e em particular do governo.
Colocando a questão dessa forma, já se entra no terreno familiar da vida política no país em que tudo o que acontece resulta do conflito entre o governo e a oposição. As declarações de dirigentes do PAICV vão nesse sentido e, pelo posicionamento das hostes partidárias do lado da oposição e da maioria na embrulhada, vê-se como toda a oportunidade é boa para uns se atirarem aos outros. Não há preocupação em salvaguardar que se exerça o poder de acordo com a Constituição e a lei, que os órgãos de soberania cumpram com as suas competências próprias e que recursos públicos sejam gastos dentro da legalidade.
No caso em particular nem se quer ponderar o facto de a lei orgânica só prever um gabinete de apoio ao cônjuge do PR. O mesmo acontece em Portugal e nos Estados Unidos, onde a posição é reconhecida há mais de duzentos anos, mas é claro para todos que “a primeira-dama não é um cargo eleito; não exerce funções oficiais e não recebe salário. No entanto, ela participa em muitas cerimónias oficiais e funções do Estado”. A actual first lady, a doutora Jill Biden, é professora e trabalha. Insistir num voluntarismo em relação à matéria, fazendo vista curta ao facto de não existir base constitucional e legal e não corresponder à experiência de outras democracias com sistemas de governo tanto parlamentares como presidenciais, só pode resultar em mais descredibilização das instituições e, no contexto actual pre-eleitoral, em mais um factor de tensão entre os órgãos de soberania.
Aliás, a conferência de imprensa do paicv a atacar o Tribunal de Contas sob a capa de questionar o parecer desse tribunal sobre as contas de 2021, com afirmações do tipo governo comete ilegalidades na barba cara do tribunal de contas e nada acontece; manda fazer auditorias e acusa pessoas, é um sinal como se vai alargando para outras esferas institucionais a possibilidade de se ser apanhado na onda de polarização e de crispação política do país. Nesse sentido, por um lado, faz-se por se mostrar colado à presidência da república mesmo sabendo que esta deve ser suprapartidária e, por outro, deixa-se entender que há subserviência ao governo da parte do tribunal de contas quando devia existir independência do poder político. Já se vinha fazendo algo similar por causa das contendas do presidente da câmara da Praia com esse tribunal. A impressão que fica é que facilmente se sacrifica lealdade ao sistema constitucional e às instituições democráticas a troco de pequenos ganhos tácticos no jogo político do momento.
Com um certo tipo de “voluntarismo”, que vai ao encontro de alguma cultura revolucionária ainda existente que não se deixa constranger pelas leis, mas deixa-se levar por outros princípios entre os quais o princípio de que os fins justificam os meios, incorre-se no risco de aumentar as tensões institucionais, de prejudicar tudo e todos com falta de previsibilidade e de minar a confiança no sistema democrático. A estabilidade é uma das marcas da democracia cabo-verdiana e deve-se em boa parte ao sistema de governo parlamentar adoptado na Constituição de 1992. Inovações no sistema político tanto no sentido de mais protagonismo presidencial ou de omissões e demonstrações de fraqueza do governo tendem a perturbar o equilíbrio entre os órgãos de soberania e a criar a instabilidade que adia a resolução dos problemas. Experiências tanto em democracias mais amadurecidas como Portugal como em outras mais frágeis como São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau provam isso.
Em Cabo Verde, o Presidente da República é o árbitro e moderador do sistema, não tem iniciativa em matéria de revisão constitucional e não se pode recusar a promulgar as leis de revisão. Os governos são de maioria absoluta e só governam plenamente depois de aprovada uma moção de confiança. Nestas circunstâncias não fica muito espaço para o tipo de intervencionismo do PR que governos minoritários muitas vezes propiciam. Querer forçar nesse sentido cria tensões desnecessárias e só prejudica o sistema porque fragiliza o seu papel de árbitro e moderador. O pior acontece se na proximidade de actos eleitorais partidários se verificar tentativas de colagem e de fazer do presidente da república o chefe da oposição.
Diz-se que normalmente em sistemas de governo semelhantes ao de Cabo Verde tal pode até acontecer, mas em geral só no segundo mandato do PR. Curiosamente parece que está a acontecer agora. Se assim for não é uma boa notícia para Cabo Verde neste ano em que a nível global há muitas incertezas e o país necessita recuperar do impacto de crises sucessivas na economia, nas empresas, no emprego e no rendimento das pessoas. O que menos se precisa é de instabilidade e de “casos e casinhos” que minam a confiança das pessoas e descredibilizam a partir de dentro as instituições.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1154 de 10 de Janeiro de 2024.