A tendência para o extremar de posições sobre as mais diferentes matérias tem vindo a tornar-se uma característica cada vez mais pronunciada das democracias. As consequências vêem-se designadamente na crescente polarização política, na crispação política permanente, nas guerras culturais que sobem de tom e na ascensão da extrema-direita a par de uma esquerda mais focada em questões identitárias. Transversais à tradicional divisão entre direita e esquerda, percebem-se ainda movimentos que alguns caracterizam de quase niilistas personalizados por figuras aproximadamente do tipo de Donald Trump, narcisísticas, sem preocupação com a verdade e viradas para atacar as instituições e a ordem constitucional vigente. Apesar de conhecidos os estragos causados nas instituições e as marcas deixadas na sociedade, não se notam sinais de reversão do fenómeno.
Em Cabo Verde também já se fazem sentir esses males que atacam as democracias e as ameaçam de morte lenta. Falta serenidade e ponderação necessária na abordagem dos problemas que se colocam ao país. Todos os pretextos são bons para alimentar a crispação. A ferocidade com que se trocam acusações, no caso presente, as questões à volta dos relatórios de inspecção aos fundos do turismo e do ambiente, às vezes até dá a impressão que o edifício democrático está a ir abaixo por falta de transparência, não prestação de contas e corrupção. Para calibrar nem mesmo parece servir a percepção dos outros como a expressa na última reunião do GAO que aponta problemas, mas vê progressos ou então experimentações inovadoras como o acordo firmado ontem, dia 20 de Junho, com Portugal para o financiamento do fundo climático e ambiental na base da reconversão da dívida.
Pelo contrário, nota-se a tendência para alargar a conflitualidade política arrastando para o centro do confronto político dos partidos que é o parlamento não só a problemática das câmaras municipais, que já é indevidamente muito presente nos trabalhos parlamentares, como também o próprio presidente da república. A proposta de chamar à comissão parlamentar de inquérito a pessoa do presidente da república enquanto ex-primeiro-ministro além de absolutamente inédita não tem provavelmente qualquer enquadramento constitucional (artigo 147º, n.2 alínea b). Não sendo o PR responsável perante o parlamento, nem parte na governação do país, só se cria mais ruído político no sistema contemplando a hipótese de ele se apresentar nas vestes de um ex-PM numa CPI. Aliás, o mesmo se aplica à ideia de ouvir um ex-primeiro-ministro de Portugal em sede do referido inquérito parlamentar.
No mesmo sentido vão as tentativas de envolver o PR na contestação do acórdão do Tribunal Constitucional que decidiu pela constitucionalidade da resolução da Assembleia Nacional que autorizou a detenção de um deputado para ser submetido a interrogatório judicial. Sabe-se perfeitamente que o princípio da separação dos poderes não permite interferência dos outros órgãos de soberania nas decisões dos tribunais. Também é sabido que os acórdãos do TC têm força obrigatória geral. Perante isso, mudanças no quadro jurídico-constitucional e legal só podem ser feitas com leis da Assembleia Nacional em sede de revisão constitucional ou através de legislação ordinária. Fazer uma petição ao PR para convocar uma sessão extraordinária do parlamento com o objectivo de discutir os efeitos do acórdão não parece ser a melhor via, principalmente se é para perguntar se a Constituição se mantém no topo das leis do país e se já se pode alterar os limites materiais de revisão constitucional.
A haver uma petição o mais normal é que fosse dirigida à Assembleia Nacional para propor aos deputados e aos grupos parlamentares que legislassem para clarificar normas e procedimentos respeitantes à imunidade dos deputados e, se for necessário, proceder a uma revisão constitucional. E não pedir um debate que mais parece uma reapreciação da decisão do TC que supostamente teria introduzido normas costumeiras supraconstitucionais e alterado os limites materiais da revisão. Até porque se for uma reapreciação, de acordo com o regime jurídico do exercício do direito de petição, deverá ser liminarmente indeferida. Imagine-se o clamor que virá a seguir se for o PR a indeferir ou se o parlamento convocado extraordinariamente considerar que não é da sua competência reapreciar decisões dos tribunais. A dúvida que fica é se não é precisamente isso o que se pretende provocar.
Há já algum tempo que se tornaram visíveis as tentativas de transformar o descontentamento justificado com a morosidade da justiça em hostilidade dirigida ao poder judicial e em contestação da integridade dos juízes e procuradores. É um fenómeno que acompanhado de descredibilização do parlamento já vinha acontecendo em outras democracias e normalmente acabava por desembocar em derivas iliberais que sacrificaram a liberdade de expressão e de imprensa, o pluralismo e a independência dos tribunais. É um perigo que Cabo Verde como qualquer outra democracia não está isento até porque os sinais são evidentes nas tensões de há dois anos atrás com o foco nos tribunais judiciais e com ataques a magistrados. Há um ano atrás o foco virou para o parlamento com a questão da imunidade do deputado e agora quer-se envolver o PR num imbróglio que tem no seu centro uma decisão do Tribunal Constitucional.
Quando certos desafios são colocados às democracias a história recente é clara relativamente à importância de se garantir a independência dos tribunais. É só relembrar o papel que o poder judicial teve recentemente no Brasil, mas também nos Estados Unidos e no Reino Unido para pôr termo a aventuras iliberais que colocaram seriamente em perigo as instituições democráticas. Se esses países não poderiam dar-se ao luxo de perder a estabilidade devido a fragilidades induzidas nas instituições, Cabo Verde muito menos. É preciso conter a tentação de correr para os extremos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1125 de 21 de Junho de 2023.