segunda-feira, maio 10, 2010

“Espectáculo” duvidoso em S. Vicente

A polícia judiciária procedeu a uma busca nalguns gabinetes e serviços da Câmara Municipal de S.Vicente no dia 27 de Abril. A PJ considerou necessária montar um cerco ao edifício da câmara e congelar durante mais de quatro horas o funcionamento dos serviços. Funcionários e utentes apanhados no local a tratar dos seus assuntos foram bloqueados à saída. Munícipes necessitados dos serviços da edilidade foram impedidos de entrar.

A intervenção policial em S.Vicente causou estranheza e perplexidade na ilha e no resto do País. A operação levantou sérios problemas quanto ao respeito pelo princípio da proporcionalidade na utilização da força policial.

Muitos questionam se, para os fins pretendidos com a busca, foi adequado desencadeá-la quando simples utentes presumivelmente sem qualquer relação com a matéria em investigação encontravam-se no edifício. E que, por isso, viram os seus direitos restringidos pelas autoridades policiais, confinados que foram ao espaço da Câmara sem capacidade de livre movimentação.

Também se questiona se era indispensável que a investigação fosse feita no horário normal de funcionamento dos serviços da câmara municipal. Se o objectivo das buscas era a captura de indícios ou factos no fluxo de dados ou na interacção dos serviços com os municípes durante o expediente diário. Porque só assim se pode explicar que, funcionando os serviços em horários único, não se fizesse a busca depois do expediente ou antes, notificando no momento e local certo e de forma coordenada os visados pelos mandatos de busca e poupando os outros funcionários, os eventuais utentes e a imagem da instituição.

Ainda se questiona se o aparatus e a disposição das forças policiais na definição de um perímetro de segurança à volta do edifício da Câmara Municipal contando, segundo alguns relatos, com suporte em standby de elementos da polícia militar, se justificava. Se era proporcional com a possibilidade de resistência que razoavelmente podia-se antecipar. Não parece que haja registos de sinais por parte dos visados nas investigações que podiam oferecer resistência de qualquer espécie. Pelo contrário declarações públicas proferidas em várias ocasiões por titulares dos órgãos municipais de S.Vicente convidavam a posturas mais proactivas das autoridades na investigação. Precisamente para que o mais rápido possível se chegasse ao completo esclarecimento de acusações feitas e consequente despolitização do processo.

Segundo órgãos de comunicação social no local, finda a busca, a polícia judiciária acabou por sair do edifício da Câmara Municipal com vários documentos e um computador. Para trás ficaram o stress e inconveniências provocados em funcionários e cidadãos durante as horas de confinamento. E também a forte beliscada na imagem da instituição Câmara Municipal de S. Vicente. Os tumultos populares, aparentemente considerados na montagem da operação e contra aos quais as forças da ordem se prepararam e se equiparam até o pormenor do colete à prova de balas, não aconteceram. Mas uma sensação de desnorte e descrédito parecia invadir todos os que presenciaram a cena e puderam constatar a forma ligeira, desrespeitosa e intimidatória como foi tratada uma instituição venerável de S.Vicente que é a sua câmara municipal. E para quê?

Não se cumpriram todos os mandatos de busca. A presidente da câmara municipal, quem oficialmente responde em juízo pelo órgão, esteve ausente. Mesmo objecto do mandato judicial não foi requerida a sua presença nem se procedeu à busca do seu gabinete. Para um observador de fora isso parece estranho e naturalmente que convida a interrogar que outros factores, que não os de eficácia, pesaram nas decisões tomadas, tanto na escolha do momento como em limitar o escopo da operação. Complica ainda mais as coisas o ataque, coincidente com a operação policial, deferido contra a câmara por elementos da estrutura local do partido que suporta o Governo, a questionar a legitimidade do presidente substituto da câmara municipal. Os mesmos que têm sido protagonistas das denúncias a conta-gotas, numa clara manobra de instrumentalização da Justiça e de incriminação e julgamento de pessoas e instituições, através da comunicação social.

A fonte na PJ citada pelo Jornal Asemana de 30/4/2010 deixou claro a multiplicidade de intenções que rodearam a acção policial: “ A operação foi espectacular, um sucesso. Mais tarde veremos os resultados. O mais importante em tudo isso foi mostrar que a PJ e o Ministério Público estão atentos a qualquer situação de criminalidade e têm total autonomia para investigar os processos que têm em seu poder. Que se saiba não houve desmentido da PJ em relação a essas declarações. Supõe-se, então, que o móbil da operação foi fundamentalmente espectáculo, para mostrar autonomia. Os resultados vêm em segundo lugar. O problema que não se dá “show” de autonomia perante câmaras municipais, com as quais não há qualquer relação orgânica ou tutelar. Menos ainda com uma câmara da oposição sujeita à pressão do governo e a uma longa e perversa guerrilha dos responsáveis locais do partido que suporta o Governo. Muito pelo contrário.

Ninguém põe em causa que se faça investigação criminal e que se procure ser o mais eficaz. Mas às forças da lei exige-se que não se poupem em esforços para conduzir todo o processo com respeito pelos direitos das pessoas e a agir tendo sempre presente o princípio da proporcionalidade.

Na democracia o Estado detém o monopólio de violência e deve ser o garante do exercício pleno das liberdades e da segurança dos cidadãos. O Estado realiza-se no papel de garante da Liberdade e da Segurança posicionando as forças da ordem na primeira linha de defesa dos direitos dos cidadãos e da legalidade. Para isso mostra-se fundamental que crie e mantenha mecanismos institucionais múltiplos no interior e no exterior das forças de segurança para controlar abusos e manter as forças imunes à corrupção e impermeáveis a tentações de instrumentalização política.

O desafio que o assumir pleno desses papéis coloca ao Estado, no momento em que emergem novas e mais complexas ameaças, tende a passar de lado em Cabo Verde. Perde-se em grande parte na avalanche de argumentos políticos que são esgrimidos pelas diferentes forças políticas sempre que a temática da segurança é trazida à ribalta. O Governo defende-se de qualquer criticismo em direcção às práticas das forças de segurança acusando os críticos de atacar essas forças. E vai mais longe com insinuações mais ou menos veladas de que a oposição, com as suas chamadas de atenção, coloca-se na posição de incentivo, conluio e associação a actividades criminosas.

Uma barreira levanta-se entre a população que exprime o sentimento de insegurança e o Estado que lhe dá em troca dados estatístico a provar que está enganada. “É só impressão” dizem as autoridades. Pessoas queixam-se de abusos da polícia, humilhações e mesmo de agressões nas esquadras e o Governo não responde, não comunica com a sociedade. Não diz se a polícia abriu um inquérito interno. Se a Tutela mandou sindicar a situação. Quais foram os resultados. Se houve processo disciplinar e/ou processo criminal. Se foi criado algum órgão para rever os procedimentos policiais com o fito de evitar essas situações. Se nos currículos na escola de formação da polícia está-se a pôr maior ênfase na capacitação para uma relação de confiança com a população.

O governo, ao não agir para pôr a Polícia a salvo de tentações de abuso de poder com meios institucionais adequados, falha na protecção da instituição policial, falha no incentivo a uma melhoria permanente dos métodos da instituição e falha em criar o ambiente indispensável de confiança entre a população e a polícia. Tudo isso tem custos. A polícia exige mais meios para compensar a falta de colaboração da população. A eficiência no uso dos meios diminui porque, devido à falta de feedback e de pressão institucional, não se revêem os procedimentos na acção policial para os adaptar às novas situações. A sociedade fica mais violenta porque as pessoas não confiam na polícia e agem por conta própria e a polícia é obrigada mais vezes a recorrer a violência para se impor e compensar a sua menor capacidade de dissuasão e de persuasão.

O abalar das instituições do Estado e também da sociedade civil tem um efeito corrosivo na sociedade. Os indivíduos ficam mais soltos, potencialmente mais violentos e menos propensos a aceitar pressões de grupo ou da comunidade para evitar incivilidades e comportamentos anti-sociais. Quando se organiza Fórum para reflectir sobre a violência, um ponto importante devia ser avaliar em que medida certas políticas e acções das autoridades concorrem para abalar o tecido social e dissolver os laços que ligam os indivíduos às suas comunidades.

A humilhação a que foi sujeita a Câmara Municipal de S. Vicente claramente não serviu o interesse da comunidade nacional de elevar o respeito pelas instituições públicas. Serviu outros interesses que não os de uma investigação criminal que se quer sempre eficaz, discreta e conclusiva. Serviu interesses de espectáculo e de demonstrações “macho” para outrem. Foi aproveitado para mais uma machada política no quadro de uma guerrilha que vem de longe. Fragilizou as instituições envolvidas.

Espera-se que a Justiça seja feita para que a dignidade das instituições públicas seja reposta.

segunda-feira, maio 03, 2010

Auto-Censura Reforçada

Sucessivos relatórios da Freedom House e de outras organizações similares destacam a auto-censura como um factor impeditivo da liberdade de imprensa em Cabo Verde. Jornalistas e órgãos de comunicação social rotineiramente abstêm-se de perseguir com afinco notícias ou de confrontar as fontes. Na generalidade dos casos limitam-se a repetir informações oficiais. A contextualização das notícias é mínima e raramente se evoca a memória de factos e de pronunciamentos passados para responsabilizar actores políticos e elucidar a opinião pública.

Ainda não se estabeleceu de forma inequívoca a ideia de que, na democracia, a comunicação social serve o público, garantindo o pluralismo e assumindo-se como veículo essencial para o exercício da liberdade de expressão e de informação. E que nessa qualidade dá conteúdo à liberdade de imprensa enquanto liberdade-resistência contra os poderes públicos e afirma-se como garante da livre formação da opinião pública.

A tendência prevalecente é para se deixar enredar nos interesses políticos de partidos ou de certos sectores e personalidades no interior dos partidos. Particularmente preocupante é a postura da comunicação social pública, com destaque para a televisão. É onde se concentra o esforço de manipulação da opinião. O resultado vê-se no nível persistentemente baixo da comunicação social caboverdiana, não obstante os vinte anos de vivência democrática e o nível educacional de entrada na profissão cada vez mais elevado dos jornalistas.

A auto-censura que a malha de interesses gera não permite que os órgãos de comunicação, em especial os públicos, sejam learning organizations para os seus profissionais: Que se revelem e se realizam como espaços de maturação e consolidação de experiências, como depositários da memória colectiva e como portadores de uma ética e de um ethos próprio que prima pela busca da verdade e encontra satisfação na emergência de uma opinião pública informada. Pelo contrário, nota-se que se tornam em espaços onde se verificam, amiúde, desperdício de talentos, quebra de motivação para fazer melhor e oportunismo de alguns.

É esse ambiente de auto-censura que o Governo quer perpetuar e aprofundar com as novas leis de comunicação social. Nesse sentido propõe-se agir em três vertentes:

1-Condicionar a comunicação social transformando-a em parceira de desenvolvimento.

O Governo justifica-se com a necessidade de uma parceria com os media para colmatar uma suposta insuficiência de formação dos cidadãos. Parece que o pluralismo e a livre expressão de ideias e de correntes de opinião na democracia não propiciam boa cidadania. Por isso, acredita que o Estado deve intervir para dar formação e, nesse sentido, disponibiliza-se para subsidiar, premiar e dar benefícios fiscais a jornalistas e órgãos de comunicação social que melhor se mostram como parceiros na promoção de políticas de desenvolvimento e na censura de más práticas. .

O problema é que políticas económicas e critérios de censura, obviamente, só podem ser os conforme às opções políticas, ideológicas e estéticas governamentais. E quando tais opções entram pela porta o pluralismo e a liberdade da imprensa saem pela janela fora. Finge-se desconhecer que se está, mais uma vez, perante exercícios em engenharia social do tipo “construção do homem novo”. Engenharias que, no passado recente, oprimiram pessoas e serviram para atomizar a sociedade, destruir valores e tradições e substituir consciência cívica e sentido de pertença à comunidade por militância e aderência a organizações de massas. Quando hoje se sai á procura de razões para os problemas sociais que afectam transversalmente a sociedade, e particularmente os jovens, devia-se começar pelas mazelas deixadas pelos quinze anos de totalitarismo.

2- Minar o pluralismo com concessão do serviço público de radiodifusão e de televisão a empresas privadas e abertura do capital dos órgãos públicos de comunicação social a privados.

O Governo abre possibilidades na contratação do serviço público de comunicação social no pacote de leis referido que colidem com os princípios constitucionais no que respeita à existência de um sector público e de um serviço público de comunicação social. A posição dos proeminentes constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreia nessa matéria é inequívoca: A existência e o funcionamento de um serviço público de rádio e televisão constitui garantia institucional de um sector público da comunicação social , o qual não poderá ser aniquilado ou abolido”. Isso porque, segundo eles, “o regime constitucional do serviço público de rádio e televisão significa: (1-) sob o ponto de vista jurídico, é um serviço prestado por uma entidade pública (não privada ou cooperativa); (2) esta entidade pública deve ter um esquema organizatório caracterizado pela autonomia e independência perante o Governo e a Administração; (3) a programação deve considerar ou ter em conta o espectro global das opiniões e interesses políticos, culturais, sociais, religiosos e económicos.

O Governo quer justificar contratos de concessão de serviço público a órgãos de comunicação social privados como forma de os facilitar acesso a financiamento do Estado. Põe de lado quaisquer dúvidas quanto á possibilidade real de órgãos, controlados por interesses bem identificados, prestar serviço público de radiodifusão e televisão, nos termos exigidos pela Constituição, no tocante designadamente, à garantia do pluralismo e à independência dos jornalistas em relação aos poderes político, económico e da Administração.

O que parece mover o governo é a vontade de alargar o seu campo de influência na comunicação social. Por isso acena órgãos privados com a possibilidade de financiamento público. Curiosamente não diz o que iria acontecer com os órgãos do sector público quando livres dos constrangimento derivados da prestação do serviço público da comunicação. Se seriam privatizados ou se seriam transformados em puros instrumentos de propaganda.

3- Condicionar jornalistas e os media com responsabilidades acrescidas.

O Governo, na apresentação das leis de comunicação social deixou evidente a sua extrema preocupação do governo com os novos meios de comunicação com base na Internet. O Governo predispõe-se a legislar de forma musculada na procura de responsáveis e de “culpados por usos discutíveis da Internet. Aproveita-se da ainda novidade da Internet para empolar as suas consequência juntos dos menos avisados e para se justificar na repressão. Quer que se esqueça que abusos de formas novas de comunicação aconteceram sempre e que em todos os casos os receios acabaram por revelar-se exagerados. Foi o caso com telefones, faxes , Internet, e-mail e, agora, a atenção vira-se para os espaços sociais como Myspace, Hi5, Facebook, etc. Mas de facto não razões para paranóia.

Muito menos há razões para se usar o repúdio por certos actos execráveis na Net para se atirar fora o “proverbial bebé juntamente com a água suja do banho”. Ou seja que se use o pretexto do mau uso para intimidar o sector de comunicação e aprofundar a auto-censura. Os meios electrónicos e do ciberespaço dão uma outra dimensão ao direito de informar, de ser informado e de acesso à informação. Para os governos excessivamente sensíveis com o controlo da comunicação, porque vêem a governação como fundamentalmente acções de relações públicas e propaganda, as facilidades da Internet constituem um desafio sério. Cai-se facilmente na tentação de controlo.

Não podendo impedir o aparecimento de jornais online vai-se, por um lado, pelo condicionalmente do órgão e do jornalista. Densifica-se o direito de resposta e de rectificação por vias que limitam o exercício de direitos, designadamente da liberdade de expressão. Envereda-se mesmo por um direito de esclarecimento, que a Constituição, em nenhum artigo, estabelece. Por outro lado, constrange-se a entrada na profissão de jornalista com a exigência de licenciatura em comunicação social e alarga-se a definição da actividade jornalística para campos sem paralelo noutros estatutos dos jornalistas, designadamente o português.

Sofrem os media sem uma diversidade maior de formação básica e de vivência dos jornalistas. Restringe-se a capacidade de muitos não jornalistas de exercerem o seu direito de informar com crónicas, análises e comentários. Torna-se mpossível a emergência de uma opinião pública informada com a dieta de informação e de opinião a ser produzida por uma comunicação social apanhada nas malhas da dependência do Estado, tolhida com receios excessivos de responsabilização criminal e forçada a ter jornalistas todos formados nas mesmas escolas.

A preocupação do Governo com a comunicação social é por demais evidente. Ouvindo a rádio e vendo televisão todos os dias fica-se com a clara impressão que a actividade do Governo domina completamente as notícias. Os membros do Governo desdobram-se em aparições por todo Cabo Verde repetindo em inaugurações, lançamentos de primeiras pedras, fora, workshops e visitas, declarações feitas noutros dias, semanas e mesmo meses anteriores. E, todas as vezes, o que dizem constitui notícia nos órgãos estatais de comunicação.

È evidente que com tal prática não se está a assegurar a expressão e o confronto de ideias das diversas correntes de opinião dentro dos parâmetros exigíveis pelo pluralismo democrático. Mas o Governo parece perfeitamente confortável com isso. Mais, a intenção é claramente de usar a sua posição para manter uma posição hegemónica na comunicação social. Por isso é que se recorre de fundos públicos no valor de mais de 30 milhões de escudos para, supostamente, fazer divulgação do trabalho governamental.

Apresentar as leis de comunicação social antes da entrada em vigor da Constituição revista faz parte desse esforço de controlo. A revisão de Fevereiro criou uma Autoridade Independente constituída por personalidades eleitas pelo Parlamento por maioria de dois terços para gerir e regular tudo o que respeita à comunicação social e, em particular, o sector público e a prestação do serviço público. A pressa do governo em legislar visa claramente esvaziar e constranger esse órgão constitucional á nascença. E não será provavelmente alheio a isso o atraso incompreensível na publicação do novo texto da Constituição, promulgada a 6 de Abril pelo Presidente da República.

Da forma como o Governo age em relação à comunicação social em Cabo Verde fica claro que há uma vontade de controlo e de manipulação. Que a auto-censura, constatada pela Freedom House é o resultado da pressão constante sobre os órgãos e os profissionais. E que os media estão longe da atitude de watchdogs ou de contra poder esperada nas democracias. Revelador do que realmente se passa é o facto do Governo encenar a defesa dos jornalistas e os atiçar contra a oposição sempre que há críticas sobre o grau de pluralismo e o excesso de protagonismo do Estado na comunicação social. É esse estado de coisas que se impõe mudar com a criação da Autoridade Reguladora. Para que o pluralismo e a liberdade de imprensa floresçam em Cabo Verde. (artigo publicado no jornal Asemana de 30/4/2010)

domingo, março 28, 2010

Deriva pré-Eleitoral

O Governos nas últimas semanas parece ter sido acometido de um frenesim para legislar. Leis e propostas de leis sobre matérias sensíveis, como situação de imigrantes, comunicação social, criação de novas categorias de autarquias, aquisição de nacionalidade e assuntos laborais, foram produzidas, sem a ponderação que deviam merecer. A um ano das eleições a agenda do Governo já assumiu um pendor marcadamente eleitoral. A reunião, no último fim de semana, dia 20-21de Março, do órgão máximo do partido que suporta o Governo, o PAICV, definiu como prioridade as eleições legislativas. Foi reforçada a deriva eleitoral do governo. Deriva cada vez mais notória desde que o Governo deixou de poder fingir que seria, ainda, capaz de cumprir as promessas da legislatura, em matéria de crescimento económico e de emprego. Há muito que se mostrou urgente a definição de uma política de imigração. O acordo de livre circulação com os países da CEDEAO sujeitou Cabo Verde à pressão de uma região com mais de 300 milhões de habitantes e um rendimento por habitantes várias inferior. Diferentemente dos imigrantes noutros países em rápido crescimento, designadamente os países europeus nas décadas de cinquenta e sessenta, a população imigrante em Cabo Verde não foi chamada, muito menos seleccionada, para responder às necessidades do País. Simplesmente fluiu sem resistência em direcção às ilhas, elas próprias a debaterem-se com médias de desemprego de mais de 20% da população. O Governo não sabe qual é a situação nem o número exacto dos imigrantes. Em declarações de 5 de Março deste ano, a Porta Voz do Conselho de Ministros punha esse número entre 10000 a 15000. No Plano de Segurança Interna do Governo (pgs. 50 e 51) diz-se que (…) “Em 2006, estavam em Cabo Verde 15000 a 20000 imigrantes dos quais só 1800 eram residentes legais”. Mas há quem fale em números superiores a esses. O facto é que ninguém parece saber. E, muito menos, avaliar as consequências, quando se reconhece, citando o documento referido, que “A esmagadora maioria destes imigrantes em Cabo Verde são homens entre os 17 e os 40 anos de idade, sem qualificação profissional e professam a religião islâmica”. Pensando na integração desses imigrantes, o Governo deve-se atentar ao facto, segundo o Plano de Segurança Interna (pg. 51) de que, (…) muitos já reúnem o seu núcleo familiar em Cabo Verde e os seus filhos não integrarão o sistema público de ensino. Há indícios de madraças [madrassas]em alguns bairros da capital deles (…). Ou seja, há indícios de escolas corânicas, escolas conhecidas em vários países como sendo objectos de financiamento pelo fundamentalismo islâmico wahhabista da Arábia Saudita. Sem estudos prévios e sem política de imigração definida, o Governo avança com processos expeditos de regularização de guineenses. Fica-se sem saber qual o impacto demográfico global no país, o impacto por ilha e, em particular, o impacto nas ilhas de população diminuta. E, especialmente, quais as consequências eleitorais. Os números 3 e 2 respectivamente dos artigos 418º e 419º do Código Eleitoral faz dos cidadãos lusófonos, legalmente estabelecidos, eleitores de titulares dos órgãos electivos dos municípios e elegíveis para esses mesmos órgãos, nas mesmas condições que os cidadãos nacionais. Muitas vezes em Cabo Verde não se põe em devida perspectiva a realidade demográfica de um país com 500.000 pessoas espalhadas por dez ilhas, algumas delas esparsamente habitadas. Raciocina-se como se de um país grande e continental se tratasse. Recorre-se a supostos “complexos de culpa”, derivados do facto dos caboverdianos terem sido imigrantes em vários países, para justificar inacção. Esquece-se que, exceptuando S.Tomé, os caboverdianos sempre foram uma pequeníssima minoria nos países de acolhimento de milhões de habitantes. A presença percentual mínima dos caboverdianos nunca foi problema na dimensão que milhares de imigrantes podem constituir em ilhas como Boavista, Sal Maio e Brava. São realidades incomparáveis. A exemplo das Maldivas, Seychelles, Maurícias e outros países/ilhas, há que ter políticas de imigração cuidadas. Rigor maior devia merecer o processo de aquisição da nacionalidade. Significativamente é nessa matéria que o Governo, com uma proposta de lei ao parlamento, pretende criar facilidades. Facilidade a quem tenha nascido no estrangeiro e pode adquirir a nacionalidade, porque presumivelmente descendente de caboverdianos, mas que ainda não provou, ou não se deu ao trabalho de seguir os procedimentos exigidos, incluindo inscrição nos serviços centrais de identificação civil. Facilidade, ainda, a estrangeiros casados e mesmo em união de facto reconhecível. Neste ponto o Governo parece ignorar o que o seu Plano de Segurança Interna constata: (…)“Notícias da imprensa escrita, em 2008, davam conta da conversão, em média, de um caboverdiano/dia à religião muçulmana, especialmente mulheres, que a troco de dinheiro casavam com imigrantes, permitindolhes, pela via da naturalização, adquirir a nacionalidade caboverdiana”.

E tudo para quê? Segundo o preâmbulo da proposta de lei, é para efeitos de recenseamento eleitoral e para uma participação mais abrangente nos actos eleitorais. O Governo prefere que se relaxe no rigor, a exigir na aquisição da nacionalidade caboverdiana, quando podia se concentrar em tornar a Administração Pública mais eficaz na resposta aos que, de forma declarada e activa, querem ser nacionais. Chega ao ponto de propor um aditamento á lei de nacionalidade, artigo 34º-A, em que “atribui nacionalidade a todos inscritos no Consulado ou posto consular, salvo declaração em contrário da pessoa”. Claro que a pergunta óbvia que se põe é como conseguiram fazer inscrição consular sem bilhete de identidade ou passaporte, ou seja sem nacionalidade caboverdiana. A deriva do Governo continua por outros campos. Na tarde da sexta-feira passada, dia 18 de Março, os deputados foram confrontados com um novo texto da proposta de lei de descentralização administrativa. O Governo tinha resolvido criar autarquias supramuncipais, as regiões administrativas, e autarquias inframunicipais, as freguesias. No discurso do PAICV vinha-se testando a ideia de regiões como fuga em frente para esvaziar movimentos para regionalização provocados pela aceleração da centralização do País nos últimos anos. Mas parece que, de repente, fez-se luz. A precipitação surgiu, pelo que se pode deduzir do relato no portal do governo, das idas recentes do Sr. Primeiro Ministro aos bairros da Praia. Nos encontros teria constatado a falta de autoridade inframuncipal. Logo de seguida, na quinta-feira, o Conselho de Ministros aprovou a criação de freguesias e, provavelmente, aproveitou para, em simultâneo, criar regiões administrativas, apanhando todos de surpresa. E a surpresa para ser mais completa teria que ir na lei de descentralização, que já estava agendada para discussão no parlamento, em vez de se fazer uma lei própria como estabelece o artigo 217 da Constituição:As autarquias locais são os municípios, podendo a lei estabelecer outras categorias autárquicas de grau superior ou inferior ao município. Uma outra lei que também surpreendeu foi a lei da comunicação social. O País está a poucos dias de ver publicado no B.O. o novo texto da Constituição da República, texto que resultou da revisão constitucional realizada em Fevereiro último. Uma das mudanças profundas na Constituição foi precisamente no domínio da Comunicação Social, com a criação de uma autoridade independente para a regulação do sector. Nesse órgão, eleito pela Assembleia Nacional, já não têm assento membros nomeados pelo Governo. A lei proposta ignora isso e faz tábua rasa do preceito constitucional que obriga a redesenhar todo o sector tendo no seu núcleo central essa autoridade com competência para garantir as liberdades de expressão, de informação e de imprensa, o pluralismo e a independência dos jornalistas e dos órgãos de comunicação, face aos poderes políticos, a interesses económicos e à Administração. A pressa do Governo poderá estar a revelar alguma apreensão quanto à instituição da autoridade reguladora. Com o Tribunal Constitucional foi a mesma coisa. O resultado é que dez anos passados esse Tribunal ainda não está instalado, mercê de bloqueios vários promovidos pelo Governo. Incluir na lei apresentada normas sobre o Conselho de Comunicação social, órgão criado em 1990 para dirimir conflitos no ambiente plural então emergente, para o promover a órgão regulador, indicia blocos no caminho da instalação da Autoridade Reguladora. Uma outra inovação é considerar a comunicação parceira e daí convidá-la, entre outras coisas, a incentivar e apoiar políticas económicas e a censurar más práticas. O Estado daria subsídios, benefícios fiscais e outros incentivos a quem melhor fizesse isso. Ou seja a instrumentalização pura e dura, precisamente no momento em que o Governo esforça-se por mostrar como boas a sua governação e quer denunciadas opiniões contrárias, caracterizadas como más práticas da comunicação social. Recentemente classificou como criações ou sensacionalismos dos jornalistas as revelações sobre a insegurança e a violência no País. O frenesim legislativo também chega ao mundo do trabalho. Ai, O Governo propõe alterar os tempos previstos para a transformação de contratos a prazo em contratos permanentes. Com isso compromete-se o quadro de previsibilidade de custos de trabalho, que a entrada em vigor da lei laboral em Outubro de 2007 dava aos operadores. Pelo caminho cria-se insegurança jurídica, mina-se a confiança e aumentam os custos do emprego/despedimento. Precisamente um dos índices que colocam Cabo Verde no grupo pior de países em matéria de ambiente de negócios, como ficou claro no Relatório do Doing Business 2010. Os benefícios políticos eleitoralistas esperados pelo Governo não compensam o que os desempregados irão pagar pela insegurança criada, pela maior rigidez do mercado de trabalho e pelo adiamento das decisões de contratação de mão de obra, devido aos custos acrescidos. Períodos eleitorais são bem definidos nas democracias. Os governos têm um mandato claro ao fim do qual o povo fica em posição de avaliar desempenho, considerar alternativas de governação e escolher quem legitimar para o mandato seguinte. Com isso tudo estabelecido, evita-se que o País esteja permanentemente polarizado e em disputas fracturantes. Também se evita que o Governo se sinta tentado a usar os recursos públicos, as instituições do Estado e sua autoridade para se perpetuar no Poder, retirando ao eleitorado a possibilidade real de escolha dos seus governantes. A responsabilidade de governar com lealdade, honestidade e verdade não autoriza a que se enverede pela via da campanha eleitoral ainda em tempo útil do mandato de governação. È uma via que leva necessariamente ao uso abusivo dos recursos e dos poderes públicos, à má governação e ao comprometimento do futuro. Ponderação, contenção e espírito de “fairness” é o que se exige nestes tempos em que as energias e os recursos do país devem ser mobilizados para fazer face a quaisquer contingências, presentes e futuras.

terça-feira, março 16, 2010

O Processo de Transição em Cabo Verde

Textos no jornal “Terra Nova” de1988, 1989 e 1990 que podem ajudar a ter o sentido dos tempos, então vividos, e que dão conta da dinâmica e das expectativas geradas, na sequência da abertura política de 19 de Fevereiro de 1990. São artigos da minha autoria, publicados sob os pseudónimos de Tácito Monteiro e Péricles Miranda.

1. III Congresso do PAICV: entre a realidade e o mito

jornal Terra Nova, Agosto/Setembro 1988

2. Quase quinze anos depois da independência: Ponto da Situação

Jornal Terra Nova, Dezembro de 1989

3. O que é preciso realmente para o relançamento do País?

Jornal Terra Nova, Fevereiro de 1990

4. Questionando os dogmas do chamado “quadro institucional”

Jornal Terra Nova, Março de 1990

5. Mais transparência PAICV – Mudança no interesse da Nação

Jornal Terra Nova, Abril de 1990


6. Não existe Polícia Política?

Jornal Terra Nova, Maio de 1990


7. IV Congresso do PAICV: Afinal Nada Mudou

Jornal Terra Nova, Agosto de 1990


8. Única hipótese a Bem de Cabo Verde e… do PAICV

Jornal Terra Nova, Novembro de 1990

S.Vicente - 20º Aniversário da Declaração Política do MpD

Discurso proferido na Academia Jotamonte 14/03/2010

Vinte anos atrás uma onda de liberdade e democracia corria mundo. Como um tsunami varria ditaduras e regimes totalitários encarnados por partidos únicos em todos os continentes. Milhões de pessoas saíam às ruas e regimes que pareciam sólidos e que pareciam ainda durar anos, e mesmo décadas, simplesmente desfaziam-se no ar.

Cabo Verde sentiu o espírito da onda. O desejo de liberdade dos caboverdianos ganhou um outro ímpeto. Quando o PAICV quis abrir uma fresta, para ver se escapava, o povo nas ilhas usou o seu “pé de cabra”, o Movimento para a Democracia, o MpD e escancarou a porta. O Sol da Liberdade e da Democracia iluminou as ilhas e as faces dos caboverdianos. Uma nova esperança renascia no coração de todos.

S. Vicente viveu com uma paixão muito especial esses meses de mudança. A cidade sempre se tinha ressentido da arrogância e prepotência dos auto proclamados “melhores filhos do povo”. Não foram esquecidas as humilhações diversas, infligidas ás pessoas com o sistema de comités de zona, milícias e tribunais populares. Nem os vexames que particularmente os emigrantes, muitas vezes, sofreram, quando, terminadas as férias, pediam autorização de saída do país. Na memória de todos nós ainda estavam bem vivos os episódios de barbarismo do regime, perpetrados em 1977 e 1981 nas cadeias do Morro Branco e de João Ribeiro. E também como, anos depois, em 1987, o regime agrediu gratuitamente estudantes do liceu em manifestações pacíficas pelas ruas de Mindelo.

SVicente, porém, nunca se deixou dobrar. Mesmo quando viu as suas oportunidades desaparecerem porque o Regime era contra a iniciativa privada nacional, contra o investimento externo e contra o turismo. O atraso imposto por esses quinze anos de políticas contrárias não impediu S.Vicente de manter o seu espírito crítico, criativo e inconformista.

Espírito esse que se mostra na tenacidade do sr. Padre Fidalgo em manter o Jornal Terra Nova como espaço livre e corajoso de crítica ao Partido único, não obstante as ameaças e os processos judiciais movidos contra ele. É de toda justiça prestar-lhe homenagem pela sua contribuição valiosa para o derrube do regime de partido único em Cabo Verde. O Jornal Terra Nova foi fundamental durante todo o ano 1990 para passar as mensagens de liberdade e denunciar as manobras do Paicv de procurar perpetuar-se no Poder.

S.Vicente encontrou-se com o MpD em Junho de 1990. Nas boas vindas na Praça Estrela e no comício do Éden Park ficou claro a sintonia entre o sentir do povo de SVicente e o MpD. Em particular, foi emocionante ver como, de imediato, S.Vicente estabeleceu uma relação muito especial com o Dr. Carlos Veiga. Para todos passou a ser o líder da luta pela liberdade e democracia.

Nos meses que se seguiram, o crescimento e a actuação do MpD em S Vicente, e a partir de S.Vicente, foi crucial para a vitória nas eleições do 13 de Janeiro de 1991. A influência de S.Vicente viu-se no impacto visual e nos efeitos de contágio dos comícios, manifestações e contactos directos com a população. Viu-se também na formulação do projecto político do MpD. O programa que o MpD acabou por adoptar no seu processo formal de fundação, na I Convenção de 2 de Novembro de 1990, tinha as marcas fortes do sentir de S.Vicente.

Ficou no Programa do MpD, por exemplo, a convicção, de quem, como S.Vicente, nascido no mundo globalizado do século XIX, acredita que prosperidade sustentável só é possível numa economia livre e aberta. Ficou a certeza de quem, como S.Vicente, tem sido vítima da falta de visão, da ganância do poder e da incompetência do Estado, sabe que é essencial descentralizar para ganhar agilidade no aproveitamento de oportunidades. Ficou a aposta no poder da educação e do conhecimento, feita com a segurança de quem, como S.Vicente, floresceu com os efeitos culturais e intelectuais do liceu de S.Vicente e com a presença activa de artistas, escritores e académicos, para lançar as novas gerações para um outro patamar de desenvolvimento. Ficou, ainda, a crença na importância crucial de garantir dinâmica económica em todas as ilhas para que Cabo Verde se mantenha unido e a beneficiar da sua diversidade sócio-cultural, de quem, como S.Vicente, sabe , de experiência vivida, o quanto deve à contribuição das outras ilhas no aprofundamento da caboverdianidade.

Hoje, no décimo ano do Governo do PAICV, S.Vicente debate-se como um dos maiores níveis de desemprego do País. Os jovens são particularmente afectados com desemprego a 46%. E porquê? A razão principal é porque temos um Governo que vai contra o que S.Vicente, instintivamente, sabe que deve ser o caminho certo. Um Governo que lida mal com a economia livre e aberta. Prefere controlar, criar dependência e fazer favores. É um Governo contra a descentralização. Faz braço de ferro com as câmaras, não se preocupando com consequências. Um Governo que não aposta na qualidade do ensino e deixa os jovens com diplomas, mas sem emprego. Um Governo que desequilibra o desenvolvimento do país em direcção à cidade da Praia, desperdiçando oportunidades de crescimento e criação de emprego nas ilhas e relegando ilhas e regiões do país à estagnação económica.

Vinte anos depois, é o momento certo para que S.Vicente renove a sua relação com o MpD. Porque o MpD é o partido que no seu projecto político incorpora os ensinamentos da história da ascensão e prosperidade desta ilha. É o partido que acredita ser possível desenvolver, na liberdade, sem criar dependências nas pessoas. É o partido que não se intimida com o espectro do chamado desemprego estrutural porque acredita que é possível vencer o desemprego. É o partido que assume sempre as suas responsabilidades porque nasceu para servir o povo caboverdiano, e por isso esforça-se por governar com humildade, honestidade e verdade, sem cair no cinismo e na hipocrisia.