Nas últimas semanas sucederam-se vários actos de celebração daquilo que o governo convencionou chamar de 40 anos da Administração Pública cabo-verdiana. Às conferências, cerimónias de imposição de medalhas certamente vão seguir outras homenagens dirigidas aos funcionários públicos dos diferentes sectores do Estado com direito a publicação no B.O. Na actual atmosfera pré-eleitoral é de se legitimamente perguntar se se trata realmente do reconhecimento do “alto nível” de serviço público prestado pelo conjunto da administração pública ou se trata de acções de sedução dos funcionários tendo em conta o considerável peso eleitoral que presumivelmente tem num país em que o Estado é quase tudo.
Reconhecimento inequívoco não parece ser. O Primeiro-ministro em várias intervenções vem insistindo na “necessidade de se combater o “partidarismo” e as desigualdades de tratamento nos serviços e repartições” e de se ter uma administração mais amiga das empresas, maisamiga dos cidadãos e mais amiga do desenvolvimento. Tais palavras proferidas por quem não está de fora e pelo contrário preside o governo que dirige a administração pública directa, superintende os institutos públicos e exerce tutela sobre as entidades administrativas autónomas, incluindo os municípios, não deixam margens para dúvida. De facto, dificilmente se compreende que o governo ainda esteja a apelar à despartidarização, àimpessoalização e à uma atitude mais virada para a produtividade e para o bem comum. A Constituição de 1992 obriga os servidores públicos a agir com especial respeito pelos princípios da justiça, da isenção, da imparcialidade e da igualdade de tratamento e da luta pelo interesse comum. Mais de vinte anos depois é de se perguntar o que andaram a fazer os sucessivos governos.
Desconcertante, por outro lado, é o PM que mesmo perante este quadro insiste em enaltecer os ganhos e a evolução positiva da administração pública nos últimos anos. O que se pode concluir é que não estaria a avaliar pelos critérios dos chamados 4E, eficiência, eficácia, equidade e efectividade. Das suas palavras anteriormente citadas pode-se depreender que a administração pública não está à altura desejada nem quanto aos princípios e valores, nem quanto à contribuição para o desenvolvimento considerando que é um dos factores para o mau ambiente de negócios em Cabo Verde. Mas se apesar disso consegue fazer avaliação positiva é porque outros critérios e valores estão a sobrepor-se: a partidarização estará a beneficiar alguém; a discriminação é instrumento de uns poucos e o bloqueio dos negócios deve interessar quem não se sente muito confortável com a existência de um sector privado forte e uma sociedade civil autónoma.
A verdade é que não é por falta de reparos, denúncias e críticas ao estado da administração pública que as coisas continuam na mesma, ano após ano. Os efeitos maléficos da partidarização, por exemplo, foram notados em 1988 num artigo de jornal escrito por Renato Cardoso, então Secretário de Estado da Administração Pública. Para ele era claro que a relação Partido/Estado estabelecida no pós-independência tinha transformada a administração pública no instrumento amorfo das suas orientações comconsequências desastrosas na sua eficácia. Hoje continua-se a falar em despartidarizar mas a partidarização dos cargos persiste apesar dos seus efeitos negativos serem sentidos diariamente. Para muitos observadores, o caso recente do braço de ferro que a TACV mantém com a agência reguladora quanto às tarifas aéreas enquanto o governo fica inactivo só é possível porque o PCA dessa empresa tem o peso político de quem pertence à nova comissão política do partido no governo. Casos do género cujos impasses não são ultrapassáveis por processos conhecidos e transparentes retiram autoridade ao Estado, fazem perder oportunidades ao país e diminuem a confiança de investidores e outros operadores económicos.
A história económica recente dá pistas quanto ao tipo de administração pública que os países escolhem ter. Se são como Singapura, Maurícias ou a actual Ruanda há uma preocupação em ter uma administração pública altamente competente, meritocrática e com uma cultura de serviço que a torna a grande facilitadora da actividade privada não só na atracção de capital externo como também no desenvolvimento de processos de produção voltadas para exportação. Se, pelo contrário, o país cai na tentação de fazer da captação da ajuda externa e da sua disponibilização no país o seu objectivo maior, os resultados são inversos. O Estado já não é mais facilitador, mas coloca-se no topo da cadeia de distribuição, cioso do seu poder, do seu status e a da sua influência. Não abdica facilmente do seu papel de captar fluxos externos diversos e de discricionariamente distribuir recursos, propiciar acessos e influenciar resultados no país.
Fazer ou não as reformas do Estado não é tanto uma questão de vontade, mas sim de opção. O que existe hoje em Cabo Verde resulta de um governo que, por exemplo, sempre tratou o programa de ajudas do MCA com entusiamo enquanto que com o programa AGOA que implica atrair capitais estrangeiros, produzir e exportar para mercados preferenciais nunca mereceu muita atenção dos governantes. É evidente que por mais discursos, proclamações ou promessas de mudar e passar a ser uma administração mais “amiga de negócios” isso não vai acontecer como até agora não aconteceu. Reformas só poderão ser feitas quando efectivamente o país adoptar uma outra postura quanto ao seu desenvolvimento. E mesmo assim não será fácil.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 2015