Com as eleições autárquicas a serem realizadas no dia 1 de Dezembro, as câmaras municipais (CM) e as assembleia municipais (AM) vão ser renovadas. As novas configurações de forças políticas, partidos e grupos de cidadãos, que saírem do acto eleitoral poderão traduzir-se em maiorias absolutas ou relativas, deixando antever, logo à partida, as probabilidades de se ter, conforme o caso, quatro anos de mandato estável ou períodos de instabilidade e até de bloqueio. A crescente crispação partidária aliada à incapacidade de negociar ou manter acordos entre as forças políticas, recentemente demonstradas nos municípios de S. Vicente e da Praia, poderão já ser o sinal de crises mais frequentes a verificar-se na governação municipal.
Estabilidade municipal normalmente está garantida com uma maioria absoluta na câmara municipal. Tratando-se de uma maioria relativa, que resulta em CM partilhada, tudo acaba por depender da disponibilidade das forças políticas para negociar, tanto na CM para a aprovação das propostas, em particular do plano de actividades e do orçamento, a serem apresentados à AM, como no órgão deliberativo para dotar o município dos seus instrumentos fundamentais de gestão. A novidade neste ciclo autárquico que está a terminar foi a situação caricata criada na CM da Praia em que a maioria nesse órgão recebida das eleições foi perdida, mas o presidente, em confronto com a prática estabelecida e o estipulado nos Estatutos dos Municípios, reivindicou o direito de apresentar propostas de orçamento à AM, sem aprovação prévia no órgão colegial executivo.
A verdade é que esse diferendo não foi dirimido e a prática impôs-se com a repetida aprovação pela AM do orçamento e do plano de actividades sem que todos os procedimentos legais tivessem sido seguidos. Uma questão que se coloca é se isso não abre um precedente para situações futuras de conflitualidade, instabilidade e ineficácia dos órgãos municipais, com todas as consequências e custos que acarretam. Outra questão é se a AM ao aceitar debater e votar propostas sem prévia aprovação da CM não estará a cumprir a Constituição que faz o orgão colegial executivo responsável perante ela. Claro que aqui se põe o problema de saber se. efectivamente na Lei, foram criadas as condições e disponibilizados os meios para AM poder escrutinar os poderes das câmaras municipais e os actos do presidente da CM. Para os munícipes que vão votar na AM é fundamental que reconheçam utilidade no órgão que vão eleger, sob pena de se aumentar o descrédito nas instituições do poder local e incentivar o caciquismo autárquico.
A estabilidade futura das autarquias vai depender muito da capacidade negocial e compromissória das forças políticas nos órgãos municipais, em particular na AM. Já se viu pelo caso de S. Vicente que acordos podem ser conseguidos na câmara e depois bloqueados na assembleia. A possibilidade confirmada pelo Tribunal Constitucional de haver candidaturas só para um dos órgãos municipais pode constituir-se num convite a uma maior fragmentação da AM ou numa não correspondência na representação de forças políticas nos dois órgãos. Em qualquer dos casos obriga a um maior esforço negocial e disponibilidade para construir coligações ou firmar acordos pontuais.
Se não houver um sentido aguçado de que o poder do órgão não está em eternizar o bloqueio mas em dotar o município dos instrumentos de gestão tudo ficará mais difícil. A CM e a AM são eleitas directamente e nenhum dos órgãos pode derrubar o outro como acontece com o governo que perde a maioria num sistema parlamentar. Isso faz com que não devam se subordinar um ao outro e, pelo contrário, num sistema de pesos e contrapesos, se obriguem a respeitar e a fazer cumprir as regras do jogo democrático. Quando isso não acontece, como no caso da proposta de orçamento da Praia, cria-se um ambiente de incumprimento que diminui a eficácia na resolução dos problemas do município e dos munícipes. Aos titulares desses órgãos de poder político é esperada uma responsabilidade muito especial reforçada pela proximidade dos eleitores e pelo impacto directo da acção municipal na vida corrente das pessoas.
Aliás, a própria existência do poder local parte da convicção de que populações num determinado território têm interesses específicos que não se esgotam no interesse nacional e que importa dotá-las de poder próprio para os administrar. A democracia local pretendida, marcada pela proximidade, deve ser cultivada para, de um lado, evitar bloqueios e ineficácia e, de outro, para não ser desvirtuada pelo caciquismo. Nesse sentido, é fundamental existir uma preocupação com a viabilidade dos município, em particular na criação da autarquia e concomitantemente com a contribuição dos munícipes para a sustentabilidade dos mesmos.
Tributação e representação vão a par e passo na democracia, ou seja paga-se imposto porque se está representado no órgão que os cria e que controla como são gastos as receitas obtidas. De outra forma vão surgir figuras providenciais e, muitas vezes, aspirantes a caciques a tentar conseguir receitas em permanente guerra de recursos com o Estado central, enquanto tudo fazem para enredar os munícipes numa malha de dependência, condicionando o acesso aos recursos mobilizados. Também acaba-se por criar um eleitorado que, ao não se sentir como contribuinte, pouco interesse terá no controlo da qualidade das despesas feitas com o erário público.
Em Cabo Verde, provavelmente, há municípios a mais e a sustentabilidade de vários deles é demasiado precária. Dos municípios , num total de vinte e dois a partir dos 14 existentes em 1993, segundo um estudo datado de 2015, as receitas próprias representam, em média, 32% das receitas totais, variando entre os municípios de 3% a 58%. As transferências do Estado representam em média 45% das receitas totais e variam entre 97% a 19%. E o esforço para arrecadar receitas fiscais é bastante baixo. Daí que as condições para a democracia local não sejam as ideais. Compreende-se assim porque persistem muitas das insuficiências que ainda pesam na afirmação da democracia local, nomeadamente as fragilidades na responsabilização política e na prestação de contas, a tentação para o caciquismo, a transformação dos municípios em campo de batalha entre o governo e a oposição e o eleitoralismo permanente que induz dependência na população.
É evidente o desenvolvimento autárquico verificado em Cabo Verde desde das primeiras eleições em Dezembro de 1991 e os extraordinários ganhos que representou para as populações de todas que ilhas. No entanto, é preciso identificar e ultrapassar as fragilidades na governança local e focar mais na melhoria da qualidade de vida das pessoas e do ambiente circundante, com mais segurança, acesso à habitação e a espaços público e mais conectividade. Também será importante saber dosear o papel de promotor e facilitador de iniciativas diversas, sociais, culturais ou empresarias, e contribuir para fazer dos munícipes os verdadeiros protagonistas na arena pública.
As próximas eleições são as nonas a ter lugar e já convinha equacionar os problemas dos municípios noutra óptica, considerando os desafios que o país tem pela frente. Há que ter presente que Cabo Verde não se confunde com o somatório dos seus municípios, que a entidade concreta da ilha nas suas especificidades deve ser assumida e que, para prossecução do interesse nacional, ter-se-á que potenciar estrategicamente todas as valências existentes.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1199 de 20 de Novembro de 2024.