O ambiente político começa a aquecer e os partidos preparam-se para “arrumar a casa” e posicionar-se para o período pré-eleitoral a iniciar em meados do corrente ano. No MpD ainda vai-se escolher a nova liderança e, como será uma eleição disputada, só depois de Maio próximo é que poderá começar a preparar-se para os embates futuros. No PAICV e UCID já com a liderança acertada, pelos menos para a próxima eleição, a incógnita a resolver será de se saber quem depois dos resultados das autárquicas estará em melhor condição para liderar nas eleições seguintes. Neste quesito já o actual primeiro-ministro se posicionou para ser o candidato do seu partido para um terceiro mandato, mas estando as autárquicas pelo meio nada pode ser dado como certo. Um resultado menos favorável, diminuição do número de câmaras ou perda de câmaras emblemáticas, poderá condicionar a decisão para continuar na liderança do partido e ser futuro candidato.
No último trimestre de 2024 deverão realizar-se as eleições autárquicas para, com a diferença de cerca de ano e meio, se avançar com as legislativas. A proximidade das duas eleições partidárias empresta uma outra importância à preparação para o novo ciclo eleitoral considerando que, em geral, os resultados dos diferentes partidos nas autárquicas afectam a percepção das pessoas quanto às probabilidades de vitória ou derrota nas legislativas com o impacto maior a ser suportado pelo partido no governo em caso de revés. Infelizmente, para o país não parece que haja consciência que se está a viver tempos extraordinários que exigem um outro repensar do país e uma nova disponibilidade para pertencer e servir a comunidade.
A crise nas câmaras da Praia e de S. Vicente demonstram até que ponto as lideranças nacionais dos partidos ficam cativas de protagonismos nas câmaras municipais que são mais tributárias da personalidade dos presidentes e da forma marcadamente pessoal como exercem o poder camarário do que resultado de uma visão política diferente. Atropelos feitos ao estatuto dos municípios tanto no funcionamento dos órgãos colegiais como no processo de aprovação do orçamento municipal e do plano de actividades, já referenciados pelo Tribunal de Contas e pela Inspecção Geral das Finanças, não merecem reparo das lideranças partidárias. Nem tão-pouco se procura promover diálogo para ultrapassar bloqueios.
A questão que se coloca aos partidos nessas situações é até que ponto a solidariedade política sobrepõe-se à lealdade devida ao cumprimento da Constituição e às leis por todos os actores políticos. Ainda uma outra questão é se com solidariedade a populistas nas câmaras não se está a abrir caminho para o populismo triunfar ao nível nacional com as consequências que se conhecem de descredibilização das instituições, incompetência e atraso no desenvolvimento. As próximas eleições deverão ser esclarecedoras a esse respeito.
Anos atrás quando ainda não se falava da tripla crise da Covid-19, da alta inflação e da guerra na Ucrânia já se tinha identificado um mal-estar nos países democráticos que ameaçava retirar legitimidade aos seus sistemas políticos. Era mais um sintoma do que se viria a chamar de crise da democracia no pós-crise financeira de 2008 e que traduzia as deficiências sentidas na representação e participação política, no sistema de partidos cada vez menos capaz de apresentar alternativas reais de governação e na erosão de instituições como os média e o sistema judicial. A emergência do populismo e da extrema direita em muitos países como reacção a essa “malaise” precipitou e aprofundou ainda mais a crise nas democracias.
Ao longo desse processo abriu-se caminho para a chegada ao poder de personalidades como Trump nos Estados Unidos e Bolsonaro no Brasil e provocaram-se estragos múltiplos nos partidos políticos onde passaram a ser normal manifestações de ambição pura e de narcisismo deixando em muitos casos sinais evidentes de falta de humildade e de competência política. A evolução da esfera pública para um ambiente de troca de ideias e informação diversa quase sem mediadores e sujeito a comportamentos de rebanho e aberto a fenómenos de viralização de rumores, modismos e cancelamentos, que, entretanto, se verificou, certamente que contribuiu para isso. Uma evolução para a qual foi instrumental a massificação dos smartphones que deram acesso generalizado às redes sociais, plataformas e médias sociais e com isso empoderaram muitos que nunca o seriam sem o facebook, twitter instagram ou viber.
Em consequência, a forma de ascensão nos partidos mudou e perderam-se oportunidades de desenvolvimento de sensibilidades políticas que traziam pluralismo e renovação aos partidos ao mesmo tempo que criavam laços de lealdade que perduravam e permitiam governantes implementar projectos coerentes de governação. Passou a reinar a lealdade e obediência ao chefe. Cabo Verde não foi excepção e vê-se no estado em que actualmente se encontram os partidos no sistema político.
É interessante notar que a crise de representação nas democracias levou os partidos a se abrirem mais para a sociedade e a introduzir e adoptar práticas como primárias na escolha de candidatos e eleição directa do líder do partido. Não é evidente que se ganhou muito com essas inovações considerando que não conseguiram conter o descrédito dos partidos a ponto de, em vários países democráticos, partidos nacionais de grande envergadura acabaram por encolher (Portugal, Espanha) e em alguns casos quase desaparecer (França, e Itália, Grécia). Também ficaram mais expostos ao populismo e ao aparecimento de líderes com tendências autocráticas e a promessa de novas ideias para a governação não se concretizou. Pelo contrário, em muitos casos ficou a forte impressão de incompetência como resultado de se querer mudar as regras do jogo institucional, de não aplicar o princípio da separação de poderes e de se fugir à responsabilização e à prestação de contas.
Em Cabo Verde, também a introdução de eleição directa dos líderes dos partidos não trouxe vantagem. Teve o efeito de concentração do poder no líder em detrimento dos outros órgãos a começar pelas convenções e congressos. Na ausência de visões estratégicas para o país que poderiam surgir de vivo debate nos órgãos colegiais partidários e também com os militantes e a sociedade, cada vez mais a estratégia de governação parece uma cópia decalcada da agenda das Nações Unidas, anteriormente “os Desafios de Desenvolvimento do Milénio” e actualmente “a Ambição 2030”. Entretanto as crises vão acontecendo numa dinâmica de policrise onde uma crise bancária poderá vir juntar-se às existentes e constituir-se um risco real ao qual poderá ainda seguir eventual aperto no crédito com consequências globais no crescimento da economia mundial.
Sobreviver e prosperar como país nestes tempos difíceis exige muito mais do que os partidos parecem dispostos a dar, transformados como estão essencialmente em máquinas de conquista do poder. A malaise da democracia continua sem fim à vista quando nem as regras do jogo democrático se mostram dispostos a cumprir para além da conveniência política do momento e até se ensaia pôr em causa o próprio Tribunal Constitucional. A diminuição da população que o INE detectou no último censo devia servir de aviso porque pode indiciar que há muitos que já votam com os pés procurando os caminhos da emigração. A utilidade dos partidos na democracia deve ser reafirmada e a via para isso deverá passar por desenvolver uma vida interna mais rica e plural e ser capaz de lançar um olhar global sobre o país e a sua trajectória história que potencie o melhor que as suas gentes conseguiram ser e produzir.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1112 de 22 de Março de 2023.
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