sábado, junho 24, 2023

Evitar correr para os extremos

 A tendência para o extremar de posições sobre as mais diferentes matérias tem vindo a tornar-se uma característica cada vez mais pronunciada das democracias. As consequências vêem-se designadamente na crescente polarização política, na crispação política permanente, nas guerras culturais que sobem de tom e na ascensão da extrema-direita a par de uma esquerda mais focada em questões identitárias. Transversais à tradicional divisão entre direita e esquerda, percebem-se ainda movimentos que alguns caracterizam de quase niilistas personalizados por figuras aproximadamente do tipo de Donald Trump, narcisísticas, sem preocupação com a verdade e viradas para atacar as instituições e a ordem constitucional vigente. Apesar de conhecidos os estragos causados nas instituições e as marcas deixadas na sociedade, não se notam sinais de reversão do fenómeno.

Em Cabo Verde também já se fazem sentir esses males que atacam as democracias e as ameaçam de morte lenta. Falta serenidade e ponderação necessária na abordagem dos problemas que se colocam ao país. Todos os pretextos são bons para alimentar a crispação. A ferocidade com que se trocam acusações, no caso presente, as questões à volta dos relatórios de inspecção aos fundos do turismo e do ambiente, às vezes até dá a impressão que o edifício democrático está a ir abaixo por falta de transparência, não prestação de contas e corrupção. Para calibrar nem mesmo parece servir a percepção dos outros como a expressa na última reunião do GAO que aponta problemas, mas vê progressos ou então experimentações inovadoras como o acordo firmado ontem, dia 20 de Junho, com Portugal para o financiamento do fundo climático e ambiental na base da reconversão da dívida.

Pelo contrário, nota-se a tendência para alargar a conflitualidade política arrastando para o centro do confronto político dos partidos que é o parlamento não só a problemática das câmaras municipais, que já é indevidamente muito presente nos trabalhos parlamentares, como também o próprio presidente da república. A proposta de chamar à comissão parlamentar de inquérito a pessoa do presidente da república enquanto ex-primeiro-ministro além de absolutamente inédita não tem provavelmente qualquer enquadramento constitucional (artigo 147º, n.2 alínea b). Não sendo o PR responsável perante o parlamento, nem parte na governação do país, só se cria mais ruído político no sistema contemplando a hipótese de ele se apresentar nas vestes de um ex-PM numa CPI. Aliás, o mesmo se aplica à ideia de ouvir um ex-primeiro-ministro de Portugal em sede do referido inquérito parlamentar.

No mesmo sentido vão as tentativas de envolver o PR na contestação do acórdão do Tribunal Constitucional que decidiu pela constitucionalidade da resolução da Assembleia Nacional que autorizou a detenção de um deputado para ser submetido a interrogatório judicial. Sabe-se perfeitamente que o princípio da separação dos poderes não permite interferência dos outros órgãos de soberania nas decisões dos tribunais. Também é sabido que os acórdãos do TC têm força obrigatória geral. Perante isso, mudanças no quadro jurídico-constitucional e legal só podem ser feitas com leis da Assembleia Nacional em sede de revisão constitucional ou através de legislação ordinária. Fazer uma petição ao PR para convocar uma sessão extraordinária do parlamento com o objectivo de discutir os efeitos do acórdão não parece ser a melhor via, principalmente se é para perguntar se a Constituição se mantém no topo das leis do país e se já se pode alterar os limites materiais de revisão constitucional.

A haver uma petição o mais normal é que fosse dirigida à Assembleia Nacional para propor aos deputados e aos grupos parlamentares que legislassem para clarificar normas e procedimentos respeitantes à imunidade dos deputados e, se for necessário, proceder a uma revisão constitucional. E não pedir um debate que mais parece uma reapreciação da decisão do TC que supostamente teria introduzido normas costumeiras supraconstitucionais e alterado os limites materiais da revisão. Até porque se for uma reapreciação, de acordo com o regime jurídico do exercício do direito de petição, deverá ser liminarmente indeferida. Imagine-se o clamor que virá a seguir se for o PR a indeferir ou se o parlamento convocado extraordinariamente considerar que não é da sua competência reapreciar decisões dos tribunais. A dúvida que fica é se não é precisamente isso o que se pretende provocar.

Há já algum tempo que se tornaram visíveis as tentativas de transformar o descontentamento justificado com a morosidade da justiça em hostilidade dirigida ao poder judicial e em contestação da integridade dos juízes e procuradores. É um fenómeno que acompanhado de descredibilização do parlamento já vinha acontecendo em outras democracias e normalmente acabava por desembocar em derivas iliberais que sacrificaram a liberdade de expressão e de imprensa, o pluralismo e a independência dos tribunais. É um perigo que Cabo Verde como qualquer outra democracia não está isento até porque os sinais são evidentes nas tensões de há dois anos atrás com o foco nos tribunais judiciais e com ataques a magistrados. Há um ano atrás o foco virou para o parlamento com a questão da imunidade do deputado e agora quer-se envolver o PR num imbróglio que tem no seu centro uma decisão do Tribunal Constitucional.

Quando certos desafios são colocados às democracias a história recente é clara relativamente à importância de se garantir a independência dos tribunais. É só relembrar o papel que o poder judicial teve recentemente no Brasil, mas também nos Estados Unidos e no Reino Unido para pôr termo a aventuras iliberais que colocaram seriamente em perigo as instituições democráticas. Se esses países não poderiam dar-se ao luxo de perder a estabilidade devido a fragilidades induzidas nas instituições, Cabo Verde muito menos. É preciso conter a tentação de correr para os extremos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1125 de 21 de Junho de 2023.

segunda-feira, junho 19, 2023

Campanha permanente desqualifica a democracia

 

Recorrentemente na comunicação social aparecem relatos de irregularidades e decisões tomadas no financiamento de projectos e obras com base em relatórios diversos feitos por entidades públicas de inspecção ou de fiscalização. Nas últimas duas semanas vieram à baila dados ligados à investigação de financiamentos do Fundo do Ambiente e do Fundo do Turismo verificados nos últimos anos. Imediatamente toda a esfera pública, incluindo a comunicação social e as redes sociais, ficou rubra de denúncias e contra denúncias dos actores políticos e de múltiplas manifestações de indignação de certos sectores da sociedade. Em momentos outros no passado-recente também relatos similares tinham envolvido fundos, municípios e associações comunitárias seguidos sempre do aumento de crispação política no país.

Tais relatos são alimentados por fontes de informação que, por razões várias, resolveram levar ao conhecimento público elementos da inspecção antes de oficialmente terem sido homologados. Razões essas que poderão incluir a percepção que há demora exagerada em se dar continuidade ao processo de inspecção desencadeado, ou que há bloqueio em se avançar com o mesmo. Também não é de se pôr de lado a vontade de denunciar por dever moral em casos que indiciem corrupção ou mesmo algum interesse subjectivo de natureza política. Em qualquer das circunstâncias o efeito das denúncias cresce proporcionalmente com a renitência das autoridades em reconhecer o processo em andamento e com o facto de não se ter agido com a celeridade necessária para melhorar as práticas e conter os estragos.

No caso presente, mais uma vez viram-se as consequências da falta de acção ou da falta de assunção pelo governo das suas responsabilidades em tempo próprio. Acusações mútuas são feitas em sucessivas conferências de imprensa e o tempo parlamentar é dominado no período das questões gerais ou de antes da ordem do dia por denúncias e suspeições que vão buscar ao passado que todos já tiveram a oportunidade de protagonizar considerando que já houve duas alternâncias nos trinta e dois anos de democracia. Infelizmente, ninguém fica realmente esclarecido quanto às irregularidades denunciadas e às entidades envolvidas e, pior ainda, não se fica em posição de avançar com reformas que previnem que situações similares não venham a acontecer no futuro. Aliás, na essência, o que se denuncia hoje faz parte de um déjà vu. Aconteceu antes e se não for alterado o que lhes é subjacente irá repetir-se no futuro.

Cabo Verde não é um país que apresenta altos níveis de corrupção. Entre 180 países situa-se na posição 35ª no ano 2022. Alguma corrupção que poderá ter é confirmada pela irregularidades e desvios que de tempos em tempos são trazidas a público por denúncias como as referidas ou por fuga de informação. A questão que se coloca é como combatê-la tendo em conta que se revela persistente em certas circunstâncias e formatos de intervenção pública. O facto de se ter tomado como sinónimo de governar e fazer política é estar em campanha eleitoral permanente criou uma necessidade premente de todas as forças políticas de manter e expandir o eleitorado favorável. E num país de precariedade e vulnerabilidades várias esse esforço, não poucas vezes, redunda na criação de relações de clientela e na exploração de dependências mais ou menos alimentadas por irregularidades e desvios.

A dificuldade em acabar com esse estado de coisas é porque se trata do modus operandi preferido. Condenaçâo dessas artimanhas surge apenas quando alguém ficou exposto e foi apanhado e é dirigida mais para desgastar o adversário do que para promover boas práticas e uma ética superior. Naturalmente que os alvos principais são quem no momento governa o país ou está à frente das câmaras municipais porque têm mais meios à disposição. Para as forças políticas que estão na oposição, outras táticas, designadamente a cooptação de organizações sociais e comunitárias, estão disponíveis na mesma linha de clientelismo e de reprodução de dependências. Por isso é que, na sequência das denúncias, ficam pelas farpas trocadas e pelos ganhos políticos directos ou os resultantes do desgaste do adversário.

Mesmo no parlamento, onde há mecanismos de fiscalização para esclarecer a Nação sobre o funcionamento dos fundos públicos, não se aproveita a oportunidade para convocar as comissões especializadas competentes e fazer audição dos gestores dos fundos e de outras partes envolventes nos projectos financiados, nem para se escrutinar as práticas existentes e questionar os ministros da tutela. Prefere-se ficar pelos exercícios de arremesso político em que se transformou muito daquilo que devia ser trabalho parlamentar construtivo, suportado por um contraditório salutar.

Deixa-se predominar a lógica da campanha permanente que faz dos deputados activistas que, ao invés de se dirigirem à plenária da Assembleia Nacional enquanto representantes da nação, como é próprio do exercício do mandato, se dizem portadores de recados e falam directamente para “os que estão lá em casa”. E sem esquecer dos que optam por estar na “plataforma”, como se fosse admissível participar nos trabalhos parlamentares fora do plenário e até votar quando o voto deve ser sempre presencial porque só assim é que o presidente e a mesa da assembleia nacional podem garantir que o deputado está a exercer livremente o seu mandato.

A democracia prevê mandatos eleitos e uma maioria para governar com vista ao interesse geral por tempo determinado ao fim do qual se presta contas ao eleitorado. Transformar o tempo de mandato em campanha eleitoral permanente e usar recursos públicos para garantir um eleitorado leal diminui extraordinariamente a qualidade da democracia. Vê-se pelos repetidos casos de denúncias de irregularidades e desvios de fundos nas sucessivas legislaturas que é ao nível local e comunitário que mais as tropelias acontecem.

A fragilidade das instituições de controlo, a tendência para o caciquismo local e a cumplicidade das autoridades centrais conjugam-se para viabilizar a campanha permanente. Mas a sua manutenção nas mais variadas formas depende da cumplicidade do governo em manter parados casos em fase avançada de investigação. Também conta com a omissão de outros poderes, a começar pelo parlamento, que prescinde de competência própria em sede de fiscalização do governo e da administração do Estado para pôr cobro a práticas que põem em causa a prossecução do interesse geral.

Accountability significa que é-se responsável a todo o tempo perante todo o povo e não em relação a uma parte que pode vir a ser potencial eleitorado. As normas e os procedimentos em todo o funcionamento do Estado e da sua administração central e local existem para garantir que assim seja. Com a instituição da campanha eleitoral permanente essa garantia é uma pura quimera. Até se conseguir ultrapassar este “consenso” quanto ao que significa governar e fazer política vai-se ter que aguentar com as denúncias periódicas, a gritaria que se segue e a paz morna que perdura até à erupção seguinte.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1124 de 14 de Junho de 2023.

segunda-feira, junho 12, 2023

Arrancou a nova temporada política

 É perceptível para todos que o tempo político mudou. A postura e a acção diária política das forças políticas das câmaras municipais, dos grupos parlamentares e do governo já prenunciam o início do novo ciclo político.

As próximas eleições autárquicas deverão realizar-se daqui a 15 meses no último trimestre de 2024, mas as preparações para a pré-campanha já estão em andamento. Ainda não se passaram dois anos que terminou o último ciclo eleitoral com as eleições presidenciais de Outubro de 2021 e o país já se mobiliza para embates político-partidários focados na alternância nos órgãos autárquicos e no governo.

O problema com esse antecipar da luta pelo poder é a tendência geral para se extremar posições e diminuir as possibilidades de negociações, compromissos e acordos. Com isso fica difícil chegar a consensos sobre questões fundamentais e fazer as reformas urgentes de adaptação ao mundo precisamente quando este está a sofrer convulsões geopolíticas de grande envergadura postas em marcha pela invasão da Ucrânia. E, em simultâneo, alterações profundas, movidas pela rivalidade estratégica entre os Estados Unidos da América e a China, notam-se no mapa das relações económicas no mundo, à medida que países assumem novos papéis e novas vocações e se reconstituem cadeias de valor e redes de abastecimento ao nível global.

Já se tinham desperdiçados os anos de crises múltiplas (secas sucessivas, covid-19, a alta inflação sobre o preço dos combustíveis e dos produtos alimentares e a guerra na Ucrânia) para se repensar o país e criar vontade necessária para o posicionar no mundo actual que claramente se anunciava mais complexo e exigente. A acalmia pós-ciclo eleitoral 2020/21 não serviu para ensaiar uma mudança de atitude porque continuou-se fiel ao que se convencionou como fazer política em Cabo Verde que é de manter o país em permanente campanha eleitoral. A polarização que daí resulta, acompanhada da crispação constante entre as forças políticas e entre as câmaras municipais e o governo não deixa muito espaço para a sociedade participar sem que seja tolhida na sua autonomia e os indivíduos intervirem sem serem rotulados e identificados como partes na luta política em curso.

O resultado é que só se vê e se ouve falar é de visitas incessantes de governantes, de deputados, de presidentes de câmara e dirigentes locais e nacionais dos partidos políticos por todos os pontos do país. Também se concentra nas queixas de abandono, de discriminação e não cumprimento de promessas eleitorais. Não faltam ainda acusações e suspeições de corrupção dirigidas a instituições e personalidades ao nível local e governamental e manifestações de frustração e mesmo de ressentimento vindas das populações e das organizações da sociedade civil. O nível de ruído na esfera pública, amplificado pela comunicação social e cada vez mais ainda pelas redes sociais, acaba por inviabilizar qualquer possibilidade de diálogo que se podia ter em relação ao futuro na actual conjuntura mundial em que mudanças estruturais se anunciam, algumas facilidades desapareceram, desafios vários se colocam, incertezas são muitas e não faltam imprevistos.

Os temas são recorrentes, mas como se pode constatar nas últimas semanas, actualmente incidem sobre os transportes marítimos, aéreos, segurança e criminalidade e o sistema de saúde. Seja qual for a matéria da qual se supõe que num dado momento se pode extrair maior capital político ou servir de arma de arremesso, a verdade é que não há debate sério. Há mais pose e postura política e também oportunidade de expor o adversário político. Não há o aprofundar de questões, desde logo para não afrontar interesses instalados, corporativos ou outros, e em muitos casos nota-se uma espécie de cumplicidade cruzada em não trazer elementos que podiam clarificar a situação e até mesmo resolvê-la, ou ultrapassá-la. O problema é que muitas vezes pôr as coisas na devida perspectiva e sem receio de revelar todas as suas componentes retiraria razões para se manter a crispação que afinal todos têm interesse em perpetuar.

Assiste-se repetidamente a confrontos que não acontecem porque se está a bater por uma ideia ou por um objectivo. É mais para saber quem está de um lado e quem pode ser apontado como adversário ou até como inimigo. A necessidade de afirmação ideológica e/ou identitária e de expor o outro sobrepõe-se a um eventual interesse em resolver uma questão ou mesmo de se criar uma oportunidade para a demonstração de convergência numa questão vital para a comunidade ou para o país. Chegado a esse ponto, a política deixa de ser a forma privilegiada para se identificar, equacionar e encontrar as melhores soluções para os problemas da sociedade para se tornar um simples jogo de conquistar o poder de um grupo.

Segue-se naturalmente a descredibilização da política, das instituições democráticas e dos partidos que cada vez mais são tidos como organizações onde o ideal de servir o país conjugado com uma visão e um projecto político foi substituído pela ambição pura de poder. O espectáculo das lutas intrapartidárias ao longo das quais se nota crescentemente a importância das demonstrações de submissão ao líder em detrimento de quaisquer outros critérios, designadamente de competência, é desanimador. Se uma organização partidária não consegue reunir no seu seio os melhores para pensar o país, para desenvolver estratégias de intervenção e para agir com competência política na sua implementação, um impasse no desenvolvimento pode instalar-se. Mesmo que haja possibilidade de alternância no governo, pode não existir alternativas políticas reais capazes de corrigir erros e mudar o rumo do país.

A pobreza do debate político a que se assiste todos os dias e em que se substituem argumentos válidos, esclarecedores e construtivos por propaganda e ataques virulentos dirigidos aos adversários indicia bem o estado dos partidos que nos seus congressos e convenções já não discutem ideias \e estratégias. Ficam simplesmente pela proclamação do Chefe. Nestas circunstâncias abrir a “temporada” para o novo ciclo eleitoral significa apenas que o processo para cada um se colocar em melhor posição no novo ciclo vai acelerar. Entretanto, qualquer discussão séria sobre o futuro do país será adiada.

Num livro recentemente publicado “Fim dos tempos: elites, contra-elites e o caminho para a desintegração política” o antropólogo Peter Turchin diz que historicamente de entre todas as causas de crise política grave nas sociedades humanas destaca-se em primeiro lugar a que conjuga o empobrecimento das populações com o número reduzido de posições de elite em relação ao número dos que aspiram a chegar ao poder. A luta virulenta que se instala para a conquista desses lugares pode ser devastadora. Para a evitar há que honesta e realisticamente pensar e servir o país de modo a criar riqueza que permita reverter o empobrecimento e criar oportunidades outras, que não exclusivamente cargos políticos, para os que aspiram a notabilizar-se na sociedade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1123 de 7 de Junho de 2023.

segunda-feira, junho 05, 2023

Sintomas de um mesmo mal social

 

A questão energética é um dos mais importantes desafios que se colocam a Cabo Verde neste momento. E é assim tanto ao nível da sua sustentabilidade como também da criação de condições para se proceder à transição energética. Uma mudança que se impõe hoje a todos os países por variadíssimas razões entre as quais o potencial catastrófico das alterações climáticas em curso. Em Cabo Verde a transição para as energias renováveis já devia estar num estado muito mais avançado. Infelizmente não está. Tem um sector energético altamente deficitário, perdas horrendas por roubo de energia em particular na Praia e ineficiências outras por falta de investimentos designadamente na rede pública.

A condição de país arquipelágico, remoto e a sofrer durante séculos as agruras de um clima hostil e imprevisível devia ter sido incentivo suficiente para uma actuação estratégica dos sucessivos governos no sentido de uso criativo das tecnologias existentes e desenvolvimento das melhores práticas de eficiência energética e de mobilização, produção e utilização da água. De facto, há muito que deviam ter sido feitas as apostas certas para responder aos desafios que Cabo Verde sempre enfrentou e que tendencialmente são similares aos que muitos outros países passaram a enfrentar actualmente.

Se essa tivesse sido a via escolhida, hoje o conhecimento e as competências adquiridos e os serviços criados podiam constituir vantagem no intercâmbio com os outros países, com ganhos para Cabo Verde. Não se estaria a debater com a possibilidade de não se puder fazer com sustentabilidade a transição energética em caso de não se resolver os casos de perdas, de roubo de energia e de actuação criminal de forma organizada no sector, como foi sublinhado em dois momentos na comunicação social pelo ministro da indústria, comércio e energia e pelo PCA da Electra.

Devia pesar sobre a necessidade de políticas consistentes e de uma visão mais larga no sector um factor de urgência que é a questão do custo dos factores energia e água na actividade económica e do seu impacto na competitividade do país. O facto de se pagar preços de energia dos mais altos do mundo não foi, porém, suficiente incentivo para se focar na resolução de um problema central da economia que levado a bom porto implicaria a exploração de recursos em energias renováveis abundantes no país. Deixou-se, pelo contrário, que ineficiências aumentassem progressivamente e atingissem valores de cerca de 114 Gigawatts-hora em perdas de energia correspondente a 24,6% da produção nacional. Para isso terá contribuído a falta de um plano de investimento consistente na produção e na rede de transporte e distribuição acompanhado de dificuldades de cobrança e acções deliberadas de roubo de energia para venda e para consumo.

A complicar as coisas veio uma outra constatação. Ao reconhecer que as perdas maiores verificam-se na Praia e na ilha de Santiago (34,5%) e que os prejuízos nos resultados globais da empresa situam-se na Electra Sul, não obstante as várias equipas de fiscalização organizadas para tentar combater os problemas de roubo e fraude, acabou-se por chamar a atenção para situação social grave que se vive na ilha e na capital. De facto, há por um lado um problema da autoridade do Estado em que mesmo com leis punitivas não se consegue impedir nem dissuadir o roubo de energia. Por outro lado, como é reconhecido pela Electra, não se rouba energia só por falta de rendimento ou por falha da empresa em estabelecer ligações, mas também como acto deliberado de pessoas com rendimento e estatuto social e de unidades produtivas com grande consumo de energia.

Como diz o PCA da Electra “é um crime cada vez mais organizado, as pessoas estão a revender energia roubada, é um crime que lesa não só a ELECTRA, mas toda a economia. Temos operadores económicos, padarias, hotéis, empresas de frio, temos a classe média em Palmarejo”. Aparentemente nesses casos os mecanismos de pressão e dissuasão social não parecem funcionar. Não se nota qualquer sanção para quem assim se comporta, sobrecarregando todos os consumidores com tarifas mais altas por incorporarem as perdas na rede pública. Mas quando se conjuga essa constatação com a percepção de ausência de autoridade, traduzida numa presença menos perceptível da polícia, no aumento de actividades não licenciadas e mesmo ilegais ou clandestinas na frente de todos, começa a indiciar uma degenerescência social e cívica que acaba por manifestar-se de várias formas.

Entre outras consequências, afecta as relações interpessoais ao minar a confiança, potencia o uso de violência na resolução dos problemas, incentiva a criação de pequenas comunidades ou gangs onde particularmente os mais novos procuram obter um sentimento de pertença e abre caminho para delinquência aberta e violenta. A presença de ilícitos perigosos como drogas “pesadas” e o acesso a armas de fogo podem tornar explosiva um ambiente desses. Os vários surtos de crime no país e em particular na capital e os exemplos de criminalidade violenta que já se estão a espalhar também para outras ilhas deviam ser vistos como sinais de alerta para uma situação social que só tende a piorar, afectando tudo e todos. O que se pode já notar é que tem o potencial de tirar tranquilidade às pessoas, mexer com a economia, afastar turismo e investidores, aumentar custos em particular com a segurança e os serviços de saúde e afectar os jovens no seu crescimento e desempenho escolar.

Por isso mesmo ninguém devia procurar alhear-se do que está a passar. A extrema violência nos assaltos e o roubo descarado de energia denunciado pela Electra são sintomas claros do mesmo mal social que grassa pelo país. É uma realidade que interpela a todos e que para ser ultrapassada deverá exigir a mobilização da sociedade e um esforço concertado para se manter o país unido à volta de um sistema de valores consensual, inspirado na Constituição da República, e de uma visão compreensiva do futuro que potencie os recursos do país e as oportunidades emergentes. Em causa está o próprio futuro do país e a sua capacidade de vencer perante a adversidade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1122 de 31 de Maio de 2023.

segunda-feira, maio 29, 2023

Renovar a esperança

 O governo escolheu fazer um balanço de dois anos de governação neste que é o seu segundo mandato na liderança do país. A data coincide grosso modo com a declaração do fim da emergência mundial criada pela covid-19 e com a recuperação da economia para os níveis de 2019. O Primeiro-ministro na sua alocução ao país fez questão de proclamar que “Salvamos vidas. Protegemos empregos, rendimentos e empresas. Investimos na recuperação e na retoma económica”. O tom quase propagandístico das mensagens, com enfase na auto-glorificação pelo conseguido, acaba por ser uma espada de dois gumes.

Se por um lado promete vantagem ao governo numa perspectiva de ganho político-eleitoral, por outro abre caminho para reivindicações de vários sectores da sociedade e em particular as populações mais vulneráveis que também querem ser compensados pelos sacrifícios, rendimentos e oportunidades perdidas. As críticas da oposição, em resposta, além de disputar o mérito e a qualidade das soluções encontradas pelo governo, procuram canalizar as reivindicações das populações, amplificá-las e exigir que sejam cumpridas imediatamente. E justificam dizendo que se o país está a crescer em média 12% ao ano, como proclama o governo, então que os efeitos desse crescimento sejam sentidos por todos de forma equitativa.

É mais um debate em que uns e outros não se ouvem e não há acordo praticamente sobre nada. O resultado é que dificilmente se vai manter a perspectiva real do que foram realmente estes anos de crises sucessivas e interligadas e o quanto é que se está longe de as ultrapassar. Tão cedo não se vai ter noção dos estragos permanentes causados ao nível pessoal e familiar, em termos designadamente de rendimento nas escolas, carreiras profissionais e saúde mental, mas também social ao nível da coesão nas comunidades, postura cívica e sentido de pertença. As erupções de violência, o uso de armas de fogo a atracção dos gangs sobre os mais jovens continuarão a pôr a sociedade em sobressalto sem que se chegue a acordo sobre como lidar com esses fenómenos.

Enquanto o discurso público for dominado pelo tipo de irrealismo quanto aos objectivos e aos meios que se vê, por exemplo, na abordagem de problemas como a produção agrícola, os transportes aéreos e marítimos e a luta contra a pobreza dificilmente vai-se deixar de cometer os mesmíssimos erros do passado. Para o governo, que faz o balanço com triunfalismos, positividade e good vibes, e para oposição, que sobe a fasquia nas reivindicações sem preocupação com os custos, tudo aparentemente se resume a ir empurrando o país com a barriga. A diferença numa avaliação futura é que as frustrações serão maiores porque as expectativas foram elevadas a outro patamar, os custos maiores porque, com sucessivos fracassos ou ineficiências várias, as dívidas acumularam-se, as instituições e a própria democracia fragilizaram-se porque se mostram incapazes de inflectir o processo de perda de credibilidade.

Não é de hoje que se procura apostar na agricultura com mobilização de água e agronegócios, ou se procura abrir voos da TACV para se ligar à diáspora e desenvolver um hub aéreo e se implementam programas de luta contra a pobreza. Fez-se no passado várias vezes e os resultados são de todos conhecidos em termos de empobrecimento progressivo do meio rural acompanhado de perda de população, aumento da dívida pública e crescimento da pobreza extrema nas cinturas urbanas. Agora promete-se fazer basicamente o mesmo num futuro próximo com água dessalinizada, com mais aviões e barcos, com empreendedorismo massificado e pensão social mais abrangente e espera-se que os resultados sejam diferentes. Caso para perguntar se a definição de insanidade atribuída a Albert Einstein se vai aplicar.

Winston Churchill num momento difícil da II Guerra Mundial teria dito que nunca se deve deixar uma boa crise ser desperdiçada. Infelizmente não foi só uma crise, mas várias crises que Cabo Verde deixou desperdiçar. O que já vinha acontecendo desde de 2017 com as secas sucessivas juntou-se em 2020 uma crise pandémica sem precedentes que, pelo enorme impacto global e local que teve, podia ser a grande oportunidade para o país repensar as suas opções, rever a sua forma de fazer política e mudar a atitude. Passou ao lado.

A generosidade do resto do mundo que se seguiu na forma de ajuda financeira, vacinas e equipamentos, ao tranquilizar os espíritos, retirou motivação para mudar. Em acréscimo, ao reforçar o papel já tradicional do Estado na reciclagem da ajuda externa, com o seu efeito concomitante de reproduzir o espírito de dependência que favorece esquemas de poder em detrimento da autonomia e iniciativa da sociedade e das pessoas, acabou por inibir ainda mais a vontade de fazer diferente. Não estranha que depois que a policrise se complicou com o aumento da inflação, a invasão da Ucrânia e o aumento brusco dos preços de alimentos e combustíveis ainda não se notam na sociedade indícios de debate sobre a nova realidade global. Um dia, porém, o país terá que repensar o seu futuro num mundo que claramente está em mudanças profundas tanto em termos geopolíticos como económicos.

Os foguetes lançados no balanço dos dois anos e as críticas azedas da oposição acontecem num ambiente que ainda se espera pela bonança prometida nos projectos de mudança climática, transição energética, digitalização e economia azul para que, no essencial, tudo se mantenha igual. E como até agora aconteceu, ficam adiados os esforços no sentido de revigorar o espírito de solidariedade que o país tanto precisa para diminuir a crispação política, aumentar a confiança interpessoal e reforçar a credibilidade das instituições.

Um bom passo em frente seria deixar de lado o optimismo, a positividade e good vibes de quem simplesmente acredita que as coisas vão dar certo, crença essa que pode resvalar para o irrealismo. Em troca, cultivar a esperança que parte da convicção de que com os pés bem ficados na terra se pode agir de forma estratégica e solidária para assegurar que se vai atingir os objectivos desejados com ganhos para todos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1121 de 24 de Maio de 2023.

segunda-feira, maio 22, 2023

Polarização que dificulta o avanço do país

 

Polarização política, confrontos partidários estéreis e falta de consenso em questões-chave da vida dos países têm sido cada vez mais vistos como sinais de grave crise da generalidade das democracias.

O debate político, crescentemente sequestrado por questões mais próximas das identidades partidárias do que da substância das políticas públicas, ajuda a vincar a ideia que “tudo é política” e que com tudo se pode fazer política. No ambiente assim criado em que sentimentos tendem a prevalecer sobre os factos dificilmente se consegue esquivar do rótulo de pertencer a uma facção ou outra. A grande habilidade é sempre encontrar temas que alimentam essa polarização reforçando o sentido de pertença de uns e identificando outros como adversários ou inimigos.

Claro que não se pode manter uma situação dessas sem que haja custos para a qualidade da vida política e para o nível de participação da sociedade civil na discussão das grandes questões do país. Há ainda um outro custo importante que são as instituições que ficam resistentes a reformas e cativas de interesses que se revêem e se legitimam nas questões fracturantes. De qualquer forma, o que se nota é que, a par da polarização que empobrece a vida política e enfraquece a vontade de encontrar soluções para um presente e futuro diferentes, há o frequente retorno a questiúnculas que sempre que invocadas reforçam a marca ideológica de uns em contraposição a outros.

Um exemplo recente desses retornos que amiudamente acontecem na democracia cabo-verdiana é a controvérsia à volta da iniciativa diplomática do governo junto de Marrocos. Pelas reacções nos media e nas redes sociais percebe-se que foi uma oportunidade para vincar credenciais de “libertadores”, supostos defensores do princípio de autodeterminação e independência, versus os “outros” “ligados a outros interesses”. Era a polarização a trabalhar com o seu motor de sempre. Pareceu não interessar que o governo anterior procurou normalizar a relação com Marrocos, a exemplo da maioria dos países africanos e da própria União Africana (2007),  deixando congelada a questão do Saara Ocidental. Também se esquece que em matéria do direito dos povos há quem não pode ser exemplo porque quando devia ser a vez de Cabo Verde de exercer o seu direito à autodeterminação, no pós-25 de Abril de 1974, a palavra de ordem era “Não ao referendo, independência já, mas com o PAIGC”.

No mesmo sentido convergem outros momentos como os que se seguiram à discussão e aprovação do SOFA, o acórdão favorável do Tribunal Constitucional e a sua ratificação pelo presidente da república. Deixa-se no ar que interesses do país poderão não estar a ser servidos pelo governo acompanhado de um quê de antiamericanismo que cola bem com roupagens de anti-imperialismo do passado. Mais uma vez a tentação do reforço das credenciais ideológicas se sobrepõe. Não se vê qualquer contradição com posições de governo anterior que autorizou exercícios da NATO em Junho/Julho de 2006, celebrou SOFAs com a NATO e a Espanha, recebeu ex-prisioneiros do Guantánamo em 2010 e assinou acordo de parceria militar com os Estados Unidos em 2015.

Aparentemente nessa investida não é de exigir coerência governativa. Veja-se, por exemplo, a politica de reaproximação da África e a recomendação recente de estimular o desenvolvimento da cooperação com os países vizinhos. Depois de quase cinquenta anos após a independência não se vê alterações na estrutura das relações comerciais que poderiam sugerir que houve progresso significativo e nem se vê sinais que poderá haver avanços no futuro próximo. A opção pela África, porém, continua não como parte de uma estratégia governativa de desenvolvimento, mas para se manter uma identidade ideológica que dá fundamento à polarização política mesmo que os interesses do país não sejam realmente bem servidos no processo.

Num outro sentido, a reafricanização dos espíritos que também sustenta a polarização encontrou, na suposta defesa do crioulo, um terreno propício para os autênticos e os resistentes se demarcarem dos outros eventualmente lusotropicalistas, macaronésios ou simplesmente duvidosos. A verdade é que todos os cabo-verdianos falam o crioulo e não há perigo de nenhuma criança deixar de aprender a sua língua materna. Não obstante isso, e o facto de ao mais nível do Estado os titulares dos órgãos de soberania se expressarem em crioulo, criou-se a ideia que ela é desprestigiada e secundarizada. O objectivo aí é claro de mobilizar paixões supostamente para a causa da oficialização quando já existe desde 1999 a directiva constitucional para se criar as condições para estar em paridade com o português, a começar pela padronização enquanto língua formal e escrita. Curiosamente nem um jornal se procurou criar para habituar as pessoas a ler em crioulo como acontece em Aruba e Curaçau.

Os custos da polarização que certos sectores se empenham em reproduzir acabam por atingir as instituições do país com consequências nem sempre visíveis ou previsíveis. No caso do projecto lei sobre a língua portuguesa, apresentado na Assembleia Nacional, viu-se um ministro e um instituto público a extravasar as suas competências num confronto com uma maioria de votos de deputados a favor mesmo que insuficiente para passar a lei. A efectiva estatização da cultura claramente reconhecida no preâmbulo do regime jurídico do património cultural, mas não assumidamente extirpada das competências da instituição, representa de facto o entrincheiramento da política de reafricanização dos espíritos. Uma política que vem do regime de Partido Único e que se mantém imperturbável na democracia na qual o Estado, constitucionalmente, está impedido de impor correntes estéticas, ideológicas e filosóficas ao país e aos cidadãos. Desse choque entre dois sistemas de valores vem muito da paixão, do ressentimento e da nostalgia que alimenta a polarização política e cultural que dificulta o avanço do país.

Há dias, e a propósito da tragédia na Serra de Malagueta em que morreram oito militares num acidente de viação, algumas vozes, algumas delas surpreendentes por que já tinham ocupado posições ministeriais no sector, fizeram-se ouvir a pedir um debate alargado sobre o papel das forças armadas, a necessidade do serviço militar obrigatório e as missões que deve ou pode desempenhar. Realmente há muito que isso devia ter sido feito. Em primeiro lugar porque sendo Cabo Verde um país arquipélago de 10 ilhas e ilhéus as suas forças militares deviam ser concebidas de forma a responderam às ameaças e emergências e desafios que se colocam a um país insular. Não foi o que aconteceu porque se quis que as forçar armadas reproduzissem uma cultura de uma luta de libertação em que nunca participou e tivesse como objectivo principal a segurança interna do regime.

Em consequência, mesmo no período democrático, a polarização política serviu para assegurar que reformas de fundo, mais consentâneas com a natureza dos constrangimentos e ameaças do país, não fossem levadas adiante. Muito menos qualquer debate na transformação das forças armadas que tirasse os comandantes dos seus pedestais e mexesse com as suas datas revolucionárias. Os custos estão à vista de todos, mas mesmo quando se propõe debate, da forma enviesada com que é colocada, fica no ar a ideia que, de facto, o que se quer manter é a tensão que permite que a polarização se perpetue. Ou seja, quer-se, parafraseando Giuseppe de Lampedusa, que se dê sinais de mudança para que tudo fique na mesma. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1120 de 17 de Maio de 2023.

segunda-feira, maio 15, 2023

Disputa de protagonismo

 

Em declarações à imprensa o presidente da república José Maria Neves disse que espera que, ao que chamou de “disputa de protagonismo” entre o presidente português Marcelo Rebelo de Sousa e o primeiro-ministro António Costa, não faça escola em Cabo Verde. Pelas declarações que fez a seguir, a propósito de fundos para apoiar jornalistas e órgãos de comunicação social na cobertura de visitas presidenciais e do governo, fica-se com forte impressão de que aqui também já há essa disputa.

Nota-se em matérias aparentemente menores discutidas na praça pública como recursos orçamentais alocados aos órgãos de soberania e a propósito de verbas para viagens, mas também nas políticas governativas que até foram foco das mensagens presidenciais dirigidas ao país. O tom não é muito diferente do que é usado noutros debates políticos no país em que as teclas tocadas são as usuais de discriminação, exclusão e vitimização.

Em Portugal, a disputa atingiu um ponto clarificador quando a sugestão pública do PR para o PM demitir um ministro foi também expressa e publicamente negada. Na sequência o PR acabou por não avançar com “a bomba atómica” da dissolução do parlamento que só se justificaria com um não normal funcionamento das instituições e, por outro lado, o país ficou a par da uma vontade mais firme e explícita do PM de pôr travão à ingerência presidencial em matérias da governação. Não obstante as promessas do PR em manter com rédea curta o governo, a verdade é que toda a ideia da magistratura de influência até agora exercida, provavelmente terá que ser reformulada. Há quem diga que praticamente acabou quando, por disputas de protagonismo, o que antes era dito, sugerido ou recusado no recato dos encontros do PR e do PM já não têm a mesma receptividade de ambas partes.

Diz-se muitas vezes que em sistemas de governo nos quais o presidente da república é eleito directamente por sufrágio universal, mas não governa e o governo que ele nomeia só é politicamente responsável perante o parlamento, a relação entre o PR e o PM é de geometria variável. A existência de uma maioria absoluta a apoiar o governo limita o poder de influenciação do PR enquanto governos minoritários e mesmo coligações mais ou menos frágeis abrem outras possibilidades de intervenção e protagonismo presidencial. A disputa em Portugal nos termos em que se verificou, aconteceu praticamente após um ano de governo maioritário depois de seis anos de governos minoritários. O mais normal é que mais tarde ou mais cedo houvesse um momento de choque seguido de reajuste.

Em Cabo Verde onde sempre houve governos maioritários seria de esperar que as bases da relação entre os dois órgãos de soberania já estivessem normalizadas. Na ausência de governos minoritários e sem os, quase livres, poderes de dissolução do parlamento e de demissão do governo que o PR português detém, o mais normal é que em Cabo Verde se tivesse refinado essa magistratura discreta, mas eficaz que daria para melhores relações entre os dois órgãos de soberania. Mesmo a coexistência de presidente da república e de governo oriundos de diferentes origens partidárias até agora não se tinha mostrado propício para tensões fora do ordinário. A disputa de protagonismo actual sai do padrão talvez porque equilíbrios foram percepcionados como tendo sido rompidos devido a sucessivas crises que afligiram o país e novas realidades políticas, económicas e sociais que se impuseram.

De facto, outras razões para além das normais tensões dos órgãos de soberania poderão estar a alimentar as disputas de protagonismo tendo em conta os seus efeitos nas confrontações eleitorais futuras. Em Portugal, a perspectiva da chamada bazuca financeira, ou seja, o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) permitiu ao presidente da república justificar mesmo no novo quadro de um governo maioritário um seguimento de perto das políticas da governação na base que é fundamental para o país aplicar bem os fundos comunitários. É convicção geral que do bom uso que se fizer dos investimentos do PRR dependerá a possibilidade de Portugal inflectir a actual tendência do país de continuar a ser ultrapassado pelos novos membros da União Europeia e criar as bases da prosperidade futura. Com o PR a predispor-se para garantir que isso será feito já joga um importante papel político para os sectores de opinião que consideram que o actual governo não é dado a reformas de fundo e é mais virado para políticas com foco principal em manter uma base social de apoio ao poder actual e ganhar eleições.

Em Cabo Verde, a disputa já não está tanto a traduzir visões diferentes do futuro do país, mas antes os interesses de sectores distintos de uma classe política que já toda ela parece ter assumido como estratégia de desenvolvimento algo que não se distingue muito da agenda das Nações Unidas e das organizações multilaterais. O mais normal seria que houvesse a maior tranquilidade na relação entre os dois órgãos de soberania considerando que o actual PR está num primeiro mandato e lida com um governo maioritário. As coisas mudam quando, em momentos cruciais como eleição da Mesa da Assembleia Nacional, aprovação do Programa do Governo e Orçamento do Estado, o governo sinaliza fragilidades na sua maioria parlamentar.

Perante isso, o PR envolve-se em contactos com os partidos para garantir estabilidade e aprovação de instrumentos fundamentais como o Orçamento do Estado (2021) e ganha um protagonismo inesperado. Mas, como foi primeiro-ministro durante quinze anos e deixou de o ser há pouco mais de seis anos, qualquer protagonismo crítico mais pronunciado, particularmente incindindo sobre políticas governativas, imediatamente são tomadas como críticas que só poderiam vir da oposição. Daí é um passo para o PR ser visto como chefe da oposição tanto pelo partido no governo como também pela própria oposição partidária que acaba por sincronizar as suas intervenções no parlamento e na comunicação social com os seus pronunciamentos.

A disputa de protagonismo não só vai fazer escola como já cá está e com tonalidades complicadas porque, ao se tomar o PR como chefe da oposição, esvazia-se no processo o papel central de árbitro e moderador do sistema político e perdem-se as vantagens que podiam advir de uma magistratura de influência exercida por uma presidência suprapartidária. Mais complicado fica o sistema político que já vem sofrendo das ineficiências criadas pelas disputas de protagonismo entre o governo e as câmaras municipais e que agora se vê juntar a disputa com o presidente da república.

Quando o país precisa focar para fazer face a sucessivas crises e sabe-se que existem riscos expressivos que podem travar a recuperação, como deixou bem claro a última missão do FMI, é fundamental que todos compreendam que o mandato que receberam nas eleições democráticas é para servir o povo e o país e não para se servirem. Ninguém quer continuar a assistir à exibição de egos e ao cortejo de vaidades em que muito da vida política no país se transformou. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1119 de 10 de Maio de 2023.

segunda-feira, maio 08, 2023

Pela liberdade de imprensa

 

Comemora-se, hoje, 3 de Maio, o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, uma data que deve focar a atenção de todos no que há de mais essencial para se garantir liberdade e democracia. Ter essa garantia significa que, como disse James Madison, “o povo não será privado ou abreviado de seu direito de falar ou publicar seus sentimentos” e que não será coarctada “a liberdade de criticar e se opor ao governo”, como bem lembrou George Orwell.

Também significa estar-se ciente, na linha de Albert Camus, que “a imprensa livre pode ser boa ou má, mas que sem liberdade não será outra coisa senão má” e que, por isso há que, a exemplo de Alexis de Tocqueville, “a amar por consideração aos males que ela evita muito mais do que pelo bem que faz”.

Cabo Verde actualmente na posição 36 entre 188 países no ranking (2022) dos Repórteres sem Fronteiras (RSF) é, segundo aquela organização, um país onde os profissionais do jornalismo podem exercer livremente, mas que a autocensura é generalizada. A contradição é explicada pela posição hegemónica dos órgãos do sector público no cômputo geral da comunicação social, pelo seu peso excessivo sobre o mercado publicitário e pelas vantagens que oferece na contratação de jornalistas. Acresce-se ainda “uma cultura de sigilo e as restrições do Estado no acesso a informações do interesse público.

O fenómeno da autocensura tem sido identificado pelos RFS ao longo de décadas e nos diferentes governos, não desaparecendo com a alternância dos partidos no poder. Provavelmente será mais complexo do que parece e poderá estar a revelar um fenómeno mais geral marcado pela fragilidade da sociedade civil, por uma cultura de dependência, pela falta pensamento crítico e autónomo e por uma relação com a verdade e a realidade dos factos baseada na conveniência do momento. Ou talvez traduza o medo colectivo reminiscente de um medo de outrora, mas que perdura, de, parafraseando John Kennedy, deixar o povo julgar a verdade e a falsidade em um mercado aberto de ideias, privilegiando pelo contrário narrativas ideológicas polarizantes da sociedade e promovendo tabus.

O ambiente de crispação não só política como institucional e cultural que daí resulta serve como forte inibidor da busca pela verdade que a liberdade de expressão, de informar e de imprensa devia proporcionar. Nos debates na esfera pública nota-se como as partes se quedam nas suas posições rígidas, ou como negam factos evidentes ou, de forma aparentemente contraditória, como às vezes são cúmplices na secundarização ou mesmo na ocultação de elementos que poderiam clarificar uma situação. Prefere-se eternizar o conflito colocando a identificação e lealdade partidária à frente do interesse público. E para preencher ou explicar o que não é dito, especula-se quanto aos interesses em jogo e insinua-se que há corrupção.

Não é de estranhar que os profissionais da comunicação social como, aliás, os servidores públicos, académicos e grupos de interesses empresariais, profissionais e outros vejam um tal ambiente quase como um campo minado que se deve atravessar com muito cuidado. Compreende-se assim por que a autocensura não acontece apenas entre os jornalistas e por que paralelamente o stock de cinismo na comunidade cresce e a confiança nas pessoas e nas instituições cai na mesma proporção. As declarações da presidente da Autoridade Reguladora para a Comunicação Social (ARC), que atribuiu a um “conflito que que opôs os órgãos e jornalistas ao poder judicial” a queda de Cabo Verde, em 2022, de 9 pontos no ranking da Liberdade de Imprensa dos Repórteres sem Fronteiras, podem ser interpretadas como um alerta contra esse estado de coisas.

A reacção do Procurador Geral da República (PGR) foi considerar inadmissível a posição da ARC, um órgão colegial eleito por uma maioria qualificada de dois terços dos deputados e que tem, como uma das suas competências constitucionalmente estabelecidas, garantir o direito à informação e à liberdade de imprensa. Alguma cortesia institucional deveria ser esperada na interacção entre os dois órgãos públicos. É verdade que ninguém está acima da Lei e que o Ministério Público deve ter todas as condições para investigar crimes e esclarecer situações que causam apreensão e angústia na opinião pública. Difícil fica porém compreender que da investigação de um caso de morte de um indivíduo, crivado de balas segundo o PGR numa entrevista à TCV no dia 2 de Fevereiro de 2022 num encontro com forças policiais, só terminada oito anos depois, se tenha concluído pelo arquivamento do processo por se ter encontrado “prova bastante” de legítima defesa enquanto jornalistas e órgãos de comunicação são constituídos arguidos por “desobediência qualificada” por terem trazido o caso à ribalta depois de tantos anos.

Casos de violência aparentemente desproporcional envolvendo polícias e cidadãos são motivo de preocupação em todo o mundo. O caso de George Floyd e de outros similares envolvendo inocentes, mas também alegados criminosos quando vêm a público, na maior parte das vezes por espectadores ou investigação jornalística, obrigam a resposta rápida das autoridades para tranquilizar a opinião pública e reforçar a confiança da população que a polícia procura sempre agir com sentido de proporcionalidade. Suspendem os policiais envolvidos, fazem inquéritos internos, pedem auditoria externa em certos casos, informam o público das conclusões e das medidas para melhorar práticas. Também há casos que vão para os tribunais e daí resultam absolvições, mas também condenações.

Não se pode é deixar arrastar situações do género por anos seguidos sem qualquer informação, sem sinais de medidas tomadas para mudar práticas e sem assunção de responsabilidade. Mostra que o Estado de Direito funciona sempre que vem a público situações que também causaram apreensão na opinião pública como foi o caso do polícia morto alegadamente pelo colega que já foi julgado, mas, de acordo com o Santiago Magazine, vai-se repetir o julgamento na primeira instância. Ter-se-ia, segundo o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, cometido um erro notório na análise das provas. É reconfortante ver o sistema a funcionar independentemente dos resultados.

Mas quando não funciona ou se mostra autista é fundamental que a comunicação social e seus profissionais sejam ousados e não se deixem amarrar pela autocensura, nem por receio de acções judiciais. Sabe-se que a Liberdade de expressão e de informação é a rainha das liberdades, mas não é absoluta. Aos tribunais cabe fazer caso a caso a devida ponderação dos vários direitos. A liberdade de imprensa é prejudicada sempre que há a percepção de que se está a agir enviesadamente em relação ao mensageiro quando, no que respeita à mensagem, não se mostra urgência em que ela chegue, clara e completa, ao público, para tranquilidade de todos e maior confiança nas instituições.

Melhorar Cabo Verde no ranking da liberdade de imprensa passa por diminuir o peso do sector público na comunicação social e por desanuviar o ambiente de crispação no país ao mesmo tempo que se perde o medo de deixar o povo julgar a verdade e a falsidade em um mercado aberto. É nesse sentidode que todos devem trabalhar para garantir liberdade e democracia. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1118 de 3 de Maio de 2023.

segunda-feira, maio 01, 2023

Erros de cálculo

 

A semana passada foi terrível para o governo. A precedê-la havia o anúncio da assinatura de uma adenda ao contrato de concessão de transportes marítimos que finalmente viria colocar o serviço no caminho certo. A realidade que se seguiu à publicação e divulgação do novo acordo gerou descontentamento generalizado e ameaça de caos no sector. Em particular na rota S.Vicente/ Santo Antão o impacto das novas tarifas foi estrondoso e levou a reacções fortes da população, dos operadores e das forças da oposição.

Não só ficou clara a importância do tráfego marítimo na vida das duas ilhas que realmente constituem uma região económica como também se pôde constatar que o não reconhecimento dessa realidade faz cometer “erros de cálculo” que custam caro às pessoas e à economia e desgastam politicamente o governo.

Somando isso a outros “erros de cálculo” na adequação das opções nas linhas marítimas que ligam as ilhas compreende-se o fogo cruzado intenso em que o governo repentinamente se viu exposto depois da assinatura formal do acordo por dois ministros e pela empresa concessionária, quando a expectativa era outra e muito diferente. O rápido marcha-atrás nas medidas tomadas poderá servir para conter o desgaste político, mas não vai resolver os problemas de fundo. Claramente que há problemas com o modelo de concessão escolhido e parece não haver a melhor articulação entre as medidas de política e a dinâmica económica das ilhas como ficou aparente na ligação S.Vicente/Santo Antão. Também falta clarificar o que pode ser reservado a outros operadores, qual o futuro para a armação nacional e que papel para o Estado que até já assumiu comprar quatro barcos num futuro próximo. Equacionar e agir em relação a tudo isto não vai ser fácil, considerando o nível de descrédito na opinião pública que os últimos acontecimentos acabaram por revelar.

Cabo Verde tem constrangimentos incontornáveis como são a sua condição de arquipélago com 9 ilhas relativamente distantes umas das outras e condições de navigabilidade em oceano aberto muitas vezes severas. Acrescentando a isso a pequena população e a fraca estrutura produtiva do país dificilmente se poderá contar com a possibilidade de rentabilizar os transportes marítimos num sistema de serviço público regular e cobrando tarifas acessíveis sem uma forte subsidiação do Estado. É o que acontece nos outros arquipélagos da Macaronésia como, por exemplo, nos Açores onde subsídios para transportes aéreos chegam aos 140 milhões de euros e para os transportes marítimos atingem 9 a 10 milhões de euros. No país essa realidade não é assumida clara e frontalmente.

Governos sucessivos e partidos que se alternam na oposição esforçam-se por escamotear a realidade ou com subsidiação intransparente ou com afirmações duvidosas que tudo depende de políticas certas e uma boa gestão. Alimentam-se ilusões que as ilhas podem ter barcos a aportar todos os dias ou até que barcos podem pernoitar nas mais isoladas para responder a eventuais situações de emergência. Em consequência, indo de expediente em expediente, para responder a situações que vão surgindo de transporte marítimo de passageiros, particularmente nos últimos tempos em que a circulação aérea ficou mais difícil e mais cara, aumentam-se as ineficiências e naturalmente os custos de operação.

A par disso cresce o descontentamento do público e também as denúncias politicamente motivadas que por sua vez levam à intervenção directa do governo. Intervenções essas que geralmente criam mais ineficiências e custos, agravando o círculo vicioso existente. O resultado disso vê-se no montante de subsidiação indemnizatória que se paga anualmente que por duas vezes (2020-2022) ultrapassou um milhão de contos. A intenção do governo em financiar a compra de quatro barcos para quebrar o círculo vicioso, quando originalmente previa-se que seria a empresa concessionária a adquirir barcos num total de cinco, dá uma ideia da espiral descendente que foi traçada seguindo por esse caminho. Devia ser evidente que se vai tarde na reflexão sobre como reverter uma situação que tende a ficar pior porque se acumulam ineficiências e seus custos e apresenta-se cada vez mais complexa porque é mais profundo o descrédito das populações. A tentação é, como se vê também nos transportes aéreos, de seguir pelos mesmos caminhos adoptando estratégias desenhadas antes das crises e, não obstante fiascos como da associação com a Icelandair, esperar que realmente “desta vez” vai dar certo. É a corrida atrás de ilusões.

A semana terrível do governo cabo-verdiano com a questão dos transportes marítimos tem similaridades com os tempos difíceis que governos de outras democracias vêm passando. Há o exemplo mais recente dos problemas em Portugal da TAP, das pensões na França e das crises sucessivas de governos no Reino Unido ou das tribulações na política americana. As crises múltiplas dos últimos anos acabaram por revelar o quão intratáveis se tornaram problemas como transporte, habitação, aumentos do custo de vida, em particular de alimentação, acesso a serviços de saúde e falhas no sistema educativo. Com o enfraquecimento das instituições, com o maior “ruído” das redes sociais e fragilidades do sistema de partidos e da democracia representativa, a tarefa dos governos democráticos tem-se complicado extraordinariamente.

A opção pela política-espectáculo, a tentação de políticos se comportarem como celebridades e a preferência por medidas de política populistas têm conjugado para tornar ainda pior a situação mesmo quando por algum tempo essa via pareça ser a melhor para conquistar e se manter no poder. Já o que vem de arrasto, que são as exigências crescentes de transparência, o escrutínio apertado em bom número de casos e a tensão permanente criada via redes sociais, que muitas vezes parece o “vociferar da turba”, tendem, por seu lado, a fragilizar a governação, fixando-a na gestão do momento, sem a devida ponderação na realização de objectivos mais alargados e mais virada para suscitar paixões e afectos. É o terreno propício para, de facto, não se cumprirem mandatos, no sentido de se fazer as reformas de fundo que credibilizam instituições, reforçam o capital humano e criam condições para aumentar a competitividade e produtividade. Pelo contrário, enfatiza a concentração em como manter-se no poder e procurar reeleição.

Romper com esse círculo vicioso significa entre outras coisas agir activamente para que os problemas não se acumulem, a dívida pública não atinja valores insustentáveis e a frustração e o ressentimento não se transformem no combustível que alimenta a máquina política no país. Para isso é fundamental governar com verdade, com realismo e pragmatismo e ter presente o tempo do mandato para desenvolver estratégias, mobilizar vontades e encadear medidas políticas de forma a atingir ao fim dos cinco anos os objectivos que se preconizou e deixar alicerces seguros para continuação da construção do futuro.

Hoje fala-se muito na pressão das redes sociais que não deixam que se concentre com tempo, ponderação e sabedoria na melhor forma de resolver os problemas do país. É, porém, responsabilidade dos governantes não se renderem às forças que procuraram tornar inoperacional a democracia representativa. Aliás, seria bom que os activistas nas redes sociais estivessem cientes que essa forma de participação só é possível nas democracias liberais porque nelas é que não se corta a internet e não se constrói sistemas de segurança na internet (firewall) para bloquear conteúdos considerados inaceitáveis pelo Estado.

No meio das pressões que têm que ser feitas, opiniões que devem ser emitidas e chamadas à acção que podem ser feitas via internet, há que considerar que tudo isso só faz sentido se é para garantir a todos “segurança, oportunidade, prosperidade e dignidade”. Como diz Martin Wolf no seu último livro “A crise do capitalismo democrático” esses devem ser os objectivos fundamentais de toda a governação. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1117 de 26 de Abril de 2023.

segunda-feira, abril 24, 2023

Basta de tiro no pé

 

A Assembleia Nacional deu como aprovado na generalidade, no dia 14 de Abril, o projecto de lei que classifica a língua portuguesa como património cultural e imaterial de Cabo Verde com 27 votos a favor e 26 contra. A nota justificativa que acompanha o projecto lei começa por apresentar a língua portuguesa como parte integrante e estruturante da história, da sociedade e da identidade cabo-verdiana para depois concluir que não se pode ficar “indiferente a sinais de fadiga” na sua utilização que vão em contramão com a valorização que devia merecer como língua de comunicação interna e língua internacional do Estado de Cabo Verde.

O projecto de lei ainda terá que ser aprovado na especialidade e na globalidade antes de ser enviado ao presidente da república para promulgação. A controvérsia que se instalou sobre a maioria exigida na deliberação provavelmente não vai desaparecer e poderá ressurgir num outro momento do processo legislativo. De facto, de acordo com o nº 2 do artigo 161º da Constituição e 131º do regimento da AN os projectos e propostas de lei são aprovados por maioria absoluta dos deputados presentes. A aprovação por maioria simples, ou seja, sem contar os votos nulos, em branco e as abstenções como determina o nº 3 do artigo 121º da Constituição é, segundo os constitucionalistas, apenas um princípio subsidiário que cede quando a Constituição dispõe de forma diferente e determina que a maioria é absoluta, é de dois terços ou de quatro quintos. A prática parlamentar de sempre tem sido essa e a maioria simples só tem sido adoptada nas resoluções e mesmo nelas só quando a Constituição não estipula uma outra maioria.

De qualquer forma, a declaração do presidente da assembleia nacional a dar por aprovado o projecto de lei já foi de grande significado político. O teor do debate havido e as opções de voto dos deputados revelou o nível de polarização político-ideológica que a questão da língua portuguesa provoca. O ministro da cultura que publicamente se tinha oposto à iniciativa do projecto de lei no debate parlamentar não se fez presente nem o governo manifestou apoio à sua posição. O MpD, partido que suporta o governo, votou maioritariamente no projecto de lei juntamente com a maioria dos deputados da UCID enquanto no PAICV, pelo contrário, só uma pequena minoria foi favorável. Considerando o desenlace, ministros antes de reagirem desabridamente a iniciativas dos deputados e em particular da maioria parlamentar deviam ter em devida conta que, além de responderem perante o primeiro-ministro, são politicamente responsáveis perante o parlamento.

Ao longo do debate ficou evidente a quase impossibilidade de se discutir o estado da língua portuguesa e a necessidade de se elevar o seu nível de proficiência como condição para a cidadania plena, excelência no sistema de ensino, acesso ao conhecimento científico e da história e literatura de Cabo Verde e comunicação efectiva no plano internacional. O contraditório a partir da posição que o crioulo está a ser vítima e que não é suficientemente dignificada como língua materna efectivamente bloqueia o debate e acaba por revelar a polarização típica que se cria nas guerras culturais e identitárias da actualidade.

De facto, não pode ser considerada língua inferior aquela que pode ser utilizada pelo presidente da república, pelos deputados e em qualquer função do Estado, actividade social ou cultural como todos os dias se assiste no país através dos órgãos de comunicação social. O crioulo só tem limitações no seu uso porque ainda não se acordou numa forma estandardizada e na sua expressão escrita. Por isso é que não é língua de ensino, o boletim oficial e outros documentos do Estado não têm uma versão em crioulo nem tão pouco contratos e sentenças judiciais são redigidos em crioulo. A falta de uma versão mais formal da língua também prejudica a comunicação oral em contextos como debates parlamentares, cerimónias oficiais e apresentação de trabalhos académicos que, por razões de protocolo, exigem linguagem mais sofisticada e precisa do que a fala coloquial. O sentimento geral que há alguma degradação nos trabalhos parlamentares provavelmente não estará alheio ao crescente uso do crioulo nos debates sem a formalidade que seria de exigir na linguagem utilizada num órgão de soberania.

Sem ter um padrão do crioulo escrito e aceite pela comunidade nacional não há como ultrapassar a situação actual. Oficializar a língua não resolve o problema: criam-se obrigações custosas para o Estado de disponibilizar informação e serviços em crioulo sem ter os recursos para isso e na ausência de uma língua padronizada. Luxemburgo com todos os seus recursos levou décadas, com tentativas falhadas pelo meio, a padronizar o luxemburguês, mas o nível de utilização na sua forma escrita continua baixo. Ainda a melhor solução é procurar cumprir o comando constitucional que se deve continuar a criar as condições para ter paridade com a língua portuguesa.

Entrementes devia-se evitar criar um ambiente de conflito entre as duas línguas que arraste consigo sentimentos de vitimização, ressentimento e rejeição da língua portuguesa que interferem directamente com a vontade de fazer a sua aprendizagem adequada. Insistir na via que já demonstrou num primeiro embate não ter maioria na assembleia representativa dos cabo-verdianos só estará a prejudicar o presente e o futuro do país pela má vontade que cria nos alunos em relação à língua essencial para aprendizagem e conhecimento. De facto, vai-se para escola fundamentalmente para aprender ler e escrever. Com capacidade de leitura pode-se resolver problemas de matemática, aprender ciências, aceder a toda a literatura publicada e ser um produtor e transmissor de conhecimento. Não sendo uma língua com escrita padronizada é evidente que o crioulo não pode ser ainda uma língua de ensino.

As crianças em geral aprendem as suas respectivas línguas logo nos seus primeiros anos de vida. Depois na escola vão aprender a ler e a escrever e comunicarem-se em linguagem formal e estandardizada. A iniciação na literatura começa também aí. Se a língua materna da criança não é uma língua escrita e como no caso de Cabo Verde é a língua falada por todos e em quase todas as ocasiões, a escola tem um papel suplementar de ensinar a língua do ensino e do conhecimento com um nível de proficiência que garanta sucesso na aprendizagem a todas crianças que nela ingressa. É uma enorme responsabilidade que recai sobre os professores e os pais, mas que a sociedade no seu todo deve assumir. A criação de um ambiente propício para todas as crianças e jovens aprenderem a língua é essencial para garantirem no presente o seu sucesso escolar e depois profissional e também fundamental para o exercício de uma cidadania plena.

Do governo exige-se visão e liderança para que os enormes investimentos feitos na educação não sejam desperdiçados e nem o futuro hipotecado porque não se soube criar a motivação suficiente para elevar o nível de capital humano no país, aumentar competitividade e a produtividade e tornar o país mais atractivo para o investimento externo. Aos jovens não se pode deixar a única opção de querer emigrar para trabalhar em sectores de baixo salário. E tudo porque se permitiu que questiúnculas ideológicas e guerras culturais atrapalhassem o maior investimento que o país pode fazer que é dar uma educação de qualidade às suas gentes.

Imagine-se onde estariam a Singapura com os seus grupos étnicos e as Maurícias com sua história de colónia francesa e depois inglesa se tivessem ficado enredados em questões identitárias que prejudicasse a assunção respectivamente do inglês e do francês e inglês como língua oficial e do ensino. Quase cinquenta anos volvidos após a independência, é preciso que Cabo Verde se compenetre que não tem todo o tempo do mundo para tomar o caminho certo. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1116 de 19 de Abril de 2023.

segunda-feira, abril 17, 2023

Evitar o cinismo institucional

 

Na sessão da Assembleia Nacional que começa hoje, dia 12 de Abril, vai-se avançar com a proposta de eleição dos quatro membros do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) para completar o que deveria ser a total renovação do órgão de gestão da magistratura judicial. Em Novembro último, os juízes tinham eleito os seus quatro representantes e logo no início de Dezembro o presidente da república nomeou um juiz para completar o número de cinco magistrados judiciais entre os nove membros do CSMJ.

A Assembleia Nacional falhara em eleger os seus representantes e, apesar de não se ter verificado a renovação completa do órgão. optou-se por ir à frente com a eleição do seu presidente. Agora, ao mesmo tempo que se procura colmatar a deficiência com a nova eleição na Assembleia Nacional dos restantes quatro membros não magistrados, está-se a avançar com uma proposta de lei de alteração da orgânica do CSMJ que curiosamente vai alterar as regras do seu funcionamento num sentido no mínimo desconcertante.

A actual lei orgânica prevê um cargo de vice-presidente do CSMJ que coadjuva o presidente e que deve ser ocupado por um membro não magistrado eleito pelo órgão. Algo similar acontece no conselho superior da magistratura da Itália, que é considerado por vários autores como o modelo desses órgãos de gestão da magistratura judicial, com o objectivo de garantir ao público transparência, accountability e prestação de contas. O cargo faz, pois, todo o sentido, mas até os dias de hoje, mais de dez anos depois de a lei ter sido publicada, não foi preenchido. Nem mesmo depois do recurso feito para contornar essa norma ter sido considerado improcedente pelo Tribunal Constitucional. Um acórdão datado de 2016 do TC considerou unanimemente que não tinha razão quem questionou a constitucionalidade da norma que estabeleceu que o vice-presidente deve ser escolhido de entre os membros não-magistrados.

Causa, pois, alguma estranheza que numa mudança de 180º e aparentemente em resposta ao acórdão do TC, a proposta de lei que está para discussão e aprovação na Assembleia Nacional, vá determinar que o vice-presidente seja magistrado judicial. Mais, para além de essa alteração aumentar o peso e a influência dos magistrados no conselho também constituirá um reforço do presidente do CSMJ que não só passará a propor para eleição o candidato a vice-presidente como também poderá pedir sua destituição a todo o tempo (nº 4 do artigo 28º da proposta de lei). A discussão sobre o relativo peso dos magistrados e não-magistrados nos conselhos superiores da magistratura não é coisa inócua ou sem importância. A composição diversa desses órgãos é uma questão central para se garantir, por um lado, a autonomia e a independência dos juízes e, por outro, segundo os constitucionalistas, “se atenuar a ausência de legitimação democrática dos juízes enquanto titulares de órgãos de soberania”.

Como essa diversidade se deverá manifestar para o órgão e em que proporção se elege ou se nomeia os seus membros varia com as diferentes soluções encontradas nas democracias. Mesmo no seio de cada uma delas, a configuração tende a evoluir com o tempo. Em Cabo Verde também houve evolução quanto à maioria numérica no CSMJ. Inicialmente, na Constituição de 1992, os indicados pelos órgãos do poder político (três eleitos pela assembleia nacional e os dois nomeados pelo presidente da república) eram maioritários em relação aos magistrados judiciais (2 eleitos pelos juízes: o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e o Inspector Superior Judicial). Na prática a opção do PR em nomear dois juízes restituía a maioria aos magistrados. Na revisão constitucional de 1999 clarificou-se a intenção do legislador constituinte e estabeleceu-se que os dois membros de nomeação presidencial não podiam ser magistrados ou advogados. Na última revisão de 2010 outra vez, desta feita formalmente, foi invertida a maioria passando a ser 5-4 a favor dos magistrados.

Parafraseando o dito que pessoas investidas com cargos tendem a apegar-se como tenazes ao poder e que esse apego as faz estender o seu poder, aumentar seus direitos e ampliar a esfera da sua própria autoridade, o mais natural é que não se fique por aí. Com as alterações na orgânica do CSMJ apresentadas para discussão e aprovação no parlamento, a proposta de lei em vários artigos dá sinal que se vai no sentido de menor influência dos membros não-magistrados e de maior poder do presidente que também passa a ter voto de qualidade (nº 3 do artigo 34º da proposta de lei).

A questão que se coloca é por que então elegê-los se a capacidade de influenciação na gestão da magistratura judicial é reduzida ao mínimo. Diversidade devia ser a chave para legitimação democrática e contenção de tendências corporativas. O sector da justiça em particular tem estado sob escrutínio mais apertado dos cidadãos e todos querem ver resultados da renovação dos seus órgãos de autogoverno. Se os efeitos não se fazem sentir por limitações várias, podia-se poupar nos custos e evitar os efeitos de fachada que alimentam o cinismo do público em relação às instituições.

Cabo Verde tem várias entidades administrativas independentes, umas nomeadas pelo governo depois de audição parlamentar e outras eleitas pela Assembleia Nacional por maiorias qualificadas de dois terços dos deputados enquanto órgãos externos. O parlamento na sessão a iniciar esta quarta-feira vai eleger candidatos a alguns cargos exteriores e espera-se que renove o mais cedo possível todos os que estão com mandato há muito terminado. O objectivo desejado é que no quadro institucional autónomo e acima das disputas políticas se assegure um ambiente salutar para todo o sistema político que prime pelo cumprimento das regras e por uma cultura de transparência, responsabilização e prestação de contas. Também que salvaguarde os direitos dos indivíduos e os direitos dos consumidores e mantenha funcional uma ordem económica e social facilitadora da iniciativa e da inovação e potenciadora da energia e perseverança de indivíduos e empresas.

São entidades que, pela sua natureza, devem ser competentes, eficazes e afirmativas da sua autonomia em relação aos outros poderes, em particular os económicos e os políticos. Todo o processo de escolha e nomeação dos seus titulares deveria ter isso em devida consideração. Também pela sua natureza e exigências de funcionamento representam custos significativos e na sociedade há a expectativa de um retorno adequado desse investimento. Por isso, não podem ser simplesmente cargos de predilecção de quem só quer privilégios especiais ou moeda de troca de quem quer dispensar favores pessoais ou partidários, nem tão pouco serem escamoteados nos propósitos por que foram criados. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1115 de 12 de Abril de 2023.

segunda-feira, abril 10, 2023

Cabo Verde de luto

 

A tragédia na Serra da Malagueta no domingo, dia 3 de Abril, deixou o país em estado de choque. Um acidente de viação levou à morte inesperada de oito jovens militares e um técnico agrário sucumbiu depois de ter sido atingido por rochas soltas. Já se tinham passado dois dias que militares em cooperação com as forças locais da protecção civil estavam conjuntamente com a população e guardas florestais a dar combate às chamas que ameaçavam alastrar-se por todo o perímetro florestal, a pôr em perigo as pessoas, os seus bens e o gado. Foi quando, apesar do tempo ventoso e seco, praticamente se tinha controlado o incêndio é que a fatalidade aconteceu.

Ainda não se conhecem as reais causas do acidente, mas segundo as declarações oficiais, parecem estar ligados a problemas mecânicos da viatura, não obstante ser relativamente nova (2021) e o condutor ser experiente. A concentração de homens e recursos, esforços que torna a missão militar eficaz, cria a possibilidade de em caso de acidente as consequências serem realmente desastrosas. Acontece em todos os exércitos, grandes ou pequenos, sofisticados ou simples. Daí a importância de se ter capacidade de organização e logística adequada e, quando algo acontece, fazer os inquéritos rigorosos para se saber das reais causas, dar a conhecer os resultados, tirar as devidas ilações e promover as melhores práticas.

O que não se pode apagar é a enorme tristeza que envolve toda a gente quando vidas são inesperadamente ceifadas nessas circunstâncias. Eram militares, mas não estavam num teatro de guerra e a probabilidade de morte era longínqua. O serviço, que com entusiamo e generosidade prestavam à comunidade, não lhes devia ter custado a vida. A profunda consternação em que o país caiu, vem dessa constatação simples. Deve ser total e genuína a solidariedade de toda a nação para com os familiares e amigos, os companheiros da tropa e com a instituição nacional única de cidadania que são as Forças Armadas. Compete aos mais altos representantes transmitir isso sem ambiguidade ou aproveitamento político.

O luto nacional deve servir para os homenagear, juntar-se às famílias neste momento de dor e incentivar as forças armadas, os homens e mulheres nas suas fileiras, os profissionais e os conscritos, a continuar a prestar o serviço que o país deles espera. Como sempre, o país quer contar com a prontidão das tropas em todos os momentos de dificuldades, sejam eles de pandemia, erupção vulcânica, busca e salvamento no mar e incêndios florestais, desastres ambientais e fiscalização dos mares. Nestes dias de tristeza colectiva a última coisa que se devia ver repetido é o ambiente competitivo que opõe actores políticos e partidos para saber quem aparece mais, quem foi o primeiro a propor, quem está mais compungido pela dor, etc, etc.

Infelizmente, a tentação é grande e com uma ponta de cinismo de uns e a hipocrisia de outros lá se vai perdendo mais uma oportunidade de a nação mostrar-se una e mais forte para continuar a ultrapassar adversidades e enfrentar os desafios da democracia, da modernidade e do desenvolvimento. Os tempos actuais com as suas incertezas quanto ao futuro e as múltiplas crises que se retroalimentam deviam levar ao reforço do que une a comunidade, tanto ao nível local como ao nível nacional, para se poder ser livre e plural e usar o dissenso e encontrar as melhoras soluções para o país. A pandemia da covid-19 pela sua natureza de ameaça quase existencial podia talvez ter desencadeado esse processo de aproximar todos.

Mas, aparentemente, foram mais poderosas as forças centrífugas que estão a trabalhar para reforçar o individualismo em detrimento da comunidade, para preferir o protagonismo pessoal e não o serviço público e optar pelo populismo com prejuízo para a credibilidade das instituições e o primado da lei. O desgaste político e social é real e visível na forma como é tratado tudo o que diz respeito às câmaras municipais, ao parlamento, ao governo, aos tribunais e ao presidente da república. Impera partidarismos, clubismos e paixões pessoais em detrimento do que poderia ser uma procura da verdade, das melhores vias para resolver problemas e da reafirmação de um consenso sobre questões fundamentais que reafirmem a comunidade política-nacional como tal. As últimas sondagens do Afrobarómetro dão conta desse desgaste institucional com reflexo na confiança, no civismo e na capacidade de mobilização da vontade nacional para construir um futuro com mais prosperidade.

É interessante que nas sondagens as Forças Armadas é a instituição de maior confiança dos caboverdianos. O conhecimento deste facto devia levar a que a pretexto das dificuldades do momento não fossem submetidas às disputas habituais entre os diferentes actores políticos e, em consequência, ao tipo de desgaste que outras instituições da república têm sido alvo nos últimos tempos. Ninguém ganhará com isso e no fim do dia só ficarão mais frágeis as ligações que ligam todos nós.

Lamentavelmente parece que os tempos não são de reforço de uma identidade comum e de procura de maior cooperação entre as pessoas. A preferência aparentemente é, como disse Alexander Hamilton nos Federalist Papers para se criar uma “torrente de paixões furiosas e malignas”. Contraria isso o exemplo daqueles militares que até ao termo das suas vidas procuraram generosamente servir a sua comunidade e as suas gentes.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1114 de 5 de Abril de 2023

segunda-feira, abril 03, 2023

Lideranças transformacionais precisam-se

 

O tema liderança recebeu grande cobertura mediática na semana passada. Foi tema de uma cimeira que contou com comunicações do presidente da república e do primeiro-ministro para além de outras personalidades, de masterclasses e tertúlias. Compreende-se que a questão esteja em voga em todo o mundo com todas as transformações em curso a começar por mudanças tectónicas na geopolítica mundial e incluindo alterações climáticas, transição energética e digitalização acelerada. Devia ser o momento ideal para o surgimento de líderes que, parafraseando o PR, fossem inteligentes, visionários e catalisadores de processos. Infelizmente, não tem sido assim na generalidade dos países e pior ainda nos países menos desenvolvidos onde mais falta fazem.

A atenção do mundo tem estado nos últimos dias focada nas medidas a tomar para evitar que dificuldades no sector bancário levem à contaminação sistémica de todo o sector financeiro e eventual diminuição do crédito disponível. O aumento rápido das taxas de juro teve efeito inesperado que vem repercutindo sobre toda a economia em especial sobre o sector bancário. Do FMI e do BCE já vieram avisos sobre o perigo que representa para todos e que é agravado, no chamado Sul Global, pela dívida acumulada por muitos países. Ou seja, às crises existentes e ainda não ultrapassadas como é a luta para baixar a inflação está-se a somar mais uma outra que vai tornar mais difícil combatê-la sem induzir uma travagem significativa no crescimento global. E tudo isso acontece quando o emergente quadro geopolítico de fundo, marcado pela guerra na Ucrânia e pelas alianças político-militares antagónicas em ascensão, vem contribuindo para exacerbar os efeitos dessas crises. A recente visita do presidente chinês a Moscovo e em simultâneo da do primeiro-ministro japonês a Kiev e a próxima reunião da NATO incluindo países do Indo-Pacífico são elucidativas a esse respeito.

Navegar neste mar de incertezas, imprevistos e novos desafios exige um nível de liderança que, como diz Brian Klaas, autor do livro “Corruptíveis”, devia ser fornecida por gente motivada pelo serviço público, generosidade e altruísmo. Na realidade, quem se tem interessado em exercer poder já é centrado na sua própria pessoa, tem como primordial a ambição do poder e toma como bitola a sua conveniência na avaliação das opções , escamoteando a verdade e os factos. É evidente que nessas condições dificilmente se vai conseguir produzir liderança transformacional, fazer reformas e mudar atitudes que realmente podem contar para a criação de riqueza e sua redistribuição de forma a haver ganhos para todos e não excluir ninguém. Manter-se no poder e dele usufruir para se fazer reeleger e se colocar na posição de garantir o apoio e a vassalagem de outros passou a ser a marca de Muitos. Principalmente quando se desdobra em frases feitas, faz uso permanente do novo jargão introduzido pelas instituições internacionais e proclama que aposta em inovação, está de facto a praticar a arte de tudo mudar para que tudo fique como está.

Em países como Portugal, esse ficar aquém na transformação do país, paga-se na falta de convergência com os outros países da União Europeia e no ficar na cauda da Europa ultrapassado até pelos recém-entrados. Em países como São Tomé e Príncipe, a falta de confiança numa liderança transformativa mostra-se em indicadores como os vindos a público nos últimos dias que põem em 80% o número de jovens que querem sair do país em direcção a Portugal. Da mesma forma, em Cabo Verde um dado similar quanto à emigração já sentido na diminuição da população poderá estar a revelar as reduzidas oportunidades do país e a pouca esperança que a prazo as coisas mudem. No caso de Portugal, as críticas apontam a falta de vontade ou de capacidade para fazer o aproveitamento adequado dos fundos disponibilizados pela União Europeia, sendo o PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) o último, e operar as mudanças necessárias para aumentar a competitividade e a produtividade do país. Em Cabo Verde, como na generalidade dos países em desenvolvimento, os fundos disponibilizados em formato de ajuda ao desenvolvimento também não resultam em pôr o país no terreno seguro do crescimento económico e da sustentabilidade com base numa capacidade endógena de criação de riqueza.

Daí a desesperança que se vai instalando particularmente entre as camadas jovens e que sustenta movimentos migratórios em direcção à Europa e aos Estados Unidos. Para as lideranças nacionais nota-se em muitos casos a acomodação ao modelo sustentado pelas múltiplas transferências dos países desenvolvidos traduzida em Cabo Verde na adopção confirmada pelo primeiro-ministro, na conferência anual sobre política externa, de um “Plano Estratégico de Desenvolvimento Sustentável 2022/2026” que vai erradicar a pobreza extrema até 2026 e uma “Agenda Ambição Cabo Verde 2030”. Precisamente o que tem sido preconizado pelas Nações Unidas e outras organizações multilaterais. O problema com essas prescrições é que não há memória de algum país se ter desenvolvido com base nelas. Aliás, já com quase 50 anos de independência e como recipiente da ajuda internacional, Cabo Verde tem suficiente experiência dos múltiplos planos de desenvolvimento e de luta contra a pobreza que foram implementados e cujos resultados ficaram muito aquém dos pretendidos.

A produção de uma liderança transformacional que não se deixa apanhar pelas estratégias com base nos recursos de fora não é fácil de se conseguir. O modelo de desenvolvimento que tais estratégias normalmente suportam reproduz a dependência da sociedade em relação ao Estado e ajuda uma elite mais próxima do sector estatal a manter-se no poder. Uma mudança no sentido de uma viragem para se criar um ambiente propício à iniciativa individual e à criação de riqueza e consequente maior autonomia e sustentabilidade do emprego e do rendimento encontra sempre resistência. Curiosamente é o que acontece quando, ao mesmo tempo que se deixa entender que prosperidade e emprego estão ao alcance de todos, porque todos podem ser empreendedores, startups têm financiamento e talentos são muitos, permite-se que informalidade e concorrência desleal esvaziem iniciativas e criem dificuldades para a consolidação e expansão de empresas nascentes. A opção transformacional seria a que resultaria num ambiente de negócios onde fosse visível uma ordem económica e social com regras aceites e cumpridas por todos.

Também essa opção seria a que capitalizasse sobre o conhecimento da realidade do país e soubesse potenciar as vantagens e fraquezas numa perspectiva de futuro. Imagine-se onde o país poderia estar se há muito tivesse reconhecido que vivia as consequências de alterações climáticas e apostado em tecnologias, produtos e processos de poupança de água. No mesmo sentido, se, enquanto Estado oceânico, tivesse feito uma aposta mais abrangente e compreensiva na economia azul. Também, se, considerando o potencial do país em energia eólica e solar, de há muito tivesse enverado estrategicamente para as energias renováveis. Ou ainda, se, para a prestação eficiente e eficaz de um conjunto de serviços para todos num país insular e com população dispersa, tivesse tomado como fundamental um vigoroso e criativo investimento na digitalização. Israel e Estónia foram por esse caminho e têm sido ricamente compensadas por isso, agora que o resto do mundo mais precisa desse know how. Infelizmente, em Cabo Verde prevaleceu o modelo dos projectos financiados, seguindo essencialmente a agenda dos doadores e não uma aposta estratégica do país. Agora que todos falam de clima, energias renováveis, economia azul e verde e de digitalização, espera-se que não se está simplesmente a aproveitar mais uma fonte de ajuda no modelo tradicional e que em mira estão realmente objectivos transformacionais.

Hábitos arreigados, porém, são difíceis de perder particularmente se resultam de atavismos ideológicos, fantasias teimosamente mantidas ou nostalgia de um passado desconhecido. Como se pode exercer liderança transformacional se se persiste em olhar para o país na perspectiva simplista e ideologicamente conotada que exalta o papel da mulher cabo-verdiana como criadora da língua materna, protagonista de revoltas populares (homi faca, mulher matchado) e heroína de uma guerra de libertação na Guiné-Bissau. Sem libertar o país de narrativas ideológicas não há como cortar as amarras que têm impedido que as sucessivas lideranças na governação retirem o país de modelos de dependência e precariedade e consigam fazer as reformas que tornam possível a criação de riqueza e permitem vislumbrar prosperidade futura para todos.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1113 de 29 de Março de 2023.

segunda-feira, março 27, 2023

A tragédia dos partidos

 O ambiente político começa a aquecer e os partidos preparam-se para “arrumar a casa” e posicionar-se para o período pré-eleitoral a iniciar em meados do corrente ano. No MpD ainda vai-se escolher a nova liderança e, como será uma eleição disputada, só depois de Maio próximo é que poderá começar a preparar-se para os embates futuros. No PAICV e UCID já com a liderança acertada, pelos menos para a próxima eleição, a incógnita a resolver será de se saber quem depois dos resultados das autárquicas estará em melhor condição para liderar nas eleições seguintes. Neste quesito já o actual primeiro-ministro se posicionou para ser o candidato do seu partido para um terceiro mandato, mas estando as autárquicas pelo meio nada pode ser dado como certo. Um resultado menos favorável, diminuição do número de câmaras ou perda de câmaras emblemáticas, poderá condicionar a decisão para continuar na liderança do partido e ser futuro candidato.

No último trimestre de 2024 deverão realizar-se as eleições autárquicas para, com a diferença de cerca de ano e meio, se avançar com as legislativas. A proximidade das duas eleições partidárias empresta uma outra importância à preparação para o novo ciclo eleitoral considerando que, em geral, os resultados dos diferentes partidos nas autárquicas afectam a percepção das pessoas quanto às probabilidades de vitória ou derrota nas legislativas com o impacto maior a ser suportado pelo partido no governo em caso de revés. Infelizmente, para o país não parece que haja consciência que se está a viver tempos extraordinários que exigem um outro repensar do país e uma nova disponibilidade para pertencer e servir a comunidade.

A crise nas câmaras da Praia e de S. Vicente demonstram até que ponto as lideranças nacionais dos partidos ficam cativas de protagonismos nas câmaras municipais que são mais tributárias da personalidade dos presidentes e da forma marcadamente pessoal como exercem o poder camarário do que resultado de uma visão política diferente. Atropelos feitos ao estatuto dos municípios tanto no funcionamento dos órgãos colegiais como no processo de aprovação do orçamento municipal e do plano de actividades, já referenciados pelo Tribunal de Contas e pela Inspecção Geral das Finanças, não merecem reparo das lideranças partidárias. Nem tão-pouco se procura promover diálogo para ultrapassar bloqueios.

A questão que se coloca aos partidos nessas situações é até que ponto a solidariedade política sobrepõe-se à lealdade devida ao cumprimento da Constituição e às leis por todos os actores políticos. Ainda uma outra questão é se com solidariedade a populistas nas câmaras não se está a abrir caminho para o populismo triunfar ao nível nacional com as consequências que se conhecem de descredibilização das instituições, incompetência e atraso no desenvolvimento. As próximas eleições deverão ser esclarecedoras a esse respeito.

Anos atrás quando ainda não se falava da tripla crise da Covid-19, da alta inflação e da guerra na Ucrânia já se tinha identificado um mal-estar nos países democráticos que ameaçava retirar legitimidade aos seus sistemas políticos. Era mais um sintoma do que se viria a chamar de crise da democracia no pós-crise financeira de 2008 e que traduzia as deficiências sentidas na representação e participação política, no sistema de partidos cada vez menos capaz de apresentar alternativas reais de governação e na erosão de instituições como os média e o sistema judicial. A emergência do populismo e da extrema direita em muitos países como reacção a essa “malaise” precipitou e aprofundou ainda mais a crise nas democracias.

Ao longo desse processo abriu-se caminho para a chegada ao poder de personalidades como Trump nos Estados Unidos e Bolsonaro no Brasil e provocaram-se estragos múltiplos nos partidos políticos onde passaram a ser normal manifestações de ambição pura e de narcisismo deixando em muitos casos sinais evidentes de falta de humildade e de competência política. A evolução da esfera pública para um ambiente de troca de ideias e informação diversa quase sem mediadores e sujeito a comportamentos de rebanho e aberto a fenómenos de viralização de rumores, modismos e cancelamentos, que, entretanto, se verificou, certamente que contribuiu para isso. Uma evolução para a qual foi instrumental a massificação dos smartphones que deram acesso generalizado às redes sociais, plataformas e médias sociais e com isso empoderaram muitos que nunca o seriam sem o facebook, twitter instagram ou viber.

Em consequência, a forma de ascensão nos partidos mudou e perderam-se oportunidades de desenvolvimento de sensibilidades políticas que traziam pluralismo e renovação aos partidos ao mesmo tempo que criavam laços de lealdade que perduravam e permitiam governantes implementar projectos coerentes de governação. Passou a reinar a lealdade e obediência ao chefe. Cabo Verde não foi excepção e vê-se no estado em que actualmente se encontram os partidos no sistema político.

É interessante notar que a crise de representação nas democracias levou os partidos a se abrirem mais para a sociedade e a introduzir e adoptar práticas como primárias na escolha de candidatos e eleição directa do líder do partido. Não é evidente que se ganhou muito com essas inovações considerando que não conseguiram conter o descrédito dos partidos a ponto de, em vários países democráticos, partidos nacionais de grande envergadura acabaram por encolher (Portugal, Espanha) e em alguns casos quase desaparecer (França, e Itália, Grécia). Também ficaram mais expostos ao populismo e ao aparecimento de líderes com tendências autocráticas e a promessa de novas ideias para a governação não se concretizou. Pelo contrário, em muitos casos ficou a forte impressão de incompetência como resultado de se querer mudar as regras do jogo institucional, de não aplicar o princípio da separação de poderes e de se fugir à responsabilização e à prestação de contas.

Em Cabo Verde, também a introdução de eleição directa dos líderes dos partidos não trouxe vantagem. Teve o efeito de concentração do poder no líder em detrimento dos outros órgãos a começar pelas convenções e congressos. Na ausência de visões estratégicas para o país que poderiam surgir de vivo debate nos órgãos colegiais partidários e também com os militantes e a sociedade, cada vez mais a estratégia de governação parece uma cópia decalcada da agenda das Nações Unidas, anteriormente “os Desafios de Desenvolvimento do Milénio” e actualmente “a Ambição 2030”. Entretanto as crises vão acontecendo numa dinâmica de policrise onde uma crise bancária poderá vir juntar-se às existentes e constituir-se um risco real ao qual poderá ainda seguir eventual aperto no crédito com consequências globais no crescimento da economia mundial.

Sobreviver e prosperar como país nestes tempos difíceis exige muito mais do que os partidos parecem dispostos a dar, transformados como estão essencialmente em máquinas de conquista do poder. A malaise da democracia continua sem fim à vista quando nem as regras do jogo democrático se mostram dispostos a cumprir para além da conveniência política do momento e até se ensaia pôr em causa o próprio Tribunal Constitucional. A diminuição da população que o INE detectou no último censo devia servir de aviso porque pode indiciar que há muitos que já votam com os pés procurando os caminhos da emigração. A utilidade dos partidos na democracia deve ser reafirmada e a via para isso deverá passar por desenvolver uma vida interna mais rica e plural e ser capaz de lançar um olhar global sobre o país e a sua trajectória história que potencie o melhor que as suas gentes conseguiram ser e produzir. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1112 de 22 de Março de 2023.