sábado, janeiro 24, 2009

Tempo das vacas magras

No dia 22 de Janeiro, nas festividades do Dia do Município em S. Vicente,  o Sr. Primeiro Ministro proclamou, que “todos os investidores terão o título de propriedade necessário para a realização dos investimentos, independentemente da forma em que foi feito o negócio”. E que, relativamente à questão da legalidade ou não das vendas efectuadas, [isso] este será tema de discussão entre a Câmara Municipal e o Governo, entidades que farão directamente o “ajuste das contas” e resolverão os problemas em “diálogo, concertação e negociação”.
Tudo indica que o Governo, finalmente, resolveu mostrar bom senso. Mas, para S.Vicente, foi tarde de mais. A crise já está cá, o imobiliário turístico residencial está paralisado pelo congelamento internacional do crédito, os emigrantes retraem-se nas remessas e no investimento e a construção civil sofre com o impasse no registo dos terrenos. 
E a recuperação não está à vista. A recessão nas economias europeia, americana e japonesa ameaça precipitar a economia global numa depressão, com consequências devastadoras para todos. Na saída da crise, quando acontecer, já é claro que o mundo não será o mesmo. As oportunidades de ontem não se repetirão. 
S Vicente vive hoje mais uma frustração. Vê recuar para mais longe as suas legítimas expectativas de adquirir a base económica sólida necessária para resolver o grave problema de desemprego, combater a pobreza, reencontrar a sua voz e contribuir decididamente para o desenvolvimento de Cabo Verde. 
Aparentemente, oportunidades para ultrapassar a letargia sócio-económica da ilha não faltaram. Que o diga o Governo com os seus múltiplos anúncios de milhões e mesmo biliões de euros que iriam ser investidos na ilha. Todos se lembram dos masterplans, apresentados com pompa e circunstância, mostrando grandes resorts, campos de golfo e hotéis de cinco estrelas. Tudo isso ficou para trás a meio de intransigências institucionais, sobranceria política e ganância pelos dinheiros de terrenos. 
E não por falta de aviso. Ao longo dos anos vem-se chamando a atenção do governo para a sua responsabilidade principal em pôr fim aos conflitos entre o Estado e a Câmara Municipal e em acabar com as incertezas dos investidores e a insegurança jurídica geral, que já tantos prejuízos fez na imagem de Cabo Verde. 
Finalmente o Governo ouviu. Ouviu mas não assumiu. Agora culpa a crise pelo não arranque dos projectos. Crise que há bem pouco tempo nem reconhecia. Envolto na sua própria propaganda, vinha-se iludindo e iludindo a todos que o país não seria grandemente afectado pelo que se passava lá fora. Depois da fase de pavonear-se com a gestão macroeconómica, que supostamente punha o País a salvo da crise, passou agora à fase de atirar as culpas para a crise pelos objectivos não atingidos e promessas não cumpridas. 
Joga para ganhar sempre. Por isso envolve o País numa névoa de meias verdades, desinformação e propaganda, que não deixa ver os magros resultados realmente alcançados no combate aos males do presente - desemprego à cabeça – nem prepara o futuro, criando as condições certas para ganhos reais de competitividade e de produtividade. 
Não é a primeira vez que S.Vicente sofre na pele as consequências das políticas desastrosas do Governo do PAICV. Nos primeiros anos desta década as oportunidades na indústria esfumaram-se. Desapareceram a meio de omissões, posturas dúbias e alguma incapacidade em reconhecer e aproveitar oportunidades, designadamente, a de acesso ao mercado americano no quadro do AGOA, do African Growth and Opportunity Act. Milhares de postos de trabalho foram perdidos em S.Vicente. Empregos directos e indirectos. Principalmente de jovens mulheres, muitas delas mãe solteira.      
Oportunidades para S.Vicente quando são reais, perdem-se. Promessas, essas são repetidas até à exaustão. 
Prometeu-se porto de águas profundas. Porto com 15 metros de profundidade capaz de receber os maiores porta-contentores, os de terceira e quarta geração. A exemplo do porto de Shanghai que optou por fazer tais obras para passar a sua capacidade de escoamento de 3 milhões para 9 milhões de contentores/ano. Não é esse, propriamente, o nível de tráfico nesta sub-região que, de acordo com certos relatos, não chega a um milhão de contentores/ano. Repete-se incessantemente a promessa mas depois acrescenta-se que se está à espera de manifestação de interesses de operadores privados e correspondentes investimentos. 
Desde de há algum tempo atrás, acena-se insistentemente com a possibilidade de S.Vicente ser uma zona especial da China, quando já se sabe que as ilhas Maurícias foram as únicas ilhas escolhidas para albergar uma das cinco zonas especiais em Africa. Segundo o Financial Times, as Maurícias vão beneficiar de 700 milhões de dólares  de financiamento inicial da China. 
S.Vicente precisa de acção consequente. E de uma visão integradora capaz de potenciar as suas múltiplas valências, designadamente como cidade de eventos, conferências, e centro universitário, para além de prestação de serviços internacionais na área portuária e de pescas. Uma futura MICE city. Há que cortar com o círculo vicioso de optimismo excessivo seguido de grandes frustrações ou mesmo desânimo, que corrói a alma. 
Um exemplo, do que pode acontecer por falta de sistemática na implementação estratégica de opções feitas, é o aeroporto de S. Pedro. O aeroporto está construído mas, para receber voos internacionais regulares, a ilha precisa de quartos suficientes. E ainda não os tem. O atraso na implementação dos projectos ameaça encalacrar tudo. 
Nos tempos de crise, que se vive, de oportunidades perdidas e do consequente falhanço no arranque da dinâmica económica de algumas ilhas, é fundamental que se avalie as razões porque se ficou tanto aquém dos objectivos pretendidos. E com essa avaliação se tome uma outra atitude na procura do desenvolvimento do país e de todas as suas ilhas e deixe-se desse comportamento quase bipolar que oscila entre a euforia com que se recebe projectos ou ideias de projectos e a fase depressiva em que se dificulta tudo
Urge agora ajudar o País a enfrentar o mau tempo que vem aí, o tempo das vacas magras. O Governo já agiu rapidamente para segurar a administração pública, no quadro da sua estratégia politico-partidária de posicionar o PAICV como partido dos funcionários. Aumentou os vencimentos, diminuiu os impostos e abriu a possibilidade de novas admissões. 
Ainda não se sabe é o que vai fazer com as ilhas mais expostas à economia mundial, como são as ilhas do Sal, Boavista e S.Vicente, para evitar o aumento do desemprego e consequentes males sociais, que daí virão. Nem que acções tem em mente para as outras ilhas e para o interior da ilha de Santiago, que não deixarão de ser afectadas pela diminuição das remessas dos emigrantes e pela contracção da procura dos seus produtos agro-pecuários. Pode-se já contar com o recrudescer de migrações para as cidades, mas particularmente para a cidade da Praia, onde o peso das despesas correntes do Estado (salários e compra de bens e serviços) se fazem mais sentir e maiores são os efeitos de arrastamento na economia local. 
Os investimentos públicos previstos incidem sobre grandes projectos cujo impacto imediato é limitado. Isso por duas razões: Uma porque não empregam muita gente e outra por estarem nas mãos de empresas estrangeiras. O Governo tem que suprir essas deficiências e investir fortemente em obras, em todos os municípios do País, para fazer face ao desemprego e à perda de rendimento das populações. O melhor investimento será aquele que procurará empregar o maior número de pessoas, mas também constituíra um ganho para o futuro, em termos de criação de condições para ganhos de qualidade e produtividade. 
Para isso é fundamental a colaboração do governo com as câmaras municipais. O Governo, certamente, já se apercebeu dos enormes prejuízos que advêm da persistência de conflitos com as autarquias. É de evitar que o que se passou em S.Vicente volte a acontecer noutros pontos do território nacional. 
Os órgãos municipais foram eleitos e prestam contas às suas respectivas populações. O Governo tem o dever de respeitar isso e mostrar-se leal na relação institucional com órgãos democraticamente eleitos e proceder à repartição justa de recursos públicos entre o Estado e as autarquias, que a Constituição estabelece.   

      Publicado pelo Jornal Asemana de 24 de Janeiro de 2009

sexta-feira, janeiro 09, 2009

Votos no dia 13 de Janeiro

A 20 de Janeiro Barack Obama torna-se no 44º Presidente dos Estados Unidos da América.

Há um ano atrás poucos acreditavam que isso seria possível. Depois da vitória nas primárias de Iowa, os americanos e o mundo começaram a prestar atenção. Após duas dezenas de debates com Hillary Clinton, audiências em todo o planeta estavam fascinadas. Depois vieram as convenções dos partidos democrático e republicano, o fenómeno Sarah Palin e finalmente a crise financeira com a falência dos Lehman Brothers. Obama, o mais cool de entre os políticos, manteve-se sempre à altura dos desafios da campanha e atento e sintonizado com a conjuntura económica emergente a partir da segunda quinzena de Setembro.

A revista Economist, em editorial, manifestou o seu apoio à eleição de Obama. Reconhecia nele qualidades para ser o próximo presidente da América, não obstante o currículo político limitado. Qualidades reveladas no estrondoso sucesso obtido, em termos de pensamento estratégico, de capacidade organizativa e de energia combativa, sobre as duas maiores máquinas político-partidárias da América: a máquina dos Clinton e  máquina da direita conservadora.

O triunfo de Obama tem vários componentes. É primeiro de tudo o triunfo de uma ideia da América. A América é um país originariamente de imigrantes que se construiu como nação à volta da ideia da Igualdade, da Liberdade, da Democracia, do império da Lei (rule of law), do poder judicial independente e da Constituição. Como tal é uma fonte inspiradora da Humanidade, não obstante as profundas contradições ainda existentes. A escravatura e o racismo institucionalizado de séculos deixaram marcas profundas.

Sempre que América fica aquém dos seus ideais é fortemente fustigado por todos. Guantanamo é um caso gritante. Mas, quando se confirmam as oportunidades de afirmação e de realização individual, que a Liberdade e o primado da Lei propiciam, o seu simbolismo é reforçado e uma onda de esperança varre o mundo. È o que está a passar com o Obama.

Todos esperam a liderança americana para evitar que crise financeira desemboque numa recessão global, ou mesmo depressão. E também para encontrar soluções energéticas, para além do petróleo, e coordenar a acção planetária de contenção de mudanças climáticas, potencialmente catastróficas.

Diz-se que Obama é pós racial. A realidade é que pôde vencer porque nunca se deixou apanhar nas redes de vitimação pessoal, racial, étnica ou religiosa. Vitimação cria paixões, polariza a sociedade e bloqueia o debate social e político. É uma óptima via para se perpetuar a dependência do opressor de ontem e erigir a desresponsabilização como modo de vida. Obama caminhou sobre o campo minado de política identitária hasteando sempre a bandeira da responsabilidade: responsabilidade pessoal, familiar, social, cívica e patriótica.

Diz-se ainda que Obama é um político pós partidário. Não se deixa apanhar por interesses fechados sobre si próprios no interior do partido, nem se resume ao uso de tácticas de conquista ou de manutenção de poder, a todo o custo. Obama provou que é possível fazer política sem que o stock nacional de cinismo cresça e sem inibir os que se aproximam da política por idealismo, por vontade de participação cívica ou por sentido de urgência que é preciso algo, já e agora, para mudar as coisas. Por isso, pôde atrair jovens e fazer muitos acreditar na política, suportada por princípios e guiada por uma visão compartilhada.    

A eleição de Barack Obama emocionou o mundo. Cabo Verde não foi excepção. Impõe-se porém que se vá para além do entusiasmo inicial e se retire ilações desse feito realmente extraordinário. Uma dessas ilações é que política não tem que ser sinónimo de cinismo e de hipocrisia.

De facto, Obama vem demonstrar que se pode vencer com verdade, assumindo a responsabilidade de apresentar à sociedade factos fidedignos e propostas de políticas e rejeitando demagogia e populismo. Que se pode vencer sem ir pela via da mobilização de paixões primárias, geradas pela vitimação pessoal ou do grupo, a diabolização do outro e a exploração de temas fracturantes, que mais se aproximam da esfera moral e pessoal de indivíduos do que do espaço da lei e de políticas públicas.

Muita política feita em Cabo Verde explora e potencia resquícios de culturas políticas,  salazarista e de partido único, do passado recente que, em comum, têm o escarnecer do pluralismo e o fascínio pelo consenso. O exercício do contraditório é visto como perda de tempo e não servindo o interesse público. Em consequência, o interesse público não deve ser matéria de discussão. Alguém, Salazar ou o PARTIDO, superiormente já o incarna

O resultado é que muitos movimentos tácticos de sujeitos políticos concentram-se no furtar ao debate, em nome de consensos, e na fuga a negociações, para forçar os outros á capitulação. Para isso recorre-se à mobilização de apoios em grupos de interesses específicos. Se se trata de políticas públicas, são muitas vezes grupos profissionais que são chamados à liça. Se são disputas municipais, opõe-se naturais contra residentes ou o município é apresentado como vítima. Se é disputa entre partidos, alguém reivindica estar a defender o interesse público, enquanto o outro é denunciado como antipatriótico. Se é matéria intra-partidária apela-se á unidade para calar vozes discordantes ou lança-se a disputa por lugares, actuais e futuros, para manter complacentes os mais ambiciosos e conter ou isolar os inovadores. Chega-se mesmo a reivindicar, à socapa, ou às vezes nem tanto, o direito de uns vetar outros para cargos centrais da república, com base na demografia das ilhas.
Paradigmático de uma certa forma de fazer política foram as últimas reacções do Governo e partidos à situação da Justiça em Cabo Verde.
As notícias da soltura de arguidos, condenados em primeira instância, mas à espera de recursos interposto junto ao Supremo Tribunal de Justiça, por excesso de prisão preventiva, foram muito mal recebidas pelo público. As pessoas pensaram que os assassinos das italianas no Sal tinham ido em liberdade, ou seja tinham ficado ilibados da condenação e da pena. O sentimento público de choque, em grande medida resultante dessa má percepção dos acontecimentos, foi prontamente explorado por interesses políticos.
Em vez de contribuir para desvanecer o engano do público, a preocupação do Governo foi aproveitar-se dos equívocos criados e retomar o discurso de que a reforma de Justiça falhou por culpa da oposição. Deixa passar a ideia que a falha do STJ seria por falta de juízes, ou dito de outra forma, por excesso de trabalho dos actuais juízes. Não é o que diz o Conselho Superior de Magistratura, em comunicado de 6 de Janeiro. Na origem dos “habeas corpus” estão duas correntes ou sensibilidades jurisprudenciais, que se formaram no interior do Supremo Tribunal Justiça, com interpretações diferentes quanto a questão dos prazos da prisão preventiva
O Governo insiste e diz que é preciso alargar o STJ. Mas alargar já, ou seja no modelo que já só existe nas disposições transitórias da Constituição, no modelo de nomeação política dos juízes. À revelia de todos, designadamente do comunicado referido do CSM que explicitamente se refere a necessidade de reestruturação do STJ num novo figurino, com um número de juízes suficiente.

Para conseguir os intentos do Governo de retirar dividendos políticos da situação, o Primeiro Ministro lança-se numa operação “duvidosa” de audição de ex-presidentes da república, ex-primeiro ministro, e outros antigos governantes. Procura projectar imagem de procura de consensos nacionais, onde não devia, para não ter que trabalhar entendimentos necessários com a oposição. Votos do MpD e do PAICV somam os dois terços necessários à revisão da Constituição, revisão hoje por todos reconhecida, como essencial à reforma de Justiça, e também à eleição dos juízes do Tribunal Constitucional e do Provedor de Justiça.

Prefere fazer capitular o MpD na onda de indignação, artificialmente sustentada com meias verdades e desinformação, encontrando-se com o presidente desse partido a meio da leva de personalidades que escolheu receber. Em Outubro último, tinha recusado terminantemente ao encontro de líderes partidários. Encontro que a outra parte via como essencial à criação da vontade política parlamentar indispensável à reforma da justiça.

A celebração de 13 de Janeiro deve lembrar a Opção feita pela Liberdade e o pluripartidarismo, pela instituição de uma democracia liberal e constitucional. Deve reforçar em todos os caboverdianos a determinação de pôr fim a resquícios de culturas políticas, que ainda assombram o presente.

Hoje a América tem a sorte de enfrentar a maior crise desde da Grande Depressão dos anos trinta com uma nova liderança. A liderança de um presidente que soube trazer de volta para a participação na esfera pública muitos que a ausência de ideias dos partidos e a degradação dos mesmos num cinismo e partidarismo asfixiantes tinham afastado.

Vamos fazer votos para que Cabo Verde também realize esse feito de ganhar uma liderança à altura dos seus desafios. Vamos fazer votos no dia da Coragem e da Dignidade. No dia 13 de Janeiro.

       Publicado no jornal Asemana de 9 de Janeiro de 2009

sexta-feira, dezembro 26, 2008

Líderes precisam-se

Os resultados das eleições autárquicas de Maio de 2008 induziram alterações marcantes na actuação política do MpD e do PAICV. As expectativas dos partidos e o comportamento dos seus dirigentes mudaram. Euforia da vitória e sentimento de derrota fizeram-se sentir, com todas as consequências no interior dos partidos e na esfera política.  

Foram eleições a meio da legislatura. Para o PAICV as autárquicas deviam demonstrar a correcção da sua agenda de transformação e o seu nível de impacto nas populações. A vitória nessas eleições confirmaria a persistência da onda de vitória de 2006 e a possibilidade de conquista de um terceiro mandato. Para o MpD tratava-se de reafirmar a sua condição de grande partido autárquico e de partido alternativo no sistema político. E também de dar forte impulso no processo de se credibilizar para as legislativas de 2011.

Eleições autárquicas são eleições essencialmente locais. Podem e são, em várias circunstâncias, afectadas por eleições nacionais ou conjunturas políticas nacionais. Se se realizam pouco antes ou pouco depois das legislativas, tendem a antecipar ou a espelhar mudanças na configuração das forças políticas nacionais. Se se verificam a meio da legislatura podem actuar como um barómetro, revelando a persistência do ímpeto ganhador do partido no governo, ou deixando transparecer o nível do desencanto. Isso, porém, não é linear.

O pior que se pode fazer é extrapolar os resultados das eleições autárquicas directamente para as legislativas. Particularmente quando não acontecem a meio de situações políticas arrebatadoras da atenção nacional e quando um longo período de tempo as separa. Nesses casos, o aspecto local prevalece. Tudo leva a crer que foi o que aconteceu em Maio.

O MpD veio das autárquicas de 2004 com 11 câmaras municipais, se se incluir a Câmara do Sal. O normal é que mantivesse as câmaras. O que aconteceu em mais de 80%. Geralmente o risco de perder é maior quando os actuais presidentes não se recandidatam. Perdeu no Paul onde tal se verificava. Perdeu também na Ribeira Brava, S. Nicolau, mas aí, factores outros, designadamente a proximidade da acção da Comissão Instaladora no município vizinho e a hostilidade do Estado tiveram o seu papel. Em contrapartida, ganhou em Santa Catarina contra um novo candidato do PAICV e realizou o feito de conquistar Ribeira Grande de Santiago, um dos novos municípios.

O PAICV, à partida, tinha a possibilidade de acrescentar às cinco câmaras os cinco novos municípios. O Governo, há mais de três anos, tinha instalado os candidatos do PAICV como presidentes das comissões instaladoras. Resultado: Capturou 4 das cinco novas câmaras. Mas perdeu a Praia. No balanço total, somando a câmara do Paul e subtraindo a de Santa Catarina, ficou com o controlo de nove municípios.   

A mudança de liderança na Praia foi a grande novidade nas autárquicas. Parece que também aí prevaleceram razões locais. A incompetência na gestão da cidade alienou mesmo apoiantes do Paicv, que ou se abstiveram na votação ou, marginalmente, apoiaram uma renovação da equipa camarária. Não é crível que o PAICV tenha perdido a maioria dos eleitores na Praia.

A desorientação e mesmo derrotismo subsequentes nas fileiras do PAICV denotam a surpresa e a frustração com que militantes e dirigentes encararam os resultados eleitorais. Pensaram que obras, acções sociais e permanente propaganda do Governo seriam suficientes para contornar os pressupostos locais das eleições e desalojar presidentes de câmaras. As expectativas de vitória eram grandes, particularmente nas câmaras em que interesses à volta de terrenos têm alimentado um braço de ferro entre o Estado e os Municípios. Compreende-se, assim, que o golpe tenha sido ainda maior na Praia, onde os vultuosos investimentos, realizados pelo Estado, não conseguiram apagar as marcas da falta de competência e da falta de transparência.     

Na procura de razões para a derrota fracturas internas manifestaram-se. A entrevista do deputado e ex-ministro, Júlio Correia, é elucidativo a esse respeito. Identifica a gestão dos TACV com um dos pontos de desgaste do governo e ataca o Governo na pessoa do Ministro das Infraestruturas. A tensão interna que se seguiu serviu para relembrar ao Primeiro-Ministro e presidente do partido o desconforto que a sua alegada arrogância provoca em certos sectores. O sinal foi dado que só o aturam enquanto for portador de vitórias.

Não estranha, pois, que José Maria Neves tenha já firmado o compromisso com o partido de concorrer para um terceiro mandato. O súbito reaparecimento de pretensões presidenciais de outras personalidades confirma o pacto. A moção de confiança, por outro lado, culmina um processo, longo de meses, de consolidação da unidade interna à volta do líder. Mudanças na direcção dos TACV, saídas de membros de Governo e o discurso político mais contundente em relação à oposição situam-se no quadro do esforço para superar as diferenças, sanar as fracturas internas e cerrar fileiras. E não há melhor forma de fazer isso do que mobilizar todos contra um “inimigo” externo.

O facto do Presidente do MpD ter assumido a vitória do seu partido nas autárquicas como vitória pessoal, não obstante o carácter marcadamente local dos resultados eleitorais, serviu para dar face, voz e estilo à “ameaça externa”. E nisso, grande ajuda é prestada por sectores de opinião no MpD que acreditam ter visto nas eleições autárquicas a confirmação de uma forma de fazer política, baseada em denúncias permanentes, acusações de corrupção e discursos populistas.

O problema é que o MpD não pode ver-se, nem deve ser visto, como um partido de contra poder ou de protesto. É um partido da área de governação e como tal o seu caminho só pode ser o de se credibilizar como alternativa de Poder no País. A actuação do seu Grupo Parlamentar é central nesse processo. A fiscalização sistemática do Governo e das suas políticas é uma das suas funções principais. Assim como é a apresentação de propostas alternativas de governação em projectos de lei, em debates com o Governo e em outras formas do exercício do contraditório.

A existência de centros activos de poder ou de interesses, que não só não têm expressão no grupo parlamentar mas alimentam hostilidade difusa contra deputados, do tipo base vs. elite, não ajudam a focalizar a actuação do MpD no plano nacional. Por outro lado, a acção do partido nas câmaras ganhas é insuficiente para projectar uma imagem de alternativa de governação. Particularmente, com o Governo sistematicamente usando o Estado e organizações de todo o tipo para cercear a actuação dos órgãos municipais.

No vazio e descontrolo, que tal situação cria, mais atenção e importância é atribuída ao presidente do partido. O problema é que a imagem que vem projectando de quem não ouve, não aprende, improvisa e curto circuita os órgãos do partido no processo de decisão não ajuda. Ajusta-se mais a imagem de “inimigo” que o PAICV cultiva para as suas necessidades de forjar unidade interna e de se mobilizar para as eleições seguintes.

A remodelação ministerial a seguir às eleições de Maio revelou o nível de esgotamento do Governo. Entrou em campo a quinta equipa de governantes na área económica, quando já a crise económica se anunciava e quando ficava claro, para todos, que janelas de oportunidade, abertas a partir de 2005, fechavam-se. Hoje, sabe-se que no turismo e no sector imobiliário nada será como antes. Assim como é cada vez mais evidente que a agenda de transformação do Governo falhou. Não fez crescer a País à taxa proposta de dois dígitos, não reduziu o desemprego e não soube diversificar a economia, nem alargar a base de exportações.  

 Na encruzilhada em que o Cabo Verde se depara, sentindo os efeitos da ressaca de oportunidades perdidas e encarando uma crise mundial que ninguém sabe a profundidade, escopo e duração, é de se exigir mais da sua classe política. O PAICV ainda tem mais dois anos para governar. Não deve calar as vozes internas e submeter tudo ao objectivo de ganhar eleições, sem consideração pela necessidade urgente de encontrar formas criativas e inovadoras para enfrentar os problemas do país e os desafios extraordinários da conjuntura actual.

O MpD depois de ver reconfirmado a sua condição de grande partido nacional e de partido de alternância tem ainda a possibilidade de, na Convenção do próximo ano,   escolher um líder. Seleccionar um candidato a primeiro-ministro, capaz de enfrentar o  Cabo Verde, saído do que, já se pode considerar, uma década perdida. Perdida em oportunidades desperdiçadas a meio de conflitos de terreno, tensões institucionais e insegurança. Perdida na energia e água em lutas nacionalistas, desfasadas no tempo e no espaço. Perdida na Educação, não obstante as escolas e liceus construídos. Perdida na Formação Profissional apesar dos investimentos feitos. Perdida no desenvolvimento das potencialidades das tecnologias de informação e comunicação. Perdida na expansão do sector privado e da estrutura produtiva e exportadora do País.

Viveu-se simplesmente a ilusão do desenvolvimento.

Que 2009, com os seus difíceis e imprevisíveis desafios, traga a mensagem que já não é possível mais do mesmo. Que não vale mais “diabolizar” o outro para calar vozes internas e dissuadir a emergência do novo. Que política não é sinónimo de estar à procura permanente da bala mágica que irá derrubar o opositor.

Cabo Verde precisa de uma nova liderança. Uma liderança que insista em servir. Servir a liberdade, o interesse público, o desenvolvimento. Uma liderança que insista na constitucionalidade, legalidade e ética dos meios utilizados e rejeite o princípio de que os fins justificam os meios. Uma liderança moderna, com visão do futuro e capaz de fazer uma aposta, firme e determinada, no Conhecimento e na capacidade de prestar serviços, progressivamente mais sofisticados e de maior valor acrescentado. 

    Publicado pelo Jornal Asemana de 26 de Dezembro de 2008

quarta-feira, dezembro 10, 2008

Transformação por Fazer

O orçamento do Estado é, nas palavras do Sr. Primeiro-Ministro, um orçamento num contexto de crise internacional. Uma crise que, segundo o Governo, o País está preparado para enfrentar, porque soube criar espaço fiscal, aumentar as reservas externas e controlar a inflação. E, extraordinariamente, pôde fazer isso com o País a crescer abaixo do seu potencial e a aumentar, consideravelmente, as despesas do Estado. Com o País a manter a sua vulnerabilidade, face a fluxos externos (remessas dos emigrantes, empréstimos, ajuda orçamental, investimento directo estrangeiro), e, ao mesmo tempo,  incapaz de alargar significativamente as exportações e de diminuir o desemprego. È obra!

A realidade é que nem a fotografia macroeconómica, ostentada com orgulho pelo governo, é actual. Mudaram os pressupostos. Definitivamente não é veículo para o País ver o seu futuro próximo.

Os efeitos da quebra na dinâmica económica global já se fazem sentir.

O petróleo custa menos cem dólares do que seis meses atrás. Os preços dos cereais e de matérias-primas, até há pouco imparáveis na sua subida, caíram. A ameaça actual é, cada vez mais, a possibilidade de deflação, ou seja, da queda de preços paralisante da economia, quando recentemente a preocupação geral centrava-se na inflação, embebida na alta geral dos custos de energia, dos transportes e da alimentação. A Europa, a América e o Japão estão, hoje, em recessão. Projecta-se o crescimento da China para os níveis mais baixos de há algumas décadas. Mesmo países com reservas externas significativas vêem-se aflitos com a inevitável quebra da procura para as suas exportações e receiam êxodos de capital, derivados da baixa de expectativas na performance das economias emergentes.  

Só o Governo de Cabo Verde parece apanhado por um optimismo quase eufórico. Boa governação,nas palavras do Primeiro-Ministro, é petróleo e é capital estratégico. Credibilidade externa, é um diamante a ser polido e a se extrair riquezas. O PM acredita que há condições para virar a crise a favor de Cabo Verde.

Deve-se ter mente, porém, que a crise actual marca o fim de um período de exuberância financeira, de crédito fácil e de enormes fluxos de capitais cruzando o globo à procura de retornos fáceis, rápidos e lucrativos. E também de oportunidades que não se repetem. O Governador do Banco de Cabo Verde, em entrevista recente, foi claro a esse respeito: após a crise nada será como antes no sector do Turismo.

Crises são pontos de viragem e como tal propiciam momentos preciosos e únicos para o ajuizar da caminhada feita. Várias oportunidades, designadamente nos sectores do turismo e da imobiliária turística e residencial, abriram-se para Cabo Verde durante os anos de expansão financeira.

Será que as aproveitou como devia? Será que soube imprimir um sentido de urgência à exploração plena das oportunidades oferecidas e mobilizar a energia e vontade nacional, necessárias para pôr o País a crescer no nível certo e baixar, a sério, o desemprego? Ou, mais uma vez, alimentou a fantasia de se tratarem de oportunidades perenes, porque resultam das qualidades especiais do País e dos caboverdianos? E que a postura certa deve ser a de parasitar, de extrair rendas, sem preocupação se a oportunidade definha, morre ou desaparece?  

Só esta última atitude de rentista sem imaginação pode justificar que se fique tranquilo enquanto são visíveis e notórios os projectos parados em várias ilhas, durante anos, a meio de confrontos entre o Estado e as Câmaras Municipais; os conflitos de terrenos entre particulares, Estado e Câmaras a dificultarem o registo de propriedade e a criarem um ambiente de insegurança jurídica; a incapacidade do Estado em assegurar níveis de ordem e tranquilidade pública, particularmente nas ilhas de vocação turística; o descontrolo na gestão da imigração clandestina; a incerteza criada no sector de energia e água por falta de capacidade de investimento; a ausência de planeamento urbano e de saneamento básico nas ilhas turísticas; a não implementação de uma política de habitação de suporte às migrações internas; o descurar do transporte marítimo e a falta de estratégia na unificação do mercado interno.

Tudo isso, e mais, são exemplos de políticas e de medidas de políticas que não foram tomadas com o sentido de urgência e a determinação certa por quem sabe, ou devia saber, que janelas de oportunidades só se abrem por tempo limitado. Janelas que não se mantêm abertas à conveniência de quem pôde vir a aproveitá-las.

A imagem do surfista é o que, talvez, melhor adequasse ao caboverdiano. O surfista sabe que ele nunca cria ondas, que elas não são eternas e que todas vão morrer à praia. Também sabe que a sua única chance é identificar as ondas o mais cedo possível e cavalgá-las no máximo de habilidade para poder ir mais longe. Sabe, ainda, que, ao longo da jornada, deve poder passar de uma onda para outra para se manter sempre em movimento.

Mas, aparentemente, o caboverdiano não quer ser surfista. Prefere alimentar a fantasia de que pode criar ondas. E que elas são eternas. Por isso diz que Cabo Verde está na moda, quando, a meio do boom imobiliário, Cabo Verde, a par com as Maurícias, as Seychelles, e muitas outras ilhas nas Caraíbas, também recebe atenção de capitais a procura de aplicação. Espalha pelos cantos que é o melhor governo de Africa, confundindo deliberadamente governo com governance, ou governabilidade, para se beneficiar da notoriedade do tema, logo que foi adoptado pelo Banco Mundial, FMI e outras instituições multilaterais para suprir o reducionismo das estratégias de desenvolvimento, no chamado consenso de Washington. Proclama que goza de credibilidadeinsuperável juntos de parceiros internacionais, porque a União Europeia, procurando conter fluxos migratórios a partir da Africa e com preocupações de segurança na sequência dos atentados terroristas em Madrid e Londres, desenvolve cooperação estreita para proteger o seu flanco sul.

O problema não é aproveitar, ou não, mudanças de conjuntura, modismos nas instituições internacionais, muitas vezes de natureza ideológica, ou interesses renovados de outros países. O problema é se, com isso, o País deixa de ter a sua própria agenda, de definir o seu próprio timing e de manter o olho na bola, como se diz na gíria futebolística. De estar focalizado nos objectivos e metas a atingir.  

E a grande realidade é que Cabo Verde falhou. Falhou o crescimento a dois dígitos e falhou em fazer cair o desemprego para menos de 10%. Os objectivos estabelecidos pelo Governo do PAICV ficaram longe de serem realizados. O crescimento mantém-se a 6% e o desemprego a mais de 20%.

A celebrada agenda de transformação do Governo falhou. Não deu os frutos pretendidos. 

Em relação à reforma do Estado é o próprio Chefe do Governo que vê na “postura da Administração Pública, face à economia e ao sector privado, muitos obstáculos, muitas barreiras e a persistência de uma atitude negativa em relação às empresas privadas e à capacidade de geração de riquezas”. 

Em sectores económicos estratégicos como os de energia e de transporte aéreo, o PM apelida de cancros as empresas públicas chaves desses sectores, depois de terem estado oito anos sob a direcção do seu governo.

O mercado de trabalho não foi estruturado nem qualificado. Segundo o Governador do BCV, em entrevista ao “Expresso das Ilhas”, para se atingir o objectivo de crescimento e emprego preconizados pelo Governo ter-se-ia de “passar por reformas e pela modernização da nossa economia e do nosso mercado de trabalho, conferindo-a maior flexibilidade. Ter-se-ia de promover em larga escala a formação profissional, porque, já hoje, a economia procura mão-de-obra que não encontra, porque os recursos humanos não têm a formação profissional necessária”.
  
O impacto do investimento público nas infraestruturas na economia é limitado a vários níveis. Não diminui significativamente o desemprego, não ajuda a afirmação e consolidação das empresas nacionais de construção civil e pouco arrasta a economia local. Também as opções e prioridades dependem menos de uma visão estratégica de desenvolvimento do país e mais de interesses de natureza política partidária do Governo e de conveniências privadas das empresas nas parcerias. 

Em relação ao turismo, o sector que podia trazer alguma dinâmica à economia caboverdiana é o próprio Governador do BCV a reconhecer as deficiências: a falta de formação profissional, serviço de transportes deficitários, baixa qualidade dos serviços de alojamento, de hotelaria e de restauração. E acrescenta: “A própria atitude dos caboverdianos em relação ao turista deve mudar”.  

A transformação de Cabo Verde ficou por fazer. E de todas as transformações possíveis a principal é a da atitude do caboverdiano. Da forma como se identifica, como relaciona com o Estado, como se vê no esforço nacional para o desenvolvimento, como encara o ensino e o conhecimento e como lida com as oportunidades. Também, do que espera da sua direcção política: Se são prendas e favores ou se é trabalho e condições no País para prosperar, de forma sustentada e  na Liberdade.

        Publicado no Jornal ASemana de 12 de Dezembro de 2008

sexta-feira, novembro 28, 2008

Ganhadores?! A dedo

A odisseia do Governo pelo sector de energia e água teve um novo desenvolvimento com a publicação do decreto lei n. 36/2008 de 10 de Novembro. A partir de agora o Governo pode adjudicar a concessão de produção de água e energia por ajuste directo a entidades privadas, no quadro de parcerias público-privadas.

No preâmbulo do decreto-lei referido, o Governo justifica essa decisão: a urgência em abastecer as populações com água e energia não se compadece com a realização de concurso público para a escolha de parceiro estratégico. E, por ser urgente, a escolha é a a dedo, a ser feita pelo ministro de economia (artigo 3º nº 3). E para tornar a parceria apetecível, garante-se 30 anos de exclusividade (artigo 10º nº 4).

É este o desfecho encontrado para a saga da Electra: A constituição de monopólios privados na produção de água e energia sem qualquer responsabilidade no transporte e  distribuição às populações. Um desfecho previsível, quando durante quase cinco anos se faz uma gestão desastrosa da relação com um parceiro estratégico de envergadura mundial como a EDP. Também previsível quando, ao convidar o parceiro a sair, ele fica liberto da promessa de conseguir financiamento no valor de 250 milhões de dólares para, em quinze anos, investir em energia e água. Ainda previsível quando se deixa a Electra atolada em dívida, porque fica sozinha com a dívida dos 70 milhões de dólares dos investimentos iniciais nos geradores e dessalinizadores da Praia, S.Vicente e Sal,  e as tarifas são geridas politicamente, absorvendo a empresa o diferencial entre os seus custos e o preço de venda ao público.

O conflito ideológico que rodeou as privatizações em Cabo Verde sempre obscureceu as razões de fundo porque se devia abrir vastos sectores da economia à iniciativa e gestão privadas. Privatiza-se, para se libertar o Estado da necessidade, via orçamento, de cobrir as ineficiências e os custos excessivos das empresas públicas. Ao fazer isso controla-se o défice, melhora-se a qualidade das despesas e contem-se a inflação. Privatiza-se, para ganhar, em sectores chaves da economia, uma outra capacidade de financiamento quanto ao volume de capitais a mobilizar quanto á definição do timing, do momento certo de investimento. Privatiza-se, ainda, para que haja dinâmica e inovação na gestão e para uma menor submissão das decisões económicas a constrangimentos políticos partidários do Estado.

São todas essas razões que foram atiradas ao ar quando o Governo deixou argumentos de campanha eleitoral persistir no seu discurso e permear as suas decisões. O que o Sr. Primeiro-Ministro há dias chamou de cancros, a Electra e a TACV, são exemplos paradigmáticos do que foi permitido acontecer. A Electra foi o palco da luta pelo resgate da terra supostamente vendida. A TACV sofreu com incursões de gestão que procuraram provar que privatizar era desnecessário. O Estado tem pago em milhões de contos os resultados dessas folias. Os indivíduos e a sociedade perderam em confiança, oportunidades e qualidade de vida.   

Privatizações implicam o reforço do papel regulador e fiscalizador do Estado. E o  reforço da função central do Estado na defesa do interesse público, em termos, designadamente, de previsibilidade, qualidade e preço de produtos. Garantir um ambiente de concorrência é, portanto, fundamental. E tal ambiente cria-se com a regulação e a fiscalização necessárias ao desenvolvimento de mercados, à inovação de processos e produtos, à melhoria da qualidade e à prática de preços justos. A existência de monopólios públicos ou, pior ainda, de monopólios privados é o que se deve evitar.

Monopólios naturais existem, a rede eléctrica é um deles, e recaem normalmente sobre bens de domínio público. São normalmente objectos ou de gestão directa do Estado ou de concessão. No caso de concessão, é por tempo limitado e envolvem investimentos programados, condições de prestação de serviço público estabelecidas, tarifas determinadas em concertação com autoridades reguladoras e devolução dos bens ao Estado no fim da concessão.

Na privatização da Electra foi liberalizada a produção de energia e água e foi assinado, em 2002, um contrato de concessão da rede pública. Com a perda do parceiro estratégico e a, de facto, nacionalização da empresa, o Governo rapidamente mostrou-se incapaz de equacionar e resolver os problemas de energia. Nos discursos e entrevistas de membros do Governo sobre o sector era evidente o desnorte. Todos os dias surgiam novas soluções: produtores independentes, incineradora da Praia a produzir energia, energias renováveis, aproveitamento de gradiente térmico oceânico, energia das ondas do mar. Chegou-se mesmo a falar na energia nuclear.

A realidade é o que já se sabia à partida. Dificilmente o Estado consegue financiamentos vultuosos, e no tempo certo, para fazer os investimentos estratégicos que se impõem. Na falta de capacidade de investimento e pressionado por razões políticas, o Governo opta por entregar ilhas ou municípios inteiros a privados. Como parece acontecer com a Boavista.  E, segundo o referido decreto-lei, como já está decidido para os municípios de Santa Catarina, São Lourenço dos Órgãos, São Miguel e São Salvador do Mundo.

Pergunta-se, quais são os ganhos para o País, para os consumidores, e para os operadores e investidores. No contexto de baixa de expectativas ou mesmo de resignação que vinha se verificando com a progressiva implosão da Electra qualquer coisa parece ser um ganho. A realidade é, porém, muito diferente. E os custos serão enormes, para todos.    

Á vista desarmada pode-se notar que, primeiro, ao entregar mercados potencialmente ricos e em expansão como o da Boavista e do Sal a produtores privados e deixar a Electra a operar nas outras ilhas só se precipita ainda mais o seu colapso. O bife de lombo é entregue a um enquanto outros ficam com o osso para roer. Segundo, com os produtores privados não se vê qualquer alteração vantajosa no preço da água e energia. Cobram os preços da Electra. Preços que já incluem as ineficiências e a estrutura pesada de uma empresa que tem presença em todas as ilhas e em quase todos os pontos do território nacional. Ou seja, os consumidores nas ilhas não ganham directamente com tarifas mais baixas, nem se melhora, com menores custos de factores como energia e água, a competividade da ilha, na atracção de investidores. Mas os lucros dos produtores, esses, devem ser fabulosos. Não têm os custos da Electra.

Por último, ao decidir pela concessão da produção com exclusividade de 30 anos, segundo o decreto-lei 36/2008, o Governo deixou para o Estado e para os municípios a responsabilidade de construção, manutenção e expansão das redes públicas. Ficou com a parte mais custosa. Normalmente garante-se, por algum tempo, exclusivo de fornecimento ou especial facilidade de acesso em troca de gestão e desenvolvimento de um bem de domínio público. Dar exclusividade nestas circunstâncias, sem correspondente responsabilidade em assegurar todos os meios de prestação do serviço público, configura o estabelecimento do pior dos monopólios privados. Monopólios que, como todos os outros, vão estar em posição de extrair rendas, com prejuízos para os consumidores e para economia em geral.

O Governo parece estar a engajar-se num processo de “pick the winners” de “escolha dos ganhadores” que noutras paragens conduziram ao nepotismo, ao clientelismo e à corrupção. Foi descuidado com a gestão dos terrenos e, outra vez, para obter ganhos políticos instantâneos e contornar erros graves de governação, trilha caminhos duvidosos. Até se envereda por oferecer subsídios, sem concurso público, a empresas de transporte marítimo que só prevêem operar em Janeiro de 2010 (Resolução nº38/2008 de 17 de Novembro).

A  percepção da fragilidade da estrutura produtiva e da dependência excessiva de fluxos exteriores, mais evidentes hoje no contexto de crise generalizada, devia tornar o Governo e outros sujeitos políticos menos ideológicos e mais pragmáticos. Devia constituir um lembrete permanente aos governantes, mas também á toda a classe política, que não se pode dirigir o País com preocupações eleitorais permanentes. E devia afastar qualquer tentação de, à partida e sem transparência, escolher ganhadores no processo de crescimento da economia nacional. 

      Publicado no jornal ASemana de 28 de Novembro de 2008