segunda-feira, agosto 30, 2021

Combater a insegurança

 

Já no segundo semestre de 2021 em todo o mundo as in­certezas em relação aos próxi­mos meses não diminuíram sig­nificativamente como esperado.

Em vários países da Europa e também nos Estados Unidos, Brasil, África do Sul, Indonésia e outros países asiáticos a varian­te Delta do vírus Sars2-coV-19 veio outra vez baralhar as cartas alterando completamente as ex­pectativas da retoma económi­ca e do regresso à normalidade previstos para o fim do Verão. A grande esperança deposita­da nas vacinas não se realizou por completo. Diminuíram as hospitalizações e as mortes por Covid-19, mas ficou mais difícil alcançar a imunidade de grupo. Em vez dos 70% de vacinados, fala-se agora em 85% ou até em mais de 90%. Complicando ain­da as coisas, já há quem assume que poderá ser necessário uma terceira dose da vacina para manter o sistema imunitário realmente efectivo contra as novas variantes do coronavírus.

Em Cabo Verde, a oferta de centenas de milhares de doses de vacinas no âmbito do projec­to Covax e no quadro das rela­ções bilaterais com países ami­gos, aliada ao trabalho efectivo e meritório das equipas de vaci­nação em todas as ilhas, têm-se conseguido um nível elevado de vacinação. O governo apon­ta para finais do ano atingir os 85% da população elegível para as vacinas. Com a resolução n.º 82 de 23 de Agosto deram­-se passos importante para, na prática, tornar obrigatória a va­cinação em vários grupos pro­fissionais entre os quais, os pro­fessores, profissionais de saúde, empregados de hotelaria e res­taurantes e outros prestadores de serviço que fazem atendi­mento público. A confirmação semanas atrás da presença no país da variante Delta do coro­navírus deve reforçar o sentido da urgência em vacinar o maior número de pessoas e mover-se agressivamente para proteger os jovens e as crianças da in­fecção particularmente quando já se está a poucas semanas da abertura das aulas.

Vendo o impacto causado por surtos da variante Delta em países com percentagens eleva­das de população vacinada não se pode, de facto, ser compla­cente com a situação actual em que se forjam resistências à va­cinação e se dá guarida a com­portamentos de risco. Não é por acaso que a resolução refe­rida, no seu preambulo, chama a atenção para o facto de apesar de todos os esforços envida­dos, as taxas de contaminação mantêm-se num nível acima do desejado. Agora que se está a lidar com uma variante do vírus várias vezes mais contagiosa do que a variante Alfa que aumen­tou exponencialmente os casos de covid-19 em Abril/Maio há que transmitir a urgência em melhorar os níveis de vacinação e principalmente em invocar o sentido de dever de todos em se vacinarem para o seu bem, dos mais próximos e para o bem de toda a comunidade.

Como está a ficar cada vez mais claro que a imunidade de grupo provavelmente será um objectivo impossível de atingir é da maior importância que se dê ênfase a outras formas de minimização das possibilidades de contágio. Curiosamente nos cuidados a ter com o corona­vírus ainda se insiste nas reco­mendações anteriores de lim­peza das mãos e das superfícies. Não se põe o foco devido no uso das máscaras, na ventilação dos espaços e nas regras de funcio­namento em recintos fechados que o conhecimento científico mais recente da forma como o vírus se transmite de uma pes­soa para outra recomenda. E isso agora é da maior impor­tância porque, como já se sabe, as pessoas vacinadas mesmo com duas doses não estão livres de serem infectadas por no­vas variantes do coronavírus e, tratando-se da variante Delta, de serem contagiosas, ou seja, de poderem passar o vírus para outras pessoas mesmo que se­jam assintomáticas ou tenham sintomas leves da doença.

Manter a confiança é um ele­mento chave de combate contra a crise pandémica e a crise eco­nómico e social que a acompa­nha. Informações incompletas ou pouco rigorosas passadas às pessoas podem miná-la e na sequência comprometer o engajamento e o contributo de pessoas, empresas e sociedade para a eficácia das medidas de política dirigidas para mitigar os efeitos das crises e preparar as condições de retoma. A pro­messa das vacinas era que con­seguida a imunidade de grupo praticamente tudo voltaria ao normal. Os cientistas hoje di­zem que perante a capacidade demonstrada de mutação do co­ronavírus provavelmente não é possível pelo menos por algum tempo conseguir imunidade de grupo independentemente da percentagem da população que se vier a vacinar. Recomendam, porém, que mesmo sem esse resultado é importante conti­nuar a vacinar para diminuir as chances do vírus ter mutações circulando por gente não vaci­nada.

Imagine-se que não é fácil para as autoridades insistir na vacinação e até dar passos para a tornar obrigatória quando em simultâneo não podem prome­ter que tudo voltará ao normal mesmo se todos estiverem vaci­nados. Também não é fácil de­pois de mais de um ano e meio de pandemia dizer às pessoas que se deverá continuar a usar máscaras em certas situações e que o acesso a certos lugares e serviços e a participação em actividades colectivas poderão ainda ficar sujeitos a determi­nadas restrições. Navegar nes­te ambiente de incertezas, sem que se agravem ao nível do in­divíduo e da sociedade as con­sequências do distanciamento social, de perda real de rendi­mentos e de oportunidade de carreira ou de realização pes­soal e profissional, exige mais do que nunca que a postura de Estado seja honesta, sábia e pragmática e também compe­tente e segura no momento de execução.

O pior que pode acontecer é que com todas as incertezas quanto ao futuro e as dificulda­des de viver no momento pre­sente com menos rendimentos e sem muitas outras opções de vida se venha ainda acrescentar a insegurança e a violência no quotidiano das pessoas. Vê-se isso nalguns países onde existe uma cultura de violência asso­ciada à posse de armas de fogo. O estranho é algo similar tam­bém se verificar em Cabo Verde, mas sem que se assuma que há uma cultura de violência e que aparentemente o acesso a ar­mas de fogo em particular pelos jovens é fácil como parece fácil para alguns deles usá-las contra pessoas ao menor pretexto. A deterioração económico-social e até psicológica por causa da crise claramente que é propí­cia à erupção de situações que podem evoluir para a violência e aumentar o sentimento de in­segurança.

Impedir que se entre numa espiral de violência é funda­mental para que o Estado pos­sa manter a sua autoridade e a confiança das pessoas e aplicar a sua estratégia de saída da cri­se. Nesse sentido, não oferecem qualquer conforto reacções de autoridades que explicam a violência presente com erup­ções cíclicas sem oferecer mais explicação dos fenómenos so­ciais atrás do crime. Também mostra-se insensibilidade quanto à existência em algum grau de uma cultura que propi­cia a violência na resolução de problemas quando se recorre a apelos descontextualizados de “Homi faca, Mudjer matchadu, Mininus tudu ta djunta pedra” para retoricamente responder a algum desentendimento na esfera pública. O que é preciso é mais serenidade, mais soli­dariedade e mais coragem para identificar as causas e os meios da violência e efectivamente os neutralizar e ao mesmo tempo restaurar a esperança de outras saídas para a crise e para uma vida digna.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1030 de 25 de Agosto de 2021.

segunda-feira, agosto 23, 2021

Largada presidencial

 

A dois meses das eleições presidenciais marcadas para 17 de Outubro o país prepara-se para o último acto deste ciclo eleitoral que se iniciou há quase um ano com as autárquicas de 2020.

Pela natureza do órgão, pela conjuntura e pelo que dele se espera deverá ser uma eleição especial. De facto, desta vez trata-se de eleger um órgão que é singular e suprapartidário e que não tem funções governativas. A eleição irá verificar-se no actual ambiente de incertezas que se vive em meio de uma pandemia sem precedentes e que apesar das vacinas ainda não se vislumbra quando a retoma económica poderá processar-se e a que ritmo. O momento é marcado também por grandes desafios ao sistema democrático e em que não faltam tentativas de descredibilização das instituições.

Sendo especial a eleição presidencial, há sempre o risco de se tentar desvalorizá-la considerando que se trata de perda de tempo e de dinheiro porque o PR não governa e nada consegue mudar. Ou, no sentido contrário, e para se fugir ao estigma de ser a eleição de uma espécie de Rainha de Inglaterra, pode-se ter a tentação de lhe imprimir um carácter que aparentemente lhe dá competências em matérias de governação, mas que além de criar falsas expectativas no eleitorado, desvia a eleição dos seus propósitos e pode ser um foco de tensão futura com quem realmente tem as rédeas da governação. Num e no outro caso perde-se a possibilidade de focalizar o debate eleitoral no que realmente importa e que tem tudo a ver com o facto de constitucionalmente o presidente da república ser o representante da república e o garante da independência nacional, da unidade da Nação e do Estado, do cumprimento da Constituição e do normal funcionamento das instituições.

A eleição presidencial ao acontecer no término do segundo e último mandato do actual PR e, por conseguinte, de renovação obrigatória do titular do cargo, abre a possibilidade única de se centrar o debate no que deve ser a função presidencial nos tempos actuais. A democracia em todo o mundo apresenta sinais de crise grave com instituições fragilizadas, sistemas partidários desacreditados e tentações populistas e autocráticas. Em muitos casos não faltam derivas iliberais limitando direitos fundamentais e pondo em causa a independência dos tribunais e hostilizando os órgãos de comunicação social. Noutros casos há percepção de que se vive uma crise de representação acompanhado de um sentimento de desconfiança em relação às elites e de crescente dependência das redes sociais o que paradoxalmente deixa as pessoas susceptíveis a líderes com posturas narcisísticas ou com tiques de celebridade. Claramente que a forma como o cargo de PR poderá vir a ser exercido irá contribuir para a contenção ou não das tendências mais descredibilizadoras do processo democrático abrindo a possibilidade de mobilizar vontades e focar energias da nação no que deve ser feito para ultrapassar a situação actual.

Não se pode ignorar os sentimentos anti-sistemas que aproveitaram situações recentes bem identificadas para se exprimirem em órgãos de comunicação social, nas redes sociais e em petições. Descontentes da democracia, do constitucionalismo liberal e do Estado de Direito existiram sempre. Perante fragilidades notórias do sistema democrático procuram servir-se das próprias instituições da democracia como o parlamento, os partidos políticos e a imprensa para desacreditar todo o sistema. A cereja no topo do bolo seria poder instrumentalizar o cargo de presidente da república. E é assim porque facilmente podem ser criadas tensões no sistema democrático em particular nas relações com o governo e com o parlamento se o exercício do cargo do PR ganha o hábito de “bordejar” os limites das competências constitucionalmente estabelecidas. Em alguns momentos da vida desta segunda república, às vezes com incitamento de outros, outras vezes movidos por desejo de protagonismo ou a tentação de governar ou fazer de oposição, aconteceram casos complicados com consequências na vida do país e que um dia eventualmente a história irá aclarar das razões e motivações.

Diz-se que o poder do PR nas democracias parlamentares é de geometria variável. Como não governa o que mais conta, na sua interacção com os outros órgãos de soberania e com o país, é o seu poder de influenciação. Ora, esse poder varia e é tendencialmente maior se o governo é minoritário ou tem uma maioria precária no parlamento. Pela observação da generalidade dos PR nota-se que tendem a acomodar melhor o governo no primeiro mandato do que no segundo, quando já não precisam de apoio para reeleição. Se têm origem no segmento de opinião que está na oposição não poucas vezes ficam sob pressão para tornar as coisas mais difíceis para o partido no governo. Quando cedem à tentação e mostram protagonismo desgastante para o governo ou já estão no segundo mandato ou o governo de alguma forma está politicamente mais frágil.

Em grande número de casos estes protagonismos de oportunidade não levam a bons resultados no sistema. Além de cultivarem a desconfiança entre titulares de órgãos de soberania dão azo ao cinismo na esfera pública que, em particular, nas jovens democracias se transforma no maior obstáculo ao desenvolvimento de uma cultura democrática. A democracia com as suas normas, processos e procedimentos cria essencialmente as regras de um jogo em que todos querem participar assumindo que elas são cumpridas e que o PR é o arbitro e moderador do sistema cumprindo com o papel que na condição de suprapartidário e de eleito directamente pelo povo lhe compete.

Como em qualquer jogo, quanto mais se adere às regras mais bonito é o jogo, menos ineficiências se criam e mais vias para atingir objectivos se podem encontrar. Cumprindo as regras, aprende-se a jogar melhor, quem participa e assiste enriquece-se pessoal e institucionalmente com as novas estratégicas e as tácticas aplicadas e há probabilidade maior de se encontrar soluções inovadoras. Há também menos risco de o país deixar-se apanhar em mitos, ilusionismos e meias verdades porque ninguém está impedido de gritar que o rei vai nu. Estão, pois, enganados os descontentes com a democracia que quando apontam erros no sistema, ao invés de insistirem na aplicação das regras, tendem a aumentar o caos existente, a propor desinstitucionalizar ainda mais e a promover a entrada de figuras providenciais que não precisam cumprir regras.

A eleição do presidente da república é o momento certo para mostrar a importância do cumprimento das regras para a consolidação da cultura democrática, essencial para manter o clima de liberdade, de justiça e de solidariedade que o país precisa neste momento difícil. Todos que a partir de hoje, 18 de Agosto, são candidatos a presidente da república devem ter isso em devida conta e procurar conduzir a sua campanha de forma a que o eleitorado possa com mais clareza ver qual é a personalidade que com confiança, segurança e perseverança está em melhor posição de fazer a democracia trabalhar para todos.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1029 de 18 de Agosto de 2021.

segunda-feira, agosto 16, 2021

Quo Vadis políticas públicas?

 

O Instituto Nacional de Estatísticas (INE) divulgou na semana passada dados preliminares do Censo 2021 incidindo sobre a população e a habitação. De entre as informações passadas ficou-se a saber com alguma surpresa que a população de 2010 para 2021 diminui de 491.683 habitantes para 483.628.

A população urbana cresceu de 61,8% em 2010 para 73,9% em 2021 e a população rural, no mesmo intervalo de tempo, caiu de 38,2% para 26,1%. Outro dado importante é que das ilhas terão saído em termos líquidos 29.076 pessoas e deslocadas para o Sal, Boa Vista e Cidade da Praia num total de 21.619. A diferença, 7457 pessoas, eventualmente terá saído do país por razões de emigração, estudos no estrangeiro e outras. Concomitante com essas deslocações internas nota-se o crescimento do número de barracas como habitação em 85,7 % de 2010 para 2021 nas ilhas de S. Vicente, Sal, Boa Vista e Cidade da Praia. Perante estes dados é de se perguntar: Quo Vadis (por onde vão) as políticas públicas do país?

Muito do discurso político feito em Cabo Verde procura realçar a necessidade da criação de condições para fixar a população nas suas ilhas de origem. Diz-se, por exemplo, que se está a investir na mobilização da água (furos, barragens, dessalinização) para dar vida ao mundo rural; que se está a construir estradas, portos e aeroportos para desencravar localidades; que se está a criar escolas, liceus e até polos universitários para garantir igualdade de oportunidades; e que se está a edificar hospitais, sistemas energéticos e de telecomunicações para criar condições adequadas para o desenvolvimento social e económico em todo o país. Compreende-se que com este tipo de discurso procura-se granjear suporte político junto de algum tipo de eleitorado tanto a nível central como local. O problema é que quando pôs na prática, e para isso mobilizados e aplicados milhões de contos, são tão grandes as ineficiências criadas que nem se consegue atingir o objectivo de fixação das populações nem também o de fazer o país crescer o suficiente para ultrapassar as vulnerabilidades que os anos de seca revelaram e que foram aprofundadas com a pandemia.

Os dados do INE deixam transparecer que as pessoas reconhecem onde a economia mostra dinamismo, capacidade de expansão e promessa de emprego. As migrações para a ilha do Sal e da Boa Vista ao longo da década são a prova disso. As pessoas vão onde há investimento externo massivo, a construção de grandes hotéis e resorts, e onde há uma procura externa em forma de um fluxo turístico crescente que garante sustentabilidade aos negócios e aos empregos. Quem não parece reconhecer plenamente essas potencialidades são os poderes públicos que, em vez de capitalizar sobre os investimentos feitos para desenvolver actividades conexas privilegiando a emergência de um empresariado local capaz de prestar serviços e fornecer bens aos empreendimentos turísticos, optam por uma postura quase de passividade, mas que na prática lembra a do rentista. Venda de terrenos e cobrança de impostos e taxas diversas devido ao turismo acontecem, mas não se vêem políticas públicas atempadas para responder às necessidades das pessoas que com a sua mão-de-obra tornam os investimentos uma realidade economicamente dinâmica.

O crescimento vertiginoso das barracas nessas ilhas como demonstra o Censo 2021 é prova clara dessa passividade quando aplicada ao sector da habitação. Curioso é que nos primeiros cinco anos da década 2010-2021 o país estivesse a implementar o projecto Casa para Todos com base num crédito português de carácter comercial no valor de 200 milhões de dólares. Enquanto se levantavam barracas na ilha do Sal e da Boa Vista construíam-se prédios em várias ilhas que depois se viria a verificar que na prática nem o governo de então nem o de agora conseguiu vender ou arrendar. Foi dos momentos em que ficou mais claro a falta de coerência nas políticas públicas com resultados terríveis tanto para o país como para as pessoas. A pesada dívida externa de mais de dois dígitos que o país vem arrastando há anos e que se agravou extraordinariamente com a pandemia tem a sua origem nessas opções que deixam o país com elefantes brancos ao mesmo tempo que oportunidades são perdidas e não se potencializa o que realmente cria riqueza, gera emprego e aumenta as exportações.

Devia ser evidente para todos que uma economia pequena como a cabo-verdiana só pode prosperar se souber fazer uma ligação vantajosa com a economia mundial atraindo investimentos e exportando bens e serviços. Historicamente todos os momentos de fugaz prosperidade que o país teve estavam de uma forma ou outra ligados à procura externa de bens e serviços. Depois da independência perdeu-se essa conexão. O fluxo da ajuda externa garantia algum rendimento e crescimento da economia mesmo com um regime político hostil ao investimento externo e à actividade privada e promotor de uma economia virada para dentro. O Estado que foi criado com esse modelo, porém, nunca se deixou completamente reformar, apesar dos diferentes governos democráticos que se têm sucedido nos últimos trinta anos.

As incoerências nas políticas públicas continuam com os custos de eficiência, produtividade e competitividade conhecidos de todos. De vez em quanto vêm à superfície para se verem os seus efeitos como é o caso que o Censo 2021 revela com a saída massiva das pessoas do mundo rural para as cidades. Um outro caso é o que se passa em S. Vicente com o aumento do número de barracas que conjuntamente com a perda de população evidenciam o empobrecimento de uma ilha cuja economia só pode realmente ser dinamizada com ligação ao exterior. Não compreender isso impede que haja vontade de mudar a atitude quanto à relação do país com o mundo e de questionar políticas publicas cujos resultados são limitados, se não mesmo prejudiciais.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1028 de 11 de Agosto de 2021.

segunda-feira, agosto 09, 2021

Aprender a viver com incertezas

 A pandemia do vírus sars-cov-2 continua a ser o desafio central da actualidade em todo o mundo. Para além do impacto sanitário que já levou a quase duas centenas de milhões de infectados e a mais de 4 milhões de mortes pode-se constatar os seus efeitos sócio-económicos que, em alguns casos, só não têm sido mais devastadores por causa da pronta e abrangente intervenção do Estado.

Os custos do combate à pandemia têm sido enormes levando à contracção brusca da economia em muitos países e ao seu endividamento rápido. Em pequenos países insulares o choque externo provocado pela Covid-19 foi terrível levando, no caso de Cabo Verde, a uma contracção da economia em cerca de 15% do PIB e a uma dívida pública de 155% do PIB nos finais de 2020, de acordo com o relatório deste mês de Agosto do BCV sobre o estado da economia.

Todos anseiam pelo fim das contaminações e pela retoma da economia. Fizeram-se grandes avanços na criação de vacinas e muitos milhões de pessoas em todo o mundo já foram vacinadas. O coronavírus, porém, não ficou parado e contra-ataca. Sucedem-se mutações cada vez mais contagiosas e mesmo em países com elevados níveis de vacinação surtos de novas variantes, ontem alfa, hoje delta e talvez lambda amanhã, ameaçam as tentativas de retoma e de regresso à normalidade da vida em sociedade e põem em causa o grande objectivo de se atingir a imunidade de grupo e acabar com a pandemia. Como disse a expert em vacinas Kathleen Neuzil, citada pela Washington Post, vacinar pessoas deve continuar a ser a prioridade, mas o público também tem que mudar a sua relação com o vírus que certamente irá conviver com a humanidade no próximo futuro.

Compreender que não há soluções imediatas para a crise pandémica e as outras crises por ela gerada é sempre difícil para a generalidade das pessoas, considerando as enormes e abrangentes restrições a uma vida normal sustentados por todos há quase um ano e meio. A impaciência perante as medidas às vezes contraditórias das autoridades em matéria de combate ao coronavírus testemunha isso perfeitamente. O que não se compreende é que governantes e, em geral, a classe política alimentem essa impaciência em vários momentos. Quase em todos os países conhecem-se exemplos de medidas precipitadas ou precauções não tomadas que depois resultaram em surtos da covid-19 com as consequências que já se conhecem. Para além desses “ir e vir” minarem a confiança das pessoas nas autoridades sanitárias, traduzem-se muitas vezes em tentativas de conseguir ganhos políticos à custa dos adversários políticos. Com isso, semeia-se desconfiança e colocam-se obstáculos ao que devia ser uma frente unida perante uma ameaça existencial que para ser enfrentada com sucesso precisa do engajamento efectivo de todos.

Muitos pensaram e desejaram que a pandemia do coronavírus, ao expor a nossa humanidade comum, abrisse o caminho para uma maior solidariedade entre as pessoas e uma maior convergência na procura de soluções tanto a nível nacional como internacional e até planetário. A realidade ficou muito aquém dos desejos, mesmo assinalando os enormes feitos nos domínios da investigação, desenvolvimento, produção e distribuição de vacinas e também nos gestos de solidariedade dirigidos aos países menos desenvolvidos e carentes de meios médicos, sanitários e também financeiros para responder à pandemia. Os limites dessas solidariedades e convergências são, porém, muito evidentes e é grande a tentação de se voltar às práticas anteriores que privilegiavam o individualismo, secundarizavam o multilateralismo na relação entre as nações e ignoravam as mudanças climáticas e outras ameaças planetárias.

Nem a continuidade da pandemia em formas ainda não completamente previsíveis e que aparentemente não excluem ninguém – é só ver os surtos na Índia, Europa, Estados Unidos, Brasil, África do Sul e ultimamente a Indonésia – parece ser motivo suficiente para impedir algum tipo de retrocesso no que devia constituir-se num momento alto para a solidariedade global e para um olhar para dentro das sociedades e identificar o que não vai bem. A nível nacional continuam as rivalidades estéreis e tentativas de bloqueio e de descrédito das instituições e da democracia. Isso acontece porque nem mesmo com a perspectiva de convivência forçada com um vírus perigoso e altamente infeccioso, se consegue manter viva a noção central que a luta pelo bem comum não deve ser secundarizada sob pressão de interesses outros.

Também em Cabo Verde a pandemia ao expor as profundas fragilidades do país não foi vista como suficiente pretexto para uma reflexão mais profunda sobre as vulnerabilidades da população, sobre as dificuldades em tornar mais credíveis e eficazes as suas instituições democráticas e sobre a incapacidade em potenciar recursos existentes e em particular os recursos humanos para aproveitar oportunidades de inserção na economia global. Mesmo sendo a causa uma crise sem paralelo, a situação não deixou no fundo de ser vista como mais uma que o país vai atravessar com a ajuda da solidariedade internacional. Assim sendo, interesses outros contam mais do que efectivamente deveria ser o objectivo de procurar engajar todos num esforço colectivo à altura das fragilidades expostas pela crise pandémica.

Prefere-se, como se constatou no debate sobre o estado da Nação, usar a pandemia e as suas consequências brutais para demonstrar que antes estava tudo bem, quando é sabido que as vulnerabilidades e a precariedade vinham de longe e se tornaram mais visíveis com os três anos de seca. Mesmo quando ficam para trás as eleições, renova-se quase de imediato o antagonismo de sempre entre os partidos, ficando as questões de fundo e urgentes por discutir, equacionar e resolver e também as responsabilidades por assumir. O jogo de “culpar o outro” repetido incessantemente em todos os debates pelos dois partidos que se alternam a governar o país não pode deixar de ser um exercício estéril.

De facto, põe-se o país na posição de nunca realmente enfrentar os problemas e de simplesmente manter-se na proverbial posição de “empurrar com a barriga”. O que parece quebrar com a monotonia desses ataques e contra-ataques são as tiradas contra o sistema visando em particular o sistema de justiça e o parlamento. Aparece logo um grupo de claque constituído na sua maioria pelos mesmos descontentes com a democracia que nunca exigem que se cumpram as normas e os procedimentos do jogo democrático existente, mas queixam-se da sua eficácia como se fosse possível ter um bom jogo sem seguir as regras. Entretanto, sem escrutínio eficaz nem responsabilização efectiva, quem for governo continua a sua gestão corrente marcada por protagonismos pessoais que já nem se preocupam com a coerência governativa quando se desdobram em declarações na comunicação social, em iniciativas políticas e nomeações.

A situação pandémica não é uma questão simples nem passageira. A realidade vivida neste ano e meio mostra as enormes dificuldades que terão que ser enfrentadas se não houver uma retoma da economia. As incertezas até aí chegar são muitas e mesmo a vacinação geral não se apresenta como a solução completa para o problema do coronavírus. Mais do que nunca, uma outra atitude quanto à forma como o país é visto, vivido e governado pelas suas gentes, impõe-se. Resiliência nunca significou “deixar andar” e “repetir o mesmo”. Deve sim significar que a meio de dificuldades é preciso mobilizar energia e encontrar novas formas para se afirmar, vencer obstáculos e criar bases de prosperidade futura. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1027 de 4 de Agosto de 2021.

segunda-feira, agosto 02, 2021

Nação expectante

 

O debate sobre o estado da Nação é já na próxima sexta-feira, dia 30 de Julho. O governo e as forças políticas representadas no parlamento vão oferecer cada um o seu ponto de vista sobre a situação actual do país e esgrimir os argumentos de sustentação das respectivas posições.

Do debate parlamentar ninguém espera que saiam acordos ou compromissos de acção conjunta. Mas, pelo menos, devem servir para iluminar os desafios que se colocam ao país, revelar a complexidade das questões postas a todos e, sendo possível, deixar pistas para eventuais soluções ou caminhos a trilhar para ultrapassar a encruzilhada onde o país se encontra de momento.

Da parte das pessoas que pela comunicação social vão seguir o debate, o mais natural é que haja uma postura expectante no sentido amplo em que observam, estão atentas, preocupam-se, põem-se na posição de vigilantes e há o desejo que, qualquer que seja o caminho escolhido, tudo corra bem. Passaram somente três meses que o eleitorado deu uma maioria ao governo para lidar com uma das situações mais difíceis vividas em Cabo Verde. Mesmo com o mal-estar actual causado em parte ou intensificado pela situação pandémica, há a confiança em algum grau de que dificuldades poderão ser ultrapassadas e que soluções duradoiras e sustentáveis serão eventualmente encontradas.

Pode-se estar a viver momentos difíceis a vários níveis – económico, social e até psicológico, mas a verdade é que no domínio do político o ambiente numa certa perspectiva poderia ser considerado privilegiado. O governo está no início de um mandato de cinco anos, as próximas eleições com possibilidade de impacto real na governação só vão acontecer daqui a quatro anos e a oposição está a dar os primeiros passos na reestruturação que terá que fazer após uma liderança desastrosa de mais de cinco anos. Por outro lado, com a pandemia e a maior dependência do Estado, resistências a uma acção decisiva do governo para se ir além do status quo dificilmente poderão vir da própria sociedade civil. O ambiente excepcional, se favorável ao exercício do poder sem obstrução, traz, porém, consigo maiores responsabilidades. A qualidade da liderança mais do que nunca será escrutinada. Falhas em se mostrar à altura dos desafios serão seguramente punidas de forma mais severa.

Hoje é claro para qualquer observador que para o bem-estar dos países é mais importante ter uma liderança visionária e competente do que ser dono de recursos naturais ricos como o petróleo ou outros minérios com alta procura mundial. A grande questão que se coloca a todas as economias é como evitar que constrangimentos de crescimento as coloquem numa armadilha dentro da qual uns mesmo com ajuda externa, outros com transferência de fundos da União Europeia e outros ainda com venda de recursos naturais não têm como impedir o empobrecimento relativo marcado por grandes desigualdades sociais e por bolsas crescentes de pobreza. E sem resolver esta questão não se consegue acompanhar a dinâmica desenvolvida pelos países que na base de acréscimos contínuos em produtividade e competitividade melhoram de forma sustentada o nível de rendimento das suas populações. A marca de uma liderança capaz nos tempos de hoje passará certamente por criar condições para fugir à armadilha. Crucial para isso será saber identificar os constrangimentos que a enformam e a mantêm ao longo do tempo e que seguramente têm origens históricas e sócio-culturais e agir de forma consequente para os ultrapassar.

Em Portugal, na semana passada, em sede do debate sobre o estado da nação, a grande questão foi identificar o que vem impedindo a convergência de Portugal com a Europa apesar dos enormes recursos transferidos ao longo de décadas. Este país está na iminência de receber somas volumosas no quadro do que se convencionou chamar de bazuca financeira e é grande a preocupação de não se repetir os erros anteriores. O Primeiro-ministro português disse que “os próximos anos vão ser decisivos e que é necessário mobilizar todas as energias e forças para recuperar e reconstruir o país, aproveitando a chance actual de dispor de recursos disponibilizados pela Europa”. Também na Itália, ao ir buscar o célebre e competente Mario Draghi para o governo, e noutros países está-se a concordar que é de suma importância assegurar lideranças que percebam o seu papel no mundo de hoje e em particular na actual conjuntura da crise pandémica. Papel esse que passa por renovar a ideia de servir com dedicação e competência e não se deixar cair na tentação de se servir do cargo, abrindo portas à corrupção e mantendo o país preso aos constrangimentos que não o deixam sair da armadilha do crescimento rasteiro e do empobrecimento garantido.

Em Cabo Verde, a conjuntura actual dos grandes desafios derivados da crise pandémica, mas também de uma maior facilidade na movimentação política, constitui um especial desafio ao governo. Se não conseguir ver as oportunidades e ousar fazer as reformar a todos os níveis que se impõem a sua fragilidade ficará patente para todos. Se pelo contrário souber aproveitar a crise e ser capaz de movimentar o país com reformas e engajamento das pessoas, das empresas e da administração pública poderá fazer história. Os tempos e a sua crise são aptos a revelaram talentos e prestações muito especiais. Há que pôr de lado as tentações vulgares para o eleitoralismo permanente a inquinar as relações dentro do Estado e entre o Estado e as autarquias numa perspectiva que protege interesses corporativos nos organismos públicos e favorece derivas autocráticas nos municípios. Todos sairiam a ganhar se uma reorientação da política finalmente trouxesse a economia que pudesse renovar a esperança de que, não obstante a pandemia e as suas sequelas, dias melhores poderão estar à frente.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1026 de 28 de Julho de 2021.

segunda-feira, julho 26, 2021

Mal-estar

 

Há uma sensação de mal-estar na república. Não se sabe precisamente quais as causas, mas sente-se que algo não vai bem nalgumas instituições, a política parece ter sido substituída pelo espectáculo e a exibição de ambições pessoais e o travão que podia ser a postura crítica da sociedade civil deixa-se apanhar nas malhas das redes sociais tornando-se negativa, anárquica e às vezes quase niilista.

Olha-se com perplexidade para o impasse que se instalou nas câmaras municipais da Praia e S.Vicente com o choque entre o presidente e os restantes vereadores da câmara municipal. Também na Assembleia Nacional não se muda o tom do debate político mesmo com a nova legislatura e a meio de uma emergência pandémica. Pela primeira vez deixa-se o órgão mais de dois meses após a sua inauguração a funcionar em reuniões plenárias sem as suas comissões especializadas prejudicando a qualidade do trabalho legislativo e a fiscalização da acção governativa.

O governo, pela forma como lidou com os últimos acontecimentos, vê-se que continua o seu curso no mesmo estilo como se não tivesse recebido um novo mandato e nas condições que o obteve e aconselhariam a uma postura de mais humildade e maior ponderação na abordagem dos problemas complexos do país, particularmente quando incidem sobre sectores-chave para uma eventual retoma da economia. Por seu lado, a sociedade assiste espantada aos ataques desferidos contra o Estado de Direito, o sistema judicial e contra alguns magistrados até a partir do hemiciclo do parlamento e queda-se perplexa perante a aparente incapacidade de uma resposta eficaz e tempestiva das instituições democráticas. A completar todo este ambiente pouco tranquilizador não se pode deixar de ouvir o ruído de fundo que resulta do que aparentemente se afigura uma ofensiva mediática com vista a descredibilizar a democracia cabo-verdiana, o seu percurso e as suas instituições, facilmente verificável numa simples pesquisa no Google. Mas felizmente que nem tudo é negativo. O grau adequado de eficácia conseguido no processo de vacinação, já há mais de 33,8% de pessoas elegíveis que foram vacinadas, e não só, sinaliza que há reservas de competência e liderança que aplicadas podem contribuir para ultrapassar os problemas do momento.

É verdade que o mal-estar verificável nas democracias já vem de longe e só foi aumentado com a pandemia da Covid-19 que há quase um ano e meio anda a limitar o quotidiano, a interromper relações e carreiras e a manter incerto o futuro. Mas, da mesma forma que para uma reacção determinada contra a pandemia vieram as vacinas, houve abertura nacional e internacional para evitar que as pessoas e as empresas fossem completamente submersas pela crise e procurou-se assegurar um rendimento básico a todos, impõe-se que se aja com firmeza para combater as outras causas do mal-estar na sociedade. E não há tempo a perder porque outras ameaças já despontam neste mundo globalizado a começar pelo que de imprevisível pode acontecer com as alterações climáticas. Para as enfrentar há que entre outras coisas reverter a crescente desconfiança em relação à democracia, reforçar a importância do debate na esfera pública com base na verdade e no respeito pela realidade factual e neutralizar a atracção pelas soluções fáceis e polarizantes oferecidas pelos populistas.

Em Cabo Verde há que inverter o caminho que vem sendo trilhado que é o de, com protagonismos pessoais que contrariam as regras do jogo democrático, ampliar na prática competências de órgãos, mudar relações com outros órgãos e seus titulares e imprimir tons autocráticos às relações que deviam ser baseadas essencialmente na colaboração e solidariedade política. O mal-estar instala-se sempre que se procura validar o princípio de que as regras não se aplicam, que o voluntarismo e o não respeito pelos procedimentos é a marca dos bons políticos e que os fins justificam os meios. O que tem ocorrido nas câmaras municipais da Praia e de S. Vicente é paradigmático a esse respeito.

São impasses que estavam destinados a acontecer a partir do momento em que o sentido da colegialidade ficasse mais fraco. A Constituição cabo-verdiana estabelece um sistema diárquico nos municípios com dois órgãos colegiais eleitos directamente. Diferentemente, os Estatutos dos Municípios estabelecem a existência de três órgãos. Inspirados talvez na lei 121/91, que por sua vez é tributária da lei 47/89, preveem um órgão executivo singular no município a par da câmara municipal e da assembleia municipal com competências próprias e abrangentes em relação às quais o recurso só pode ser contencioso e não para o colectivo da câmara municipal como acontecesse, por exemplo, em Portugal onde muitas dessas competências são realmente da câmara municipal e só tacitamente são exercidas pelo presidente. Era só um presidente da câmara ficar em minoria ou mesmo estando em maioria desentender-se com os colegas da lista eleita para que acontecesse o que se vê hoje nestas ilhas.

Num ambiente de enfraquecimento da solidariedade intrapartidária e de exacerbação de ambições pessoais, o mais natural é que situações do género venham acontecer. Negociar compromissos torna-se cada vez mais difícil, quando a tentação do líder é de se impor. Com isso, porém, aumenta o risco de bloqueios e nem a eleição de maiorias para governar dão garantias de estabilidade posterior do mandato. As incertezas que num determinado momento se fizeram sentir à volta da aprovação da moção de confiança no parlamento foram reveladores a esse respeito. Com tais desenvolvimentos confirma-se que nem os partidos estão imunes aos sentimentos anti-política e anti-partidos e que, pelo contrário, há quem se sirva deles para afirmar as suas tendências autocráticas. Aliás, como se pôde ver nas últimas eleições, há partidos a absorver nas suas listas personalidades com esse tipo de discurso populista na perspectiva de alargar o seu eleitorado para certas franjas anti-sistema. Naturalmente que isso tudo tem efeito perverso na democracia e metástasizando dentro do sistema pode levar ao seu descrédito ou mesmo à sua morte.

Uma outra prática que tem um efeito corrosivo na democracia é o de se bloquear o debate político imputando ao adversário intenção antipatrióticas ou de ataque premeditado a classes bem identificadas na administração pública ou na sociedade. Aconteceu no parlamento na semana passada a propósito da alegada ineficácia da polícia em impedir a fuga de um arguido por homicídio em prisão domiciliária. Quando, perante uma situação dessas, o normal seria para o parlamento ouvir em sede da comissão especializada o ministro da tutela e eventualmente o director da polícia o que, de facto, aconteceu foi anular-se como entidade fiscalizadora do Estado ao tomar a declaração política de uma das bancadas como um ataque à polícia nacional. A fazer escola esse tipo de actuação, não há como, por exemplo, discutir a qualidade do ensino sem que alguém diga que se está a atacar os professores, ou que se discuta o sector de saúde, sem que os médicos e enfermeiros sejam mobilizados para enfrentar o “inimigo”.

O resultado de tais práticas só pode ser o descrédito das instituições que fogem ao cumprimento do seu papel, acompanhado de um sentimento de irresponsabilidade conjugado com resistência a reformas dos supostos “atacados”, enquanto que os custos da ineficácia na prestação de serviços públicos são suportados por todos. O mal-estar nas democracias tem muito a ver com a incapacidade continuada de mudar este estado de coisas. Para reforçar a resiliência da democracia há que cumprir e fazer as regras do jogo democrático e imputar responsabilidades a quem é dado o poder de representar, de governar e de julgar em nome do povo. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1025 de 21 de Julho de 2021.

segunda-feira, julho 19, 2021

Serenidade, rigor e sentido de futuro

 

Dias atrás o chefe da diplomacia da União Europeia Joseph Borrel dizia que “o mundo como um todo não vai superar a pandemia antes de 2023”.

O aparecimento das variantes do vírus Sars-coV-2 conjugado com o facto de que ainda por algum tempo uma boa parcela da humanidade não vai estar vacinada cria muitas incertezas. Não é claro que seja para breve a retoma económica e o fim da crise social associada, mormente quando começa a desenhar-se um padrão na dinâmica económica mundial de crescimento a duas velocidades: os países emergentes crescem abaixo da média, enquanto que os países mais desenvolvidos dão sinais de estar “a sair do túnel”, caso da Europa, e até de crescimento vigoroso a 6.5% como os Estados Unidos.

Em Cabo Verde as incertezas ligadas à pandemia com impacto negativo nas receitas e aumento nas despesas obrigaram o Governo a apresentar um orçamento rectificativo. No OE de 2021 o défice previsto era de 9,3% porque se esperava a retoma económica no fim do segundo trimestre. Gorada essa possibilidade, rectifica-se o défice orçamental para 13,7% e a dívida pública passa de 145,9% do PIB para 158,4%, criando dificuldades no financiamento do Estado e tornando o país menos atractivo ao investimento privado. Não podendo socorrer-se de “bazucas financeiras” como os fundos disponibilizados aos países membros da União Europeia, Cabo Verde terá que encontrar vias para contornar a escassez de recursos e com esforço e criatividade posicionar-se para a retoma da sua economia.

É já em Outubro o último acto deste ciclo eleitoral com a realização das presidenciais. Como a partir daí, até o último trimestre de 2024, não haverá mais eleições, conviria que esse longo período sem disputas político-partidárias exacerbadas fosse de convergência na realização de reformas estruturantes para o país. Para combater a pobreza e promover a inclusão social é entendimento geral que se deve crescer acima dos 7%. Mas como os anos pré-pandemia provaram, isso não acontece mesmo com o melhor ambiente internacional sem que sejam feitas reformas com impacto na produtividade e na competitividade do país. A pandemia ao longo deste já quase ano e meio insistentemente lembra a todos as enormes consequências de se estar sempre a adiar as reformas que se impõem. Talvez seja este o momento certo para que, como serenidade, rigor e sentido de futuro se construir vontades para concretizar essas reformas e ganhar a resiliência de que tanto se fala e que será necessária para enfrentar alterações climáticas, transição energética e ameaças sanitárias inevitáveis neste mundo globalizado.

A estabilidade política saída das últimas eleições criou um ambiente propício a uma governação serena não obstante as dificuldades existentes e os particulares desafios postos pela conjuntura actual marcada pelo combate ao Covid-19. Sem pleitos eleitorais decisivos para a governação a nível central ou local, os hábitos de campanha permanente dos governantes, autarcas e de outros actores políticos poderiam dar lugar a uma postura mais ponderada nas iniciativas anunciadas e na tomada de decisões. Não se abordariam questões sensíveis e complexas como alterações da lei da nacionalidade da forma como têm sido badaladas na comunicação social, aparentemente sobre pressão de grupos ou em resposta quase epidérmica a alguma injustiça detectada em algumas situações.

Aliás, não deixa de ser estranho que um país como Cabo Verde, arquipelágico e com uma pequena população distribuída por nove ilhas, queira se arvorar em protagonista maior da livre circulação de pessoas com países dezenas de vezes maiores em superfície e população e de rendimento per capita bastante inferior ao seu. Com o argumento de que tem comunidades em vários outros países, quase todos eles com população muito superior e onde os cabo-verdianos constituem uma ínfima minoria, disponibiliza-se a abrir para migrantes sem critérios definidos de selecção.

Num pequeno estado insular e arquipelágico defender a independência nacional, garantir a unidade e preservar a identidade nacional cabo-verdiana (CRCV) obriga a que questões como nacionalidade, mobilidade e capacidade eleitoral de estrangeiros sejam devidamente ponderados. Para os governantes ilhéus a velha máxima de que interesses e não sentimentos devem guiar a política externa dos países tem uma pertinência maior e não deve ser esquecida. Um exemplo eloquente disso é a relação com a Guiné-Bissau. Depois da independência passou a ser construída com base em equívocos de vária natureza e o resultado é que nunca desenvolveu o potencial que eventualmente poderia ter caso interesses económicos fossem preponderantes e constituíssem a base de relações nos diferentes níveis. Na recente tentativa de aproximação dos dois países sentimentos equivocados parecem estar a sobrepor-se outra vez e isso não augura nada de bom.

À serenidade na governação deve juntar-se o rigor na comunicação e na relação institucional por forma a manter confiança, elevar o debate público e conjugar responsabilização com transparência na gestão da coisa pública. A insistência no erro mesmo quando os seus custos são visíveis a olho nu como aconteceu no caso TACV/CVA funciona em sentido contrário. Nestes tempos de incerteza, de escassez de recursos e de maior sensibilidade quanto às opções na aplicação dos mesmos, a imagem de rigor dos governantes é essencial para manter viva a vontade de engajamento para ultrapassar a situação actual e o espírito de solidariedade intergeracional necessária para assumir os custos correspondentes. Em matéria, por exemplo, dos fundos disponibilizados pelo INPS para financiar políticas de layoff do governo não deve haver dúvidas que o Estado fará a sua devolução, não deixando para estudos futuros uma decisão nessa matéria. Não se pode ficar simplesmente por parafrasear o “Whatever it takes” usado por Mario Draghi para salvar o euro e dizer que o governo vai “garantir em qualquer circunstância a sustentabilidade do sistema de segurança social”. Há que agir em conformidade, como fez o “super” Mario no Banco Europeu, e com isso reinará a tranquilidade.

A pandemia da covid-19, além de expor insuficiências várias nos sistemas de saúde e de solidariedade social em quase todo o mundo, veio revelar ainda como em muitos aspectos está-se a viver para o curto prazo, sem uma perspectiva de futuro e sem um sentido de solidariedade para com os outros. O fenómeno parece abarcar os políticos em campanha permanente para fixar eleitorado, operadores económicos focados na maximização dos lucros e descurando a responsabilidade social e os próprios indivíduos centrados em si próprios e sem uma apreciação adequada do que muito que se tem por garantido depende da prestação efectiva e tempestiva de outros. Ultrapassar a situação é fundamental para se evitar que num futuro mais ou menos próximo se venha a enfrentar casos similares à covid-19 que já produziu mais de quatro milhões de mortos e cerca de duzentos milhões de gente contaminada, muitos sem qualquer defesa.

Mesmo com todos os defeitos, ainda é a democracia que melhor cria o ambiente para se encontrar a saída. Baseada no debate comunitário, a democracia concentra-se, como bem disse alguém, no que pode unir e dar razões de esperança em vez de se focar no que pode separar e dar razões de queixa. A pandemia e as ameaças que espreitam mais à frente vieram trazer mais razões para potenciar essas qualidades. Há que aproveitar a crise para fazer o melhor nesse sentido e não deixar que a política de espectáculo e da campanha permanente arruíne o futuro que pode ser construído a partir de hoje.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1024 de 14 de Julho de 2021.

segunda-feira, julho 12, 2021

Fragilidades

 A fragilidade da democracia cabo-verdiana foi sentida como algo muito real nos últimos dias. Os discursos do dia 5 de Julho foram elucidativos a esse respeito em particular o discurso do presidente da república.

Os acontecimentos da semana passada, postos em movimento pela publicitação da fuga à justiça de um arguido em prisão domiciliária e previamente condenado por homicídio, deixaram todos preocupados e perplexos. O espectáculo de se ver o deputado/advogado a confessar cenários de uma fuga para fora do país que acabou por se concretizar sábado passado e depois, na sequência não acontecer nada de relevante, deixou muita gente inquieta. De facto, não é nada tranquilizador ver a autoridade do estado a vacilar.

Não se soube se o ministério público tinha aberto inquérito ao processo de fuga e se a polícia já tinha informação de como a passagem pela fronteira se verificou sem incidentes maiores. Também ficou-se por saber do pedido de levantamento da imunidade parlamentar do deputado para dar continuidade ao julgamento dos casos de difamação e calúnia postos por vários juízes entre os quais juízes conselheiros do supremo tribunal de justiça. Ainda por decidir pela comissão permanente, aparentemente ficou o pedido de detenção do deputado pelo PGR. Habituadas às peripécias da relação do referido advogado com a justiça, em que entre impropérios dirigidos aos juízes e supostas críticas dirigidas ao sistema de justiça, juntam-se adiamentos sucessivos de julgamento do caso interposto pelos juízes, as pessoas foram apanhadas de surpresa com esse novo desenvolvimento. Já não é só a justiça que é posta em causa, mas é próprio sistema político que também fica na berlinda.

De facto, o progresso meteórico feito pelo próprio dentro do sistema a partir de uma entrada inesperada como independente na lista de um partido para o parlamento em posição elegível seguida de nomeação para a comissão permanente da Assembleia Nacional e de ganho de visibilidade no processo de aprovação da moção de confiança ao governo criou outras possibilidades de intervenção que já foram utilizados nos costumeiros ataques aos magistrados. A condição de titular de órgão de soberania também abre a possibilidade de recorrer a outros expedientes para adiar o julgamento perpetuando a não resolução da disputa com os magistrados e confirmando a situação de “não justiça”. Em repetindo-se indefinidamente o ciclo em que há denúncias, mas não há responsabilização, já não é só a justiça a desgastar-se, são todas as instituições democráticas a dar uma aparência de indecisão e desorientamento.

Uma sensação de impotência geral vai-se impondo e aprofundando à medida que também em outros sectores prosseguem ataques e não há respostas convincentes e tempestivas das autoridades. A incapacidade em reverter a situação acaba por provocar uma erosão de confiança geral que não deixa de ter impacto noutros sectores da governação e da vida económica e social. Com o país a viver uma pandemia e as suas consequências na vida das pessoas, no seu rendimento e na sua perspectiva de futuro, era de esperar uma atitude mais firme na resolução dos problemas e maior disponibilidade para solidariamente se enfrentar os enormes desafios que se colocam ao país. Aliás, a decisão do eleitorado em garantir mais uma vez uma maioria absoluta na governação do país, apesar dos apelos em sentido contrário vindos de vários quadrantes, parece confirmar esse sentimento da população. Nesse sentido, compreende-se que para muitos é frustrante ver como por falta de liderança ou tendências autocráticas de líderes de maiorias eleitas tanto a nível local como central o país dá sinais de fragilidade abrindo portas para soluções complicadas e perdendo no processo tempo, energia e recursos vitais.

Perante tal fragilidade, os alertas vindos dos diferentes actores políticos quanto à necessidade de se reforçar os alicerces da democracia, têm razão de ser. Infelizmente em vários aspectos pecam pela ambiguidade e falta de coerência como se pôde constatar nas cerimónias do dia da independência. De facto, dificilmente se pode ter uma nação unida para enfrentar os grandes desafios da sua existência, quando se continua a alimentar um conflito no seu núcleo central de valores.

Há quem acintosamente insista em apresentar o dia 5 de Julho como a “data maior” para destacar que liberdade na sua essência significa libertação do domínio estrangeiro e que na sua defesa é justificável opressão e violação dos direitos humanos, como aconteceu nos primeiros 15 anos de independência. É uma ideia de liberdade em conflito directo com os princípios e valores da República que, como estabelece o artigo primeiro da Constituição, tem como base “o respeito pela dignidade humana e o reconhecimento da inviolabilidade e inalienabilidade dos direitos humanos”. Imagine-se que manter as duas ideias de liberdade em confronto não deixa de ser um obstáculo sério à valorização plena dos direitos fundamentais, legitimando resistências ao Estado de direito democrático que, sempre que condições se proporcionam, manifestam-se de uma forma outra contra o sistema de garantias consagrado na Lei e contra a independência dos tribunais.

Diz-se que para se ter democracia há que primeiro ser independente, quando a verdade constatada por todo o povo cabo-verdiano é outra. Depois do 25 de Abril de 1974 houve liberdade de expressão, liberdade de imprensa, liberdade de criação de partidos, liberdade de reunião e de manifestação. Faltou o direito universal de autodeterminação dos povos que não foi exercido porque as circunstância histórico-políticas ditaram que o caminho fosse “Não ao referendo e Independência Já”. O país pagou essa omissão com a ditadura de 15 anos de um partido único que só veio a ser efectivamente desmantelada após o 13 de Janeiro de 1991.

A partir daí é que o povo se tornou realmente soberano, escolhendo na liberdade e no pluralismo os seus governantes e criando um Estado que protege os direitos dos indivíduos e não está acima da Lei. Insistir numa outra concepção do Estado, com outras formas de legitimidade do poder e com a menorização dos direitos, liberdades e garantias, pela via da apologia mais ou menos encoberta de uma outra constelação de valores, na prática, mantém viva as forças que vão sempre fragilizar a democracia, não só pela via de resistência às suas normas e procedimentos, como pela a de não contribuição para a sua realização plena através de participação no jogo democrático. Fazer discurso bonito no sentido oposto não altera em nada a realidade divisiva que se mantém por outras via. Só reforça a incoerência de quem o produz e aumenta o cinismo de quem o ouve. Perde a democracia, perdem as pessoas apanhadas entre dois sistemas de valores antagónicos e perde o país que não pode contar com um esforço colectivo unificado para enfrentar os desafios complexos do seu desenvolvimento. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1023 de 7 de Julho de 2021.

segunda-feira, julho 05, 2021

Poder e responsabilidade

 

Por todo o mundo as democracias estão sob ataque. Vindo do exterior a ofensiva contra os ideais democráticos comandada pelos estados autoritários procura demonstrar que o modelo autocrático é o que mais se adequa aos desafios da actualidade, seja em matéria de desenvolvimento, seja de segurança, de controlo das migrações e da luta contra a corrupção.

No interior das democracias a luta é mais renhida e sentem-se os efeitos da crescente desigualdade social e o seu impacto na quase ruptura do contrato social. Perda de confiança nas elites do país, descrédito das instituições e a tendência para uma certa anomia social com graves consequências para o futuro são sintomas do que de muito grave vem acontecendo nas democracias e que efectivamente as põe em causa.

Não estranha que por vários países democráticos já se tenham verificado derivas de natureza iliberal que procuram constranger alguns direitos fundamentais como a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa e pôr em causa a independência dos tribunais. Até se constatam outras de carácter mais populista que pelo exacerbar do papel do líder e de protagonismos pessoais em detrimento de formas institucionalizadas de agir e proceder lançam o descrédito no sistema democrático, na classe política e na própria política. Também em Cabo Verde são visíveis as forças, as narrativas e os comportamentos que põem em causa a democracia e tendem a desacreditar os processos democráticos de resolução de conflitos.

Não têm tido muito sucesso e o país tem conseguido manter-se em boa posição nos rankings internacionais de liberdade e democracia. E não há aqui qualquer equívoco como poderão pretender alguns mais cépticos ou cínicos. O que aconteceu nas legislativas de há dois meses atrás e já se tinha verificada nas autárquicas de Outubro mostra uma democracia a funcionar com eleições por todos aceite como justas e livres. É verdade que há deficiências no sistema, muita dependência do Estado e uma classe política mais inclinada a protagonismos pessoais do que a capacitar-se para melhor enfrentar os desafios do país.

Custa acreditar que não se tomem esses momentos de relegitimação do poder democrático como prova de que afinal as coisas não estão tão más como certos populistas querem fazer crer e agir decisivamente para credibilizar as instituições. Nesse sentido ajudaria muito uma outra postura pública dos políticos e uma atitude mais crítica em relação a comportamentos que procuram contornar normas e procedimentos e também mais ponderada no tratamento das questões complexas que se colocam a um pequeno país, de população reduzida e com poucos recursos naturais. Infelizmente não é o que acontece.

Os últimos acontecimentos em que se tem um deputado da nação supostamente a agir como advogado a orquestrar a fuga para o exterior de alguém condenado nos tribunais cabo-verdianos são dos casos que põem em causa tanto a democracia com o Estado de Direito. Pelas declarações feitas pelo próprio à Inforpress fica-se a saber que entre os planos de fuga constavam a possibilidade de uma saída via marítima a ser facilitada com recurso à contratação de ex-fuzileiros. Impunha-se extrair a pessoa que se encontrava em regime de prisão domiciliária e conduzi-la à embarcação que a levaria para fora contornando de uma forma ou outra a vigilância policial.

A extracção acabou por ser de forma mais expedita através de um voo em direcção a Lisboa atravessando as fronteiras do país sem se deparar com obstáculo que normalmente uma pessoa em falta com a justiça deveria encontrar. A falha geral do sistema que se verificou é das situações que levam à profunda descredibilização de todas as instituições, porque foram afectados não só os sectores da justiça e da segurança que veem a sua eficácia questionada como também o próprio sistema político.

O envolvimento de um titular de um órgão de soberania que apresenta a sua participação na fuga à lei e à justiça como um acto político e o apoio que de imediato recebe da força política parlamentar a que pertence não deixa de levantar questões sérias quanto ao nível de adesão de certos sectores políticos à ordem constitucional vigente. A chamada causa da “não justiça” que agora o presidente da UCID veio proclamar como sendo também a causa do seu partido sempre se configurou um ataque ao sistema judicial do país sob a capa de acusações feitas a alguns juízes.

Inquéritos do Ministério Público e do Conselho Superior da Magistratura não encontraram indícios que corroborassem as denúncias feitas e até agora não se conseguiu levar avante o julgamento do autor das mesmas, onde eventuais provas poderiam ser apresentadas, devido a expedientes diversos. Actualmente o obstáctulo é a imunidade parlamentar. Seria de esperar que a condição de deputado levasse a maior contenção nos discursos, mas como as intervenções na última reunião plenária e os últimos acontecimentos mostram, em vez de se trabalhar para melhorar o sistema democrático e o Estado de Direito, age-se para desacreditá-lo completamente. E já não é só uma pessoa a protagonizar a causa, mas também um partido político com assento parlamentar.

Hoje todas as crianças de tanto ver filmes do Homem-Aranha conhecem bem a célebre frase de que “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”. Quem pretende não a conhecer são alguns políticos e dirigentes públicos que se vêem hoje com grandes poderes e rejubilam com os privilégios associados, mas não se mostram tão dispostos a assumir as responsabilidades que resultam do exercício dos cargos. Em vez de servir o interesse público, servem-se dos cargos e ressentem-se com qualquer tentativa de os levar a prestar contas por algo que corra menos bem. A verdade é que a democracia não pode funcionar sem assunção de responsabilidade. Muita descrença na democracia provém do que os cidadãos veem como fuga sistemática à responsabilidade num quadro em que a política é cada vez mais espectáculo e protagonismo individual. Há que quebrar este padrão de comportamento para que a democracia crie resiliência e continue a consolidar-se não obstante as investidas dos seus descontentes e inimigos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1022 de 30 de Junho de 2021.

segunda-feira, junho 28, 2021

Não se deixar apanhar pelo surreal

 O insólito aconteceu na sexta-feira passada, dia 18 de Junho, na Ilha do Sal. A CVA tinha anunciado com fanfarra a retoma da sua actividade com um voo Sal/Lisboa/Sal depois de um ano de paralisia devido à pandemia da Covid-19.

O voo atrasou-se várias horas e acabou por não se realizar, supostamente por causa de um braço de ferro entre a CVA e a ASA. As partes abstiveram-se de apresentar razões para o impasse e com o desembarque dos passageiros, para espanto de todos, ficou-se a saber que a CVA no seu voo inaugural de retoma iria levar 4 passageiros a Lisboa.

O surreal da situação não terminou aí. No domingo, o Primeiro-ministro numa entrevista à TCV quanto ao futuro da CVA começou por dizer que “está sobre a mesa uma discussão que iremos fazer já na próxima semana” para logo acrescentar, “mas com a decisão já quase tomada” de iniciar um processo de reverter a participação dos islandeses na empresa. Marcou-se uma conferência de imprensa no dia seguinte para um posicionamento do governo sobre o assunto com a presença do vice-primeiro-ministro e do ministro do turismo e transportes, mas foi cancelada sem qualquer explicação. No mesmo dia o PM confirmou a decisão do governo em reaver os 51% da CVA e, depois de um encontro com o presidente angolano João Lourenço, avançou logo que a relação entre os dois países no sector dos transportes pode ser reforçada e que existindo uma parceria nos transportes aéreos inter-ilhas, a concessão por seis meses assinada com a empresa angolana BestFly, “há possibilidades de estabelecer boas parcerias nos transportes aéreos internacionais e também no sector marítimo”.

Não deixa de ser espantoso o processo de tomada de decisão em matéria de governação e também a rapidez com que se encontram “soluções” para sectores comprovadamente complexos como o é dos transportes aéreos num país arquipélago como Cabo Verde. O acumular de dívidas e de outros prejuízos não parece ser suficiente travão para que de forma ponderada se encontre um caminho seguro para um sector tão essencial. Salta-se de uma solução para outra sem muita preocupação com os custos do passado das sucessivas reestruturações, nem com os custos do presente nas ineficiências criadas e oportunidades perdidas e nem com os custos futuros das alternativas entretanto encontradas para suprir serviços essenciais inter-ilhas e na ligação do país com o exterior. A questão recente à volta da Binter e dos voos domésticos foi elucidativa a esse respeito. Num editorial deste jornal de 18 Novembro de 2020 e a propósito da inactividade da CVA em tempos e pandemia e da teimosia em manter os aviões com leasing activo estacionados na Florida fez-se um apelo para “parar de cavar” para não se afundar mais no proverbial poço com os seus inerentes riscos fiscal e político. A tentação nestas e noutras situações similares não é, porém, de parar de cavar, mas sim de mudar apenas de lugar ou simplesmente de direcção sem que realmente se saia do poço.

Desde o último trimestre de 2019 que a CVA com as suas operações de hub entrou em dificuldades. Segundo o relatório de contas do quarto trimestre de 2019 do grupo Icelandair, tais dificuldades só poderiam ser superadas com um forte financiamento vindo não se sabe de onde, considerando que a parceria estratégica não incluía uma componente financeira. A parte islandesa contava com a comparticipação do Estado de Cabo Verde, enquanto este procurava libertar-se das responsabilidades com a venda de todas as acções na sua posse. O primeiro trimestre de 2020, segundo o relatório de contas da Icelandair, também não foi melhor. A partir de 19 de Março veio a pandemia da Covid-19 com a paralisação do tráfego aéreo em quase todo o mundo e particularmente nos mercados em que a CVA podia pretender operar. Talvez tivesse sido o momento para se dar um outro destino à parceria invocando algum tipo de “force majeure”. Preferiu-se ficar pelo teatro de se ter uma companhia de aviação sem voos, mas com aviões – supõe-se em regime de leasing – estacionados na Florida.

Na Assembleia Nacional ouviram-se ao longo de meses seguidos várias vozes a perguntar por que os aviões não estavam em Cabo Verde. A questão óbvia deveria ser porquê acumular custos com leasing de aviões quando o mercado da aviação praticamente não existe e uma eventual recuperação terá provavelmente características completamente diferentes. Com a proximidade das eleições, primeiro as autárquicas, em Outubro, e depois as legislativas, em Abril, o risco político que sempre esteve associado às operações da TACV tornou-se maior, retirando espaço de manobra na abordagem dos problemas da empresa. Mais difícil se tornou tomar decisões para resolver a situação e mais histriónico se tornou o discurso a perguntar pelo paradeiro dos aviões. O surreal disso tudo atingiu o seu ponto máximo em meados de Abril quando finalmente chegou um dos Boeing 757 ficando de seguida estacionado no aeroporto sem passageiros e sem voos programados. Quando na sexta-feira passada procurou simular uma retoma tudo se esboroou à volta – a realidade da companhia ficou exposta a todos e o governo sentiu-se forçado a agir.

O Primeiro-ministro, questionado se teria sido um erro a escolha de parceiros, foi peremptório em dizer que não. A culpa de alguma coisa ter corrido mal é atribuída à pandemia da Covid-19. Aparentemente está-se mais uma vez perante mais um caso em que os custos das opções tomadas não são assumidos, erros não são reconhecidos e improvisam-se soluções desde que se acautele os fluxos financeiros necessários para o país continuar a funcionar. Décadas de dependência externa tendem a provocar desfocagem da realidade das coisas, perdendo-se no processo a relação entre custo e benefício, investimento e retorno e meios utilizados e resultados obtidos. Parece às vezes que se trata de um gigantesco “Ponzi scheme” ou “jogo da bolha” em que o que interessa fundamentalmente é ter sempre novos entrantes para retroalimentar o sistema. Ineficiências, vulnerabilidades e desigualdades que vão-se acumulando e a sustentabilidade a prazo que não se pode garantir, não parece que atraiam atenção suficiente.

Cortar com este estado de coisas é fundamental particularmente agora que é visível para todos o impacto terrível que a pandemia está a ter em todos os domínios da vida das pessoas e também na economia, condicionando em boa medida o futuro do país. A captação de recursos financeiros de forma directa ou com reestruturação da dívida externa por si só não vai resolver o problema. Há necessidade de uma mudança de atitude que entre outros aspectos importantes se traduza na exigência de mais accountability (prestação de contas) aos governantes, ponha enfase na necessidade de auto-responsabilidade e fomente mais solidariedade para com os outros. Só com uma nova atitude é que se pode esperar que recursos que eventualmente forem disponibilizados não serão utilizados como no passado obtendo resultados limitados e insustentáveis em termos de rendimentos das pessoas e na diminuição das vulnerabilidades que hoje todos dizem reconhecer e querer combater. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1021 de 23 de Junho de 2021.

segunda-feira, junho 21, 2021

Pluralismo reforça estabilidade

 Foi aprovada esta segunda-feira a moção de confiança ao Governo após a apreciação do seu programa. Finalmente depois das eleições de 18 de Abril, há quase dois meses atrás, vai-se ter um governo legitimado para mais um mandato de cinco anos e em pleno uso das suas competências constitucionais.

Já se fazia tarde, considerando os extraordinários desafios postos pela pandemia da covid-19 e pela crise económica e social que a acompanha. A demora, sentida como excessiva nesta situação em particular, deverá ser um lembrete para no momento próprio em sede de revisão constitucional se adequar os prazos que marcam o processo de transição de uma legislatura para outra e a transferência de poder para um novo governo. De qualquer forma já se tem governo e se espera que a maioria absoluta obtida em Abril garanta a estabilidade política que o país precisa nestes tempos calamitosos e que, supõe-se, terá sido um dos grandes determinantes do voto nas eleições.

Estranhamente, considerando o resultado eleitoral obtido, constatou-se que os dias que antecederam a aprovação da moção de confiança foram rodeados de alguma tensão. Em princípio não devia haver nenhuma, mas a aparente existência de fracturas internas expostas tanto em processos eleitorais como em relatos na imprensa citando fontes do grupo parlamentar deixou antever que poderia aparecer problemas. As dúvidas, porém, dissiparam-se rapidamente logo no início da sessão parlamentar com as declarações da UCID. Mesmo sem ainda ter feito a apreciação do programa do governo, dispôs-se logo em aprovar a moção de confiança. O enunciar de algumas reivindicações por parte da UCID seguidas imediatamente da disponibilidade do governo em dar uma resposta positiva deixou claro para todos que previamente as duas forças políticas tinham acordado em garantir a maioria necessária para a aprovação da moção de confiança.

No fim do dia tudo ficou claro na votação da moção com 42 votos a favor (38 do MpD e 4 da UCID) e 30 abstenções do PAICV. Pela primeira vez na história parlamentar cabo-verdiana uma outra força política que não a maioria votava uma moção de confiança do governo. Assim é porque no parlamento cada partido tem uma plataforma eleitoral contendo a sua perspectiva de governação e ocupa o número de lugares de deputados correspondentes aos votos recebidos. Ou seja, no parlamento há uma configuração plural recebida das urnas que convém manter pelo respeito pelos eleitores e para o bem da democracia e da persecução do interesse geral pela via do exercício do contraditório. Não faz sentido que no momento seguinte um partido dê o seu voto de confiança ao projecto de governação de outro.

Situação diferente seria se das eleições resultasse a possibilidade de governos minoritários ou governos de coligação. Até agora não se verificou tal situação e por isso não houve necessidade de acordos partidários de coligação pré-eleitoral, ou pós-eleitoral, ou mesmo do tipo da chamada “geringonça” portuguesa. A acontecer, porém, os acordos devem ser transparentes e claros, envolvendo, quando se trata de coligações, para além das convergências programáticas, a participação no governo.

O que, contudo, se passou na passada segunda-feira, não é claro. Depois da apresentação do programa do governo pelo Primeiro-Ministro, a UCID, pela voz não do seu presidente, mas de um deputado independente, veio declarar ainda no início do debate o seu sentido de voto favorável ao governo e prosseguiu entremeando a sua intervenção com reivindicações que depois veio-se a constatar, tiveram acolhimento da parte do governo. Aparentemente o jogo político ali patente tinha o objectivo de, à partida, declarar garantido o voto da aprovação da moção de confiança. Com isso provavelmente queria-se esvaziar qualquer ideia de que o governo podia não ter maioria suficiente para passar a moção.

O MpD ganhou com maioria absoluta e não devia haver razões para que a vitória não se traduzisse numa maioria parlamentar coesa. É verdade que na sequência do processo de eleição da direcção do grupo parlamentar e dos membros da mesa da assembleia nacional terão ficado mágoas ou surgido sinais de alguma fractura. Mas certamente que não seriam nada de tão profundo que não pudesse ser ultrapassado, considerando o forte engajamento de todos na recente campanha eleitoral. Pode-se compreender que não se quisesse correr o risco de se ver o governo cair por falta da maioria necessária para aprovar a moção de confiança e a solução encontrada foi recorrer à UCID. O problema é que ao não resolver o problema internamente e servir-se de uma solução do exterior num momento importante, mas pontual, não elimina a questão de fundo e cria outros talvez mais difíceis de resolver.

Dá-se um sinal de fraqueza, porque está-se a dizer que afinal a maioria absoluta não é segura e cria-se uma dependência da UCID num momento algo difícil para esse partido porquanto não conseguiu nas últimas duas eleições atingir os grandes objectivos de conquistar a câmara municipal de S. Vicente, eleger deputados nas outras ilhas e ter dimensão exigida para constituir um grupo parlamentar. O país quer estabilidade política e isso não é garantido com uma espécie de “geringonça” não assumida em particular nos seus custos. Quem deve garantir estabilidade é quem recebeu o voto maioritário para isso e tem a responsabilidade de tudo fazer para restaurar a coesão interna no seu grupo e assegurá-la ao longo de toda a legislatura. Não é via coligações informais que se baixa a crispação política, mas fundamentalmente com disposição para o diálogo, com a aderência aos factos e com capacidade de chegar a compromissos a partir de um entendimento de base em que todos procuram o interesse do país e ninguém é mais patriótico do que o outro. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1020 de 16 de Junho de 2021.

segunda-feira, junho 14, 2021

Plano credível para construir o futuro

 

A pandemia da Covid-19 poderá estar a aproximar-se do seu término. Em alguns países já se respira ares de normalidade e se fazem planos de regresso ao trabalho fora de casa, de viagens ao estrangeiro e de participação em actividades culturais, desportivas e outras que atraem multidões.

Está-se, porém, longe de dar como garantido o regresso ao que era habitual. A vacinação ainda é muito desigual num mundo altamente conectado que deixa todos expostos a surtos repentinos em qualquer ponto do globo. Também a enorme exposição de pessoas ao coronavírus abre o caminho para o aparecimento de mutações que além de se revelarem mais transmissíveis e eventualmente mais letais permitem ao vírus contornar as vacinas pondo em causa o esforço de imunização das pessoas. E ainda não é de se desprezar o número considerável dos que duvidam e se opõem às vacinas e com essa atitude criam e mantêm um espaço onde o vírus pode circular, mutar e, de um momento para outro, saltar para a população.

Apesar das incertezas que se mantêm e a realidade de se poder vir a enfrentar novas vagas de covid-19 acompanhadas de recuos no progresso em direcção à normalidade, não se pode deixar de pensar no futuro e em tentar resolver os graves problemas criados pela crise pandémica levando à perda de emprego e à perda de rendimento para muita gente em todos os países do mundo. Contudo, agir não significará simplesmente retomar o fio do que antes se fazia. Aliás, nem é fazer o mesmo, nem se pode esperar que tudo será resgatável ou até mesmo que as actividades possíveis possam ser retomadas em pleno no imediato. Compreender isso é fundamental, por um lado, para temperar as expectativas de regresso rápido aos níveis de crescimento anteriores e, por outro, para utilizar os recursos existentes com eficiência e eficácia mais apuradas para minimizar o impacto da crise nas pessoas e na economia e preparar o futuro.

Transformações importantes aconteceram nas relações comerciais e na forma como os países vêem a globalização. Rivalidades hegemónicas assumidas, em particular, entre os Estados Unidos e a China e derivas nacionalistas na forma de “políticas industriais” adoptadas por vários países e blocos económicos já indiciam que mudanças a nível global afectando a produção e a circulação de bens e serviços e a movimentação de capitais poderão ter caracter permanente. Navegar nesse novo oceano de interesses não será fácil, em particular, quando comportar a exigência de escolher o lado a seguir, seja em matéria de tecnologia, seja de opções de investimento e até de vacinas. Mas nem tudo será mau.

Do lado positivo para os países em desenvolvimento o fim da pandemia traz no seu seio a possibilidade de que taxas elevadas de crescimento nos países ricos tenham forte impacto em particular nas exportações e no turismo, dinamizando o resto da economia. Também o facto de a Covid-19 ser global obriga a que para a vencer definitivamente se tenha que, a par de acções de vacinação, ajudar os países mais vulneráveis na retoma da economia para poderem efectivamente combater a pandemia. Nesse sentido e, de acordo com Martin Wolf no Financial Times, é grande a perspectiva de que um volume enorme de recursos financeiros em forma de doações, empréstimos concessionais e perdão da dívida externa poderá constituir um autêntico “maná para os pobres”. Acrescenta ainda que tal sorte grande só será proveitosa se for para apoiar os governos que têm planos credíveis para recuperar o terreno de desenvolvimento perdido e que não se tente comprar reformas via condicionalidade.

O vice-primeiro-ministro Olavo Correia, na semana passada, colocou em cinco mil milhões de euros o financiamento que Cabo Verde precisa investir nos próximos dez anos. Para o ministro “sem uma solução para a dívida pública actual, dificilmente [Cabo Verde] conseguirá fazer investimentos em sectores da saúde, água, saneamento, qualificação urbana e do fomento empresarial”. Para Cabo Verde, como para os outros países endividados e vulneráveis, o problema é se, conseguido o perdão ou a reestruturação da dívida, o financiamento que daí resulta irá para implementação dos tais planos credíveis referidos por Martin Wolf. Aliás, trata-se de um verdadeiro dilema com que a generalidade dos países se deparam – sejam eles ricos da União Europeia nas vésperas de aceder a biliões em ajuda pós-pandémica ou pobres à espera de perdão da dívida – sempre que estão em vias de receber investimentos massivos destinados ao desenvolvimento.

Não há garantia que os recursos serão usados para construir o futuro ou se serão destinados para o “mais do mesmo”, desperdiçados em projectos de estimação ou dissipados em devaneios ideológicos e jogadas de poder. Da qualidade do debate democrático a começar pela apreciação do programa do governo no parlamento e posterior discussão e aprovação do orçamento do Estado irá depender muito do que de produtivo e eficaz se vier a fazer dos financiamentos conseguidos. Objectivos, estratégias e prioridades terão que ser discutidos e assumidos. Não se pode é ficar pela proverbial “lista de lavandaria” de medidas ou listagem sem encadeamento, sem um tempo próprio para implementação e sem uma orientação para resultados.

De se evitar também é a condicionalidade de que fala Martin Wolf. Segundo este economista comprar reformas com condicionalidade quase nunca funciona. O problema é que quando instalado o hábito de se deixar condicionar pelas prioridades “du jour” dos doadores para poder obter financiamento reformas não acontecem, recursos são desperdiçados, vulnerabilidades persistem e o futuro fica comprometido. Permitir que isso aconteça outra vez não é aceitável. Depois da pandemia e com as incertezas no horizonte seria de uma irresponsabilidade sem paralelo. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1019 de 9 de Junho de 2021.

segunda-feira, junho 07, 2021

Rotina democrática e eficácia governativa

 

Depois da presidência tumultuosa de Donald Trump a expectativa geral em relação ao novo presidente Joseph Biden é que a sua governação seria “boring”, ou seja, um misto de enfadonho e aborrecido. A acontecer, para muitos, curiosamente, seria uma boa notícia.

Já era geral o cansaço com uma presidência feita de sobressaltos, euforias e fantasias. Almejava-se um presidente que, como disse Leon Panetta, um ex-secretário de defesa americano, priorizasse o que é importante e não o que no momento obceca as redes sociais, que evitasse brigas sem fim e sem saída com opositores e que fosse capaz de focar nas consequências da acção imediata e de também antever os problemas distantes que só podem ser enfrentados com planeamento de hoje. O sucesso conseguido nos últimos meses pela administração Biden no controlo da pandemia da covid-19, na vacinação em massa e na implementação de medidas de apoio à economia e de garantia do rendimento das pessoas veio confirmar as vantagens do regresso ao que é previsível e até ás vezes “chato”.

Muitos noutros países com líderes que preferem fazer campanha em vez de governar, transformar actos de governação em espectáculo e distorcer a realidade para garantir a sobrevivência política certamente que gostariam que lhes acontecesse o mesmo. O retomar de uma certa normalidade seria para eles bem-vinda, a começar pelo que o presidente Jorge Carlos Fonseca no seu discurso na tomada de posse do novo governo chamou de rotina democrática, ou seja “nada mudou, há procedimentos que se repetem, gestos que parecem cristalizar-se, e, citando Bobbio, de transformar a democracia em costume, a única forma de ela adquirir o estatuto de irreversibilidade. A experiência de derivas iliberais e até anti-democráticas de contestação das eleições e ataques ao sistema judicial e aos órgãos de comunicação social confirma isso. Mostra como o não cumprimento das normas democráticas, o conluio para contornar os procedimentos existentes e a ausência de debate crítico deixam as sociedades completamente expostas. Em momentos de crise profunda como a de actual pandemia é a própria sobrevivência que pode ser posta em causa. As situações extremas vividas nos Estados Unidos, no Brasil e na Índia são ilustrativas a esse respeito.

A tentação de fugir dessa rotina democrática é grande. Nos últimos anos tem-se tornado maior sob a pressão populista e a tendência de alguns partidos tradicionais em se apropriarem de algum discurso anti-sistema. Quando não é discurso são as práticas que fugindo às normas e procedimentos existentes põem em causa as instituições democráticas e alimentam o descrédito em relação ao papel dos partidos políticos. Tem acontecido com demasiado frequência em várias democracias com consequências mais ou menos graves. Em Cabo Verde e nas últimas semanas viu-se o que aconteceu à volta da sessão constitutiva da assembleia nacional. O papel do deputado saiu desvalorizado aos olhos do público, a liderança partidária passou uma imagem de fragilidade e a estabilidade futura do governo tornou-se motivo de preocupação na sequência de pronunciamentos de deputados da maioria.

Tudo porque não se seguiu com rigor esperado todo o processo que seguindo o regimento e os estatutos dos deputados deve presidir à constituição dos grupos parlamentares com a sua direcção própria seguida da indicação dos membros da mesa e votação na plenária da assembleia nacional. Com isso baralhou-se por completo a relação entre os órgãos partidários e os deputados, enfraquecendo uns e outros e pondo em risco a coesão interna. Espera-se é que haja um esforço de ultrapassar o mau passo inicial e compreender que fazer política é mais influenciação e compromisso do que imposição. O eleitorado votou estabilidade governativa e é da responsabilidade de todos, com o respeito pelas regras democráticas e pela dignidade dos cargos garantir que assim seja, em particular nestes tempos de pandemia e de crise económica e social.

Também o processo de indigitação e formação do novo governo não ficou isento de pequenas tensões, perplexidade perante certas iniciativas e falta de clarificação quanto ao estatuto do governo. Não devia ser assim considerando que se trata do VIII governo constitucional e a rotina democrática já devia ter sido estabelecida. A pressa em chamar os partidos para se pronunciarem sobre a indigitação do primeiro-ministro quando ainda nem os resultados oficiais das eleições eram conhecidos deixaram muita gente perplexa. O desejo inexplicável de se ter o elenco governamental o mais depressa possível, quando se sabe que o governo em exercício só é demitido no final da legislatura e essa data é constitucionalmente o vigésimo após a publicação dos resultados eleitorais, tornou as coisas ainda mais surrealistas. Fez lembrar o desorientamento verificado em 2016 na sessão constitutiva da assembleia nacional com a suspensão dos futuros membros do governo e naturalmente que leva as pessoas a perguntar porquê repetir o episódio.

Agora com o novo governo empossado, mas ainda por ser apreciado o seu programa de governo no parlamento e aprovada a moção de confiança, assiste-se a um nível de protagonismo dos membros do governo que não seria de esperar nesta fase. Constitucionalmente o governo está em gestão, ou seja, limitado à prática de actos estritamente necessários à gestão corrente dos negócios públicos e à administração ordinária. Éestranho, por exemplo, ver ministros com pastas recém-criadas a solicitar encontros ao presidente da república e a apresentar políticas do sector, quando nem o programa do governo foi apresentado ao parlamento que é o órgão de soberania perante o qual o primeiro-ministro e os seus ministros são politicamente responsável.

A predisposição em não cumprir com a rotina democrática e em não deixar que a democracia se transforme num costume não traz qualquer benefício ao país. Pelo contrário, exacerba os protagonismos pessoais, faz da política um espectáculo, rouba tempo para se estudar as questões, não se fazem as devidas ponderações das questões e nem se encontram e se comunicam as melhores soluções. De passagem baralha a relação entre órgãos de soberania com consequências tanto na imagem pública de uns e outros – há quem pareça mais forte e quem se mostre fraco ou submisso – como na própria eficácia do sistema de separação de poderes, fundamental para o funcionamento na democracia.

Para alguns, como aconteceu noutros países, pode parecer uma governação criativa, inovadora e propiciadora de momentos apaixonantes e por isso atractiva. A história recente mostra como tudo isso é enganador e como a eficácia governativa é seriamente posta em causa quando não se cumprem as normas e se passa por cima dos procedimentos existentes. Mas não é só eficácia que se perde. Com essa desconstrução da cultura democrática e das suas instituições também se compromete a liberdade, a confiança e a solidariedade de que tanto se necessita nos tempos actuais.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1018 de 2 de Junho de 2021.

segunda-feira, maio 31, 2021

Começo atribulado

 

A nova legislatura inaugurada a 19 de Maio não começou bem. Contrariamente ao que aconteceu nas legislaturas que se seguiram ao 13 de Janeiro de 1991 a eleição da mesa da assembleia nacional não se revelou pacífica e as candidaturas não foram tidas como consensuais.

Todo o processo, desde a selecção de candidatos até a apresentação ao conjunto dos deputados eleitos foi motivo de disputa interna no partido maioritário, constituiu oportunidade para jogadas das forças políticas da oposição e deixou antever fracturas na maioria parlamentar que a persistirem poderão pôr em perigo a estabilidade governativa. Nas eleições passadas as propostas de presidente da assembleia e dos outros membros da mesa foram aceites por larga maioria. Nesta legislatura rejeitou-se publicamente uma candidatura a presidente e houve votação maioritária contra um dos vice-presidentes. Declarações posteriores de algumas personalidades e posicionamentos acalorados nas redes sociais deixaram entender, parafraseando Hamlet, que “há algo de podre no reino da Dinamarca”.

Alguma coisa falhou e o mais provável é que tenha sido na relação entre o partido e os deputados. O sistema eleitoral como é construído dá aos partidos exclusividade na apresentação de candidatos a deputados que depois são submetidos ao voto popular. Pode-se, pois, dizer que o deputado eleito tem um mandato duplo do partido e do povo. O regimento da AN e os estatutos dos deputados regulam nos diferentes actos do parlamento o exercício com nuances desse duplo mandato. A eleição da mesa da assembleia nacional e em particular do seu presidente (PAN) é um dos actos em que de certa forma se modera a parte partidária. Para a eleição do PAN as propostas vêm de grupos de quinze a vinte deputados e o voto é secreto. Quer dizer que do partido só pode vir um esforço de influenciação dos seus deputados, mas não de imposição. Fazer diferente cria tensões nos grupos parlamentares com eventuais implicações na estabilidade governativa, desvaloriza o deputado e dá razão aos críticos da democracia representativa que nela só vêem uma partidocracia.

É um facto hoje reconhecido que as democracias sejam elas novas, menos novas ou mais maduras vivem uma crise e que ela é fundamentalmente uma crise de representação. Muitos cidadãos não se revêem nas instituições, outros acusam os partidos políticos de servir os seus próprios interesses em detrimento do interesse geral e há ainda quem diga que o sistema político é manipulado para servir uns poucos bem posicionados em certos círculos políticos, financeiros e empresariais. As tentações populistas com origem tanto na esquerda como na direita têm aí a sua fonte de alimentação. Serve-lhes de combustível a indignação, levada às vezes ao paroxismo por alguns, que advém da crença que o cidadão comum não está devidamente representado nas instituições, da convicção que a condução dos assuntos públicos peca por falta de transparência e da percepção que a corrupção reina em muitos negócios do Estado. Também aí encontram motivação para os ataques desferidos contra o parlamento, deputados e partidos políticos e para as críticas à democracia representativa, ao Estado de Direito e ao funcionamento dos tribunais.

A pressão sobre as democracias é maior quando são os próprios partidos políticos acusados de serem os pilares da partidocracia a usar os mesmos argumentos anti-partido e anti-parlamento dos populistas na vã tentativa de conquistar eleitorado e de afirmar lideranças autocráticas no seu seio. Aumenta ainda mais quando dão sinais de confirmar os privilégios dos partidos no controlo das instituições retirando ostensivamente aos eleitos qualquer sinal de autonomia e procurando punir quem ousa cumprir as suas funções com toda a legitimidade que o mandato lhe confere. Ninguém ganha com isso, porque extremando posições o deputado sempre conseguirá manter o seu mandato, mas fora do seu grupo parlamentar e a governação com sustentabilidade precária pode viver momentos de instabilidade. Nestas circunstâncias a hipótese de eventual bloqueio cria tentações complicadas. Em vez de levar a mais diálogo entre as forças políticas pode ser um convite para polarizar ainda mais a situação e até criar tensões com eventual desfecho em novas eleições. Quando, como nos tempos de hoje, se vive uma crise pandémica que exige um grande esforço para ser ultrapassada, abrir caminho para instabilidade e tornar tentador o não diálogo é o pior que pode acontecer.

A apresentação do governo desta legislatura no dia 20 de Maio poderia pela novidade do acto e suas implicações em termos de políticas, de estruturas governamentais inovadoras e de novos protagonismos ter ajudado a ultrapassar o começo atribulado que tinha sido a sessão constitutiva da Assembleia Nacional. Infelizmente tudo parece ter ficado pela constatação de que se estava perante um governo “gordo”, o maior de sempre, quando no passado sempre se tinha prometido governos enxutos. Sem uma explicação da parte do primeiro-ministro quanto às razões – talvez de coordenação sectorial ou de eficácia governativa por que optou por estruturar o seu governo com vice-primeiro-ministro e ministros de Estado e aumentou o número de secretários de Estado – a discussão ficou pela questão primária do tamanho do governo. Mais uma vez a perspectiva populista das prioridades nas despesas do Estado encontrou espaço para dominar toda a discussão pública excluindo todas as outras.

De facto, para certos sectores de opinião e críticos da democracia não é o uso eficiente dos recursos e meios disponíveis e a procura da eficácia na implementação das políticas e na prestação de serviços do Estado os principais objectivos a ser atingidos com a governação do país. O foco segundo eles deve ser posto em denunciar o quanto dos recursos públicos estão a ser consumidos pela “classe política”. Muito do sentimento populista é anti-política e anti-parlamentar. Vêem a prática democrática incluindo debates, deliberações, negociações e o firmar de compromissos como exercícios custosos que causam desperdício de tempo e dinheiro. Cai na armadilha quem aparentemente lhes dá razão apresentando governos pequenos com sacrifício na eficácia da governação.

É o que aconteceu em 2016 quando, contra a realidade de uma administração pública ineficiente, partidarizada e pouco profissional, um novo governo avançou com uma equipa sem dimensão suficiente para, no mais curto prazo, adequar a máquina administrativa herdada às novas orientações e políticas. Foi-lhes reforçado então o argumento e agora cobram o “governo gordo” e procuram nas nomeações razões pessoais e políticas para a outorga de privilégios. Nem as exigências impostas pela pandemia que em toda a parte tem levado à expansão dos serviços prestados pelo Estado parecem predispor as pessoas a uma outra abordagem mais construtiva na busca de eficácia estatal e menos centrada em quem fica com a maior fatia dos recursos públicos. É pena que seja assim, porque a maioria que há um mês votou na estabilidade governativa não quis atrapalhações nas instituições nem abriu a temporada para cada um cuidar de si próprio. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1017 de 26 de Maio de 2021.