sexta-feira, novembro 28, 2025

Cabo Verde não precisa de resgate: precisa é de mais sentido de responsabilidade da sua classe política

 As chuvas torrenciais no Tarrafal, S. Miguel e Santa Cruz, que provocaram a morte de uma pessoa e estiveram na origem de perdas diversas de animais e de outros bens da população, também ainda causaram estragos consideráveis nas casas, nas propriedades agrícolas e nas infraestruturas rodoviárias e outras. O inesperado do acontecimento a meio de Novembro, praticamente fora da época das chuvas, e a comoção provocada por mais um evento climático extremo, depois do que aconteceu em S. Vicente em Agosto último,não deixam de criar preocupação geral quanto ao que o futuro tem em reserva. Pelas reações políticas imediatas, percebe-se a propensão para com mais uma calamidade se fazer da intervenção do Estado matéria de disputa entre os partidos, quanto ao seu escopo e abrangência. Estão para breve as eleições legislativas.

Catástrofes naturais, pandemias e outros choques externos deviam ser motivo para demonstrações unânimes de solidariedade nacional por várias razões. Uma delas é que, face a qualquer crise, um país como Cabo Verde não pode dispensar solidariedade internacional, e convém que ela tenha correspondência nacional para ser mais substancial e efectiva. Uma outra razão é que o sentido de comunhão na sociedade gerado na adversidade pode servir de base a uma forte vontade geral, primeiro, para reparar rapidamente os estragos e enfrentar as vulnerabilidades criadas e depois para avançar com reformas que servirão de prevenção a futuras crises.

Evita-se no processo atentação de vitimização das populações e de instrumentalização das crises para ganhos políticos.

E deixa-se em aberto a possibilidade, mesmo num quadro do contraditório, de cooperação futura dos partidos na busca de soluções para os problemas actuais no terreno, que comprovadamente amplificaram o impacto das calamidades. Também poderá ajudar na concretização das reformas indispensáveis para as conter.

É fundamental que se enverede pelo caminho de não partidarização das respostas às calamidades. A tendência é tornarem-se mais frequentes, provavelmente mais extremos devido às mudanças climáticas. A última coisa que pode acontecer é o país deixar-se atrasar nas respostas pelas disputas partidárias e pela falta de cooperação de uma população pouco incentivada à auto responsabilização pelas políticas de vitimização em voga.

Nos países dos outro lado do Atlântico, muitos deles pequenos estados insulares como Cabo Verde, são frequentes os desastres naturais e numa escala nunca antes verificada nestas ilhas. Assim como são recorrentes as inundações, os furacões ea destruição das zonas costeiras também o é o ânimo das pessoas em reconstruir depois das catástrofes. Há, ainda, um esforço organizado e cada vez mais efectivo para salvar vidas, conter estragos e assegurar o essencial aos mais expostos, tanto durante o flagelo dos fenómenos naturais como posteriormente, para as pessoas regressarem à sua vida, ao trabalho e aos negócios.

Recentemente como furacão Melissa a ilha de Jamaica sofreu perdas, segundo vários relatos, calculadas entre dois a oito bilhões de dólares , ou quase um terço do PIB anual. Ainda bem que, a pensar na minimização dos estragos e reconstrução do país, foi adoptada uma complexa estrutura financeira com várias camadas, incluindo fundos nacionais para necessidades imediatas em abrigos e mantimentos e um fundo de seguros com vários intervenientes internacionais e regionais, que vai permitir que a economia se recupere e os planos de desenvolvimento tenham continuidade. Cabo Verde já tem o fundo de emergência eo fundo soberano para respostas institucionais e, na contingência de vir a sofrer eventos climáticos extremos com mais frequência, o Estado deverá apoiar e incentivar o recurso de privados a planos de seguro que ajudem a minimizar efeitos de desastres naturais.

A maior dificuldade para o país enfrentar a nova realidade ditada pelas mudanças climáticas está em ultrapassar o excessivo eleitoralismo que caracteriza muito da actividade política actual. O ambiente crispado não facilita debate entre os partidos sobre como proceder com as reformas que podiam preparar as ilhas para responder a desastres naturais. Nem se nota convergência para fazer cumprir o que já existe. Por exemplo, não é fácil levar os municípios a fazer uma melhor gestão do território urbano quando muito da política local é afectada por práticas de campanha política permanente. E, sem isso, será muito difícil conter estragos, perdas de bense destruição de infraestruturas em caso de chuvas torrenciais.

Numa outra perspectiva, é difícil manter uma cultura de respeito pela autoridade do Estado quando se procura justificar roubos significativos de energia e água com necessidade de pessoas “desenrascarem”, fazendo ligações clandestinas ou mostrando compreensão pelos desvios com a proposta de electricidade de “graça”. Além de porem em séria situação financeira as empresas do sector e comprometerem a sua capacidade de fornecimento desses bens públicos com qualidade e fiabilidade, normaliza-se uma postura de desafio às leis e de falta de responsabilidade cívica. E isso não deixa de afectar outras áreas de interação na sociedade, com impacto directo na ordem e tranquilidade públicas.

O habitual eleitoralismo, já exacerbado pela proximidade das eleições, torna as coisas mais difíceis quando passa a impressão de se poder ter “tudo, em todo lugar e ao mesmo tempo”. Em consequência não parece existir preocupação com compatibilizar reivindicações com recursos disponíveis, aliás procura-se tirar da equação a necessidadede crescimento económico sustentável para as suportar, nem há uma postura compromissória que poderia trazer razoabilidade às negociações. Greves ao suceder-se umas após outras, a parde carências e ineficiências, com origem em causas múltiplas e complexas que apesar dos transtornos noutras situações seriam tomadas de outra forma, passam a imagem de um país em permanente sobressalto.

Uma imagem que não condiz com a forma como Cabo Verde é visto no mundo pelas organizações internacionais, agências de rating e por operadores económicos ou pelos turistas de diferentes país que cada vez mais chegam não só às ilhas turísticas mas a todas outras. Percebe-se que há uma tendência para fazer política projectando um quadro de desesperança do qual pretende-se resgatar o país não com soluções nem com políticas alternativas. Ao se afirmar anti-elites acaba por negar o diálogo democrático e a aposta passa a ser quebrar as regras do jogo, tido como viciado em detrimento do “povo”. O ambiente político assim criado torna ainda mais difícil reencontrar o equilíbrio que poderia permitir o país enfrentar os múltiplos desafios que o mundo de hoje representa e as policrises entre as quais as potenciadas pelas mudanças climáticas que tornam o futuro menos previsível.

Cabo Verde não vive sob a ameaça permanente de fenómenos climáticos extremos do tipo dos que assolam as ilhas a oeste nas Caraíbas. O país é o que é porque foi moldado pelo extremo de secas cíclicas e correspondente carestia e fomes periódicas. Daí não saiu um povo triste, fatalista ou sentindo-se vítimado mundo. Pelo contrário. Por onde emigrou ao longo de séculos afirmou sempre com orgulho a sua caboverdianidade e procurou manter por várias formas a sua relação profunda de afecto com a sua terra e a sua ilha.

A convivência com escassez profunda e demasiadas vezes dramática de alimentos e outros bens não fez do caboverdiano um dos “condenados da terra” que precisa de resgate. Não será, pois, pelas fragilidades ainda existentes reveladas por desastres naturais que irá cair na desesperança. Pôr-se na condição de vítima como parecem pretender as forças políticas abraçadas no eleitoralismo e a virar para esquerda entre o paternalismo e o assistencialismo não é certamente o caminho. Liberdade e cidadania plena para todos é a base para se construir a prosperidade e encontrar a felicidade.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1251 de 19 de Novembro de 2025.

sexta-feira, novembro 21, 2025

Ultrapassar obstáculos e crescer mais para combater a pobreza

 Em discussão está o Orçamento do Estado (OE) de 2026. Considerando que as legislativas vão se realizar entre abril e junho, trata-se de um OE que vai ser executado em grande medida na próxima legislatura e por outro governo, mesmo que seja da mesma cor política. Em qualquer das circunstancias é um OE para o futuro e como tal deverá merecer a devida atenção e ponderação no processo da sua aprovação. Em simultâneo servirá para que os cidadãos tenham já uma primeira noção de como os partidos veem o país a confrontar os desafios actuais e os do médio e longo prazo.

O relatório da política monetária d oBanco de Cabo verde prevê “um abrandamento do crescimento da economia nacional, de 7,2 por cento em 2024, para 5,5 por cento em 2025, 4,8 por cento em 2026 e 5,0 por cento em 2027”. Parece estar em convergência com as previsões do FMI e do Banco Mundial que apontam para taxas até 2029 próximas do potencial de crescimento do país à volta de 5%. Essas taxas poderão variar para mais ou para menos, conforme a realidade externa for favorável ou não, designadamente para o turismo e para as exportações. Em 2024, a taxa do PIB conseguiu atingir 7,2%, mas também pode ir em sentido contrário se houver quebra na dinâmica da economia mundial ou, então, como aconteceu este ano, se o país for fustigado por algum desastre natural.

É evidente que, se Cabo Verde quer ver melhorado essas previsões, tem que fazer subir o potencial da sua economia, aumentando a sua produtividade e competitividade. Esse é o grande desafio que tanto se coloca aos partidos da governação quanto aos caminhos a seguir para atingir esses objectivos como também exigirá da sociedade cabo-verdiana um outro engajamento e atitude para vencer os múltiplos obstáculos à realização desse desiderato. Não é à toa que não se tem conseguido avançar ao passo certo com as reformas necessárias para aumentar o potencial da economia, nem se conseguiu melhorar a eficiência do sector empresarial do Estado, nem ainda diminuir os custos de contexto e os custos dos factores.

Na sua última missão, no início de novembro, o FMI propôs-se analisar entre várias matérias as implicações da questão com CVInterilhas, o custo salarial da administração pública e a redução das despesas com bens e serviços. Incluiu também na análise o reforço de execução dos investimentos. Já na nota final da missão constatou “desaceleração no investimento”. Num padrão que parece repetir-se no fim dos ciclos legislativos, o FMI, mesmo nas entrelinhas, deixa transparecer com mais clareza as suas preocupações. Deve-se ter isso em conta, até porque quem for governo, provavelmente logo à partida, vai ser alvo de grande pressão para fazer correcções de percurso.

Ao novo governo, em2016, foi retirado apoio orçamental até que o acordo de privatização daTACV fosse assinado, o que viria a acontecer em fevereiro de 2019.

O quadro global que o FMI apresentado país,mesmo que com riscos, considerando as vulnerabilidades a choques externos, é globalmente positivo como se pode constar, de entre outros indicadores, das taxas de crescimento económico, dos números da inflação, da diminuição da dívida pública e das reservas de divisas, que poderão atingir em 2025 7,3 meses das importações. Mas não é de ignorar as insuficiências nas reformas e no investimento, nem a crescente rigidez orçamental com o aumento das despesas, em particular das despesas como pessoal, que de 23.431 milhões de escudos em 2023 passou para 29.177 milhões (+24,5%) em 2025   e agora se prevê 32.936 milhões para 2026  (+12,8%). Ou seja, se não se fizer as escolhas certas, o grande objectivo de aumentar o potencial da economia do país e abrir a possibilidade de a prosperidade chegar a todos pode não ser atingido.

Infelizmente, em Cabo Verde não se reflecte suficientemente sobre o ponto a que o país conseguiu chegar a partir do início da década de noventa, em que definitivamente se deixou para trás o modelo de desenvolvimento na base de reciclagem da ajuda externa e se fez a transição de uma economia estatizada para uma economia de mercado. Com as reformas feitas, o potencial da economia aumentou, assim com a produtividade e o volume de investimentos, tanto nacionais como estrangeiros, e o país, no fim da década, já atingia os níveis mais altos elevados de crescimento. A estabilidade económica criada pelo acordo cambial e a estabilidade política suportada no sistema de governo parlamentar asseguraram que a prosperidade continuasse. É preciso que agora Cabo Verde dê um salto para que a riqueza nacional cresça mais com o esforço qualificado de maior número de pessoas e que os benefícios sejam abrangentes e cheguem a todos, eliminando definitivamente a pobreza.

Pode-se perguntar se há vontade e a energia para ultrapassar os obstáculos e crescer mais. A tentação, em certos círculos, será talvez a de fazer “o mais do mesmo”, a passo e em sintonia com as recomendações e os programas da cooperação e dos financiadores internacionais e seguindo a agenda das organizações multilaterais. Afinal, o país está a crescer à volta de 5% do PIB e, com o alargamento do Estado Social, pode-se dar uma resposta para à pobreza e à pobreza extrema existentes. O problema é que não se consegue manter estado social sem crescimento económico dinâmico e sustentável.

De facto, dificilmente se obtém níveis altos de crescimento quando recursos são alocados para despesas cada vez mais pesadas como pessoal da administração  pública, em detrimento de investimentos públicos. Para além disso, reforçam-se certos interesses corporativos, geralmente inibidores da inovação, e se desincentiva o investimento directo estrangeiro e o investimento privado nacional, essenciais para a criação do emprego e para o aumento das exportações.

Perante a complexidade da situação há quem se sinta atraído por soluções simples, de quebrar as regras do jogo e de negar o diálogo plural na busca de soluções. Promete-se um mundo de “almoços grátis” e não se reconhece o quanto é preciso em termos de instituições, de conhecimento e de cultura cívica e de espírito crítico e cooperativo para construir a riqueza das Nações. Posturas messiânicas de resgate, por serem logo à partida de exclusão de parte da comunidade, produzem círculos viciosos que perpetuam a pobreza.

No passado foram as lutas de classes e a luta contra exploração do homem pelo homem. Agora são as lutas contras as elites. Como facilmente pode-se observar, tais vias tendem em desembocar em violência e mais pobreza, enquanto o que já foi provado é que a prosperidade caminha passo e passo com a liberdade. Importa não cair no canto da sereia dos messias, nem se deixar ficar pela inércia que favorece os interesses instalados. Na discussão da OE devia-se ver mais ousadia, guiada pelo conhecimento, para o país ter mais possibilidades de vencer.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1250 de 12 de Novembro

sexta-feira, novembro 14, 2025

Não se combate a pobreza abandonando o jogo democrático

Hoje fala-se muito na crise da democracia, mas contraditoriamente tende-se a fazer pouco para a conter ou inflectir. Em particular, os partidos políticos, personalidades políticas, académicos e comentadores dedicam muito tempo a lamentar e a discutir o declínio da democracia. Mas claramente que não se faz o suficiente para evitar a descredibilização das instituições e a degradação do discurso político, nem se procura refrear o excessivo protagonismo dos políticos e combater a apatia da sociedade civil e os efeitos corrosivos das redes sociais. Pelo contrário, no que parece configurar um exercício de hipocrisia política, percebe-se que de vários sectores, a par das lamentações públicas, há uma intenção ou uma aposta em ganhar com os sobressaltos sucessivos criados, com a imagem do caos projectada e com a desesperança alimentada.

O resultado, como se tem observado em vários países, é o aprofundamento da crise com perdas para os partidos tradicionais e ganhos crescentes para os extremistas, que actualmente são maioritariamente da extrema-direita, mas em alguns casos específicos são de sectores radicais da esquerda. Ou seja, só se perde fazendo uso de tácticas políticas que pressupõem algum abandono dos princípios e valores democráticos. Esse facto, porém, não tem impedido muitos partidos de continuar a fazer o mesmo, diminuindo o fosso anterior entre eles e os radicais e em alguns casos até abrindo-lhes o caminho para o governo. Ainda bem que, como se comprovou nas eleições nos Países Baixos na semana passada, o eleitorado pode sempre inverter a situação particularmente quando confrontado com a incompetência dos populistas na governação.

Cabo Verde como qualquer democracia moderna vem dando sinais de crise no processo democrático que não destoam muito do que se verifica noutros países democráticos. Há alguma fragilização das instituições, tensões entre órgãos de soberania e falhas no diálogo interpartidário criam bloqueios e os municípios parecem campos de batalha para confrontação política partidária com o governo. Os partidos, entretanto, focados no poder e cada vez mais dependentes dos lideres, falham em produzir dinâmica interna que permita produzir discurso político elevado e pedagógico e em propor soluções inovadoras para o país. Na relação externa com a sociedade não se mostram capazes de estabelecer uma ponte para ajudar a ultrapassar a crise de representatividade e a potenciar a energia e a criatividade existentes. Sem um impulso renovador que poderia forçar um novo olhar sobre os problemas existentes, a tendência é para manter o status quo, mesmo que venha a verificar-se alternância na governação.

Por isso é que com as forças políticas já a apressar o passo para as legislativas no segundo trimestre do próximo ano é grande a tentação de se cair no “vale tudo” para conquistar o poder. Não há motivação para se ter bem presente o estádio a que Cabo Verde já atingiu e propor soluções alternativas para os problemas novos e para os que têm arrastado durante décadas, de forma a aumentar o potencial de crescimento e lançar o país para um outro patamar de desenvolvimento. A estratégia, pelo contrário, é de procurar aproveitar quaisquer incidentes, insuficiências ou falhas na prestação de serviços ou ainda conflitos laborais para demonstrar que se está a descambar para a ingovernabilidade. Também inclui a adopção de uma postura de negacionismo que põe em causa indicadores macroenómicos, estatísticas oficiais e avaliações de performance em vários domínios (democracia, liberdade económica, liberdade de imprensa, desenvolvimento humano) apresentadas por organizações internacionais.

Uma outra vertente nessa estratégia que ajuda a consolidar esse negacionaismo é pôr em ênfase no quão distante se está de cumprir em “absoluto” com certos direitos como o direito à saúde, à educação e à habitação para se minimizar os avanços já conseguidos. Omite-se que são direitos que para seu exercício implicam, designadamente recursos, tempo para criação de estruturas e formação especializada e ainda vontade política na definição das prioridades de investimento estatal, considerando que as receitas do Estado são sempre escassas. Assim, por um lado, alimenta-se a insatisfação e a indignação pelo não exercício pleno de direitos. Por outro, dificulta-se a possibilidade de um debate aberto e construtivo de como se aproximar do ideal, em termos de qualidade e abrangência na concretização desses direitos, a partir da base real proporcionada pela capacidade de produção de riqueza do país.

Não é estranho a esses argumentos a velha contenda de uma certa esquerda com a democracia liberal por considerar imprescindível a garantia dos direitos civis e políticos para a criação da base de prosperidade necessária ao exercício dos direitos sociais e económicos. Mesmo depois das experiências comunistas que falharam em garantir prosperidade sem liberdade, com custos enormes em vidas perdidas, pobreza e atraso, ainda se procura recuperar os velhos argumentos de uma esquerda que se considera moralmente superior. Tudo para que em nome de uma pretensa luta contra a desigualdade social de pôr em causa a necessidade de se ter uma ordem económica na base da liberdade que é indispensável para o crescimento económico e o desenvolvimento sustentável.

Com uma abordagem cínica em relação à democracia e ao exercício dos direitos quer-se trazer de volta a velha crença na distribuição da riqueza sem uma base sustentável da sua criação, quando a verdade é outra, como já foi comprovada em outros países e em Cabo Verde desde 1991. O que importa fazer agora é aumentar a eficiência do sistema económico, promover o conhecimento e fazer as reformas que irão permitir aumentar o potencial da economia. Para isso é fundamental que haja mais democracia, e não menos. Não é procurando deitar tudo abaixo, negar os avanços feitos e tentar recuperar abordagens antigas, que falharam redondamente, que se vai dar o salto em frente para levar a prosperidade a todos.

Como se vai fazer e quem vai fazer e com que recursos isso deverá ser decidido não por métodos revolucionários de paralisar sectores, de criar poderes paralelos ou de instigar paixões, medos e ressentimos, mas por persuasão que é a via da democracia. De facto, como o autor americano David Brooks, “as instituições democráticas são criadas para aumentar a deliberação, a conversação e a persuasão na sociedade. As eleições decidem quem foi mais eficaz em persuadir os votantes”. No processo de persuasão na base do respeito pelas regras do jogo democrático e servindo-se dos métodos da razão e aderindo aos factos deve-se deixar para trás as memórias de Luta na perspectiva de guerrilha política, de emboscar adversários e de criar realidades alternativas pela via da propaganda.

Pela persuasão o jogo é de soma positiva, enquanto na Luta é de soma zero e só resulta em estagnação e pobreza, como a história já bem demonstrou. Afinal os dez grãozinhos de terra “el é di nós, é ca tomad na guerra” como canta o saudoso Jorge Cornetim.   

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1249 de 05 de Novembro de 2025. 

sexta-feira, novembro 07, 2025

Preservar a estabilidade que o sistema parlamentar de 92 proporcionou

 A questão dos poderes do presidente da república é um tema de debate actual em vários países e nos mais diferentes sistemas políticos. Nos Estados Unidos com o sistema presidencialista a grande discussão é se no quadro da teoria executiva unitária o presidente tem competência para demitir qualquer titular de cargo público, incluindo as autoridades reguladoras e possivelmente o governador do banco central. Na França semipresidencialista pergunta-se se o presidente devia renunciar ao mandato porque em sucessivas tentativas não consegue uma maioria parlamentar favorável às suas políticas. Em Portugal e em Cabo Verde, de sistemas de governo parlamentar, questiona-se a partir de que limites o exercício dos poderes deixa de ser moderador e de não ingerência para ser perturbador e desestabilizador.

Em qualquer dos casos, o maior protagonismo dos presidentes, seja nos sistemas presidencialistas ou semipresidencialistas, seja nos sistemas parlamentares, acaba por afectar os outros órgãos de soberania enfraquecendo o equilíbrio dos poderes e os pesos e contrapesos (checks and balances) do sistema. Nos primeiros casos em que o presidente governa, como na América, o congresso vê a sua competência fundamental de cobrar impostos e de alocar fundos limitada por um presidente que arbitrariamente determina tarifas alfandegárias e selectivamente recusa-se a disponibilizar às entidades públicas meios aprovados previamente por lei. Também na França sem uma maioria em linha com o presidente e com a dificuldade dos partidos em conseguir chegar a acordo, instala-se a instabilidade como vem acontecendo com quedas sucessivas de governo.

Nos regimes parlamentares, o excessivo protagonismo do PR aumenta a probabilidade de tensões com o primeiro-ministro e o governo e fragiliza o próprio parlamento. A oposição é tentada em procurar alianças extra-parlamentares, incluindo a aproximação táctica ao presidente da república, e no limite a criar caminho para a dissolução do parlamento. A instabilidade governamental que se torna regra, como se vê no caso português, pode levar à ascensão de forças antissistema. Noutros casos gera mal-estar que pode propagar-se para outras instituições do Estado, cujos titulares são nomeados pelo PR sob proposta do governo, e até para a relação governo/sociedade, quando interesses vários pressionam e se põem a jeito para que a magistratura de influência se configure como ingerência nas competências do governo.

Com eleições presidenciais no próximo ano, no mês de Janeiro em Portugal, e em Novembro possivelmente em Cabo Verde, o debate está aberto em como ultrapassar esses riscos de instabilidade política e de mal-estar social que veem ameaçando a democracia. A acicatar o debate está o constitucionalista português, Vital Moreira, com o seu novo livro, “Que presidente de república para Portugal”, em que enumera requisitos para o cargo: (i) compromisso incondicional com os valores constitucionais; (ii) percepção clara do papel do Presidente,especialmente quanto aos limites dos seus poderes; (iii) estrita imparcialidade partidária, como representante unitário de toda a coletividade nacional; (iv) adesão firme ao princípio republicano da separação entre interesse público e interesses particulares ou de grupo; (v) prudência, ponderação, recato institucional e elevação nas suas decisões e declarações! Entretanto, unanimidade parece existir entre os candidatos a presidente da república que é de evitar o tipo de magistratura presidencial do actual PR, Marcelo Rebelo de Sousa.

Em Cabo Verde, o PR José Maria Neves em posicionamentos públicos e em reflexões nos discursos, entrevistas e recentemente em “notas avulsas” na sua página pessoal do Facebook deixa entender que tem estado a pensar detidamente sobre a Constituição e os poderes do presidente. Um resultado prático disso tem sido o que aparenta ser uma tentativa de expansão dos poderes do PR no quadro da competência partilhada em relação a alguns cargos públicos de nomeação dos titulares sob proposta do governo. É evidente que daí só pode vir mais tensão nas relações entre os órgãos de soberania, o que em certa medida é normal, mas não a ponto de interferir na continuidade da autoridade do Estado investida nas instituições.

A falta de recato institucional no processo, traduzido em declarações públicas provavelmente feitas para passar a culpa pela demora na nomeação de novos titulares ou para pressionar, deu origem a leituras públicas que estariam caducados e sem validade os cargos públicos que chegaram ao termo do mandato. Ainda bem que para além de algumas manifestações antissistema que sempre existem nas democracias ninguém andou a questionar a validade dos acórdãos do tribunal de contas e das decisões e pareceres do ministério público. Também é de valorizar a responsabilidade republicana dos titulares desses cargos em se manterem nos seus postos. De facto, nas repúblicas, mesmo nos casos extremos de desentendimento entre órgãos de soberania como acontece actualmente na América com a paralisia da administração federal por bloqueio de fundos, não há vazio. Os cargos de polícia e outros que encarnam a autoridade do Estado são exercidos sem que funcionários recebam o salário devido.

O PR que tem a função de velar pelo normal funcionamento das instituições deveria ser o primeiro a dar garantia da validade do exercício dos cargos pelos seus titulares até serem substituídos. Nas democracias os mandatos eleitorais é que não podem ser encurtados ou prolongados sem respaldo constitucional quanto às circunstâncias. Para os cargos que dependem do processo político entre partidos ou entre órgãos de poder político deve-se evitar sinais que podem pôr em causa as instituições.

Em particular em relação às forças armadas cuja subordinação ao poder civil é um pilar fundamental das democracias, a Lei de Defesa atribui ao PR, enquanto comandante supremo, a função de garantir a fidelidade das FA às instituições. Para isso pode aconselhar o governo que, de facto, dirige o Estado, mas em privado. Claramente que trazer para o público, em “notas avulsas” no Facebook, que nomeou o novo Chefe de Estado Maior “depois de limar algumas arestas” e que recusara uma primeira proposta “por razões que se prendem com ética republicana que orienta o funcionamento da instituição castrense”, não promove a lealdade institucional entre órgãos de soberania nem a confiança das FA que está na base da sua fidelidade à ordem constitucional.

Mas como diz Vital Moreira, “se o presidente da república se excede, se abusa dos seus poderes, não há meio nenhum de o impedir. Sem poder ser responsabilizado politicamente é de se exigir que seja cumprido o juramento de defender e de cumprir e fazer cumprir a Constituição para se ter a garantia do normal funcionamento das instituições. De outra forma é o caos que pode vir a instalar-se com a desconfiança entre órgãos de soberania, com a perda da autoridade do Estado e com a falta de confiança e previsibilidade quanto ao cumprimento actual e futuro das regras do jogo democrático, em particular quanto ao princípio da separação de poderes.

Com as eleições legislativas no horizonte e tendo em conta eventuais sinais de turbulência nas relações entre o PR e o governo devido à interpretação expansiva dos poderes do PR, há que fazer um esforço para regressar aos contornos constitucionais que nestes 35 anos de democracia garantiram ao país estabilidade política, condição essencial para o país continuar a crescer e a prosperar. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1248 de 29 de Outubro de 2025.

sexta-feira, outubro 24, 2025

Prémios Nobel apontam o caminho para o crescimento económico

 

Na semana passada o Comité Nobel nomeou para o Prémio Nobel da Economia Joel Mokyr, Philippe Aghion e Peter Howitt pela sua contribuição para a compreensão do papel do conhecimento e da inovação no crescimento económico. No ano anterior, os premiados tinham sido os economistas Daron Acemoglu, Simon Johnson e James Robinson por demonstrarem a importância das instituições para a prosperidade das nações. As escolhas do Comité Nobel denotam a preocupação actual com o crescimento económico num mundo de incertezas, tensões inflacionistas e dívidas públicas crescentes tanto dos países desenvolvidos como das pequenas economias.

Identificar os motores do crescimento económico sempre constituiu um objectivo de governantes, de simples empresários ou empreendedores e de também de estudiosos e investigadores do sector. Os óbvios candidatos são os recursos naturais, em particular, minérios, petróleo, diamantes, etc. A ideia é de os mobilizar para assegurar a produção contínua e sustentável de riqueza de forma a garantir prosperidade para todos. Isso, porém, nem sempre acontece porque se em alguns casos têm o potencial de contribuir para a riqueza das nações, em demasiados casos transformam-se numa espécie de maldição. E quando assim é, a sua exploração resulta em desigualdades crescentes, falência ou quase falência dos Estados sob o peso da dívida externa e populações marginalizadas submetidas à pobreza extrema.

Mas há outros candidatos para motores de desenvolvimento. Acemoglu e os outros prémios Nobel demonstraram que a qualidade das instituições constitui um factor para as nações não falharem, independentemente dos recursos existentes. É verdade que podem ser extractivas, enriquecendo uns em detrimento da maioria, ou inclusivas, facilitando a cooperação entre indivíduos e grupos, alimentando a confiança e renovando o sentido de pertença. Mas enquanto intangíveis as instituições, diferentemente dos recursos naturais aleatoriamente espalhados nos diferentes continentes, podem ser modeladas pela vontade e sentido de responsabilidade dos povos e nações. Trata-se, portanto, de uma escolha.

Joel Mokyr e os outros dois premiados encontram um outro factor de promoção da produtividade e de criação de prosperidade através da assunção de uma cultura do crescimento. Uma cultura aberta à divulgação do conhecimento, à possibilidade de mudança no conhecimento acumulado e à ideia de aplicação prática do novo conhecimento pelas pessoas. Para esses autores, o amor ao conhecimento e a curiosidade estiveram na origem do que chamam de iluminismo industrial que deu suporte à revolução industrial e, a partir daí, ao crescimento económico e à prosperidade geral, que mesmo com todas as desigualdades no mundo, nunca antes se verificara. Condena-se à estagnação, como bem demonstra a História, quem restringir ou não valorizar o conhecimento e desincentivar o acesso às tecnologias que os avanços do conhecimento tornam uma realidade a todo o momento.

Sendo intangíveis os factores de crescimento económico identificados, as instituições, o conhecimento acumulado e a curiosidade, estão ao alcance de todos permitindo contornar as vulnerabilidades várias, em particular as derivadas da falta de recursos naturais, da pequenez da população e da insularidade. O sucesso de economias como Singapura, Maurícias e Estónia vem fundamentalmente da aposta forte feita nesses activos intangíveis. Também em Cabo Verde pode-se correlacionar o crescimento económico médio de 5% em 1991 e 2019 com a instituição do Estado de direito democrático e da democracia.

Depois da Covid-19 e da contracção violenta da economia devida à interrupção do fluxo turístico para o arquipélago, seguiu-se a recuperação rápida com o regresso dos turistas, perfilando-se para continuar a crescer nos próximos anos acima de 5%, embora ainda muito dependente do turismo. O país pôde fazer isso porque as suas instituições e os serviços mostram um nível de qualidade, previsibilidade e constância que transmite confiança suficiente para investidores, turistas e a cooperação internacional se sentirem confortáveis para apostar no país.

Felizmente que Cabo Verde não passou pela mesma situação das ex-colónias portuguesas que levou praticamente ao colapso da administração pública com os regimes de partido único claramente inexperientes em matéria de administração do Estado. Aqui, diferente da Guiné que também era governada pelo mesmo partido nos primeiros cinco anos, a quase totalidade da administração pública do arquipélago já funcionava com cabo-verdianos antes da independência e garantiu a continuidade que evitou eventuais vazios institucionais. Com o advento da democracia foi mais fácil ajustar-se às práticas institucionais da ordem liberal internacional e facilitar o crescimento económico. Daí a referência, várias vezes repetida, que a governança em Cabo Verde destaca-se pela positiva das ex-colónias portuguesas, uma constatação que confirma a importância das instituições no desenvolvimento dos países.

O facto de estar a crescer acima dos 5% significa que as instituições estão a funcionar e os operadores económicos e cidadãos em geral depositam nelas um certo nível de confiança, não obstante as insuficiências de performance em vários sectores. É fundamental ultrapassar essas insuficiências e aumentar a eficiência geral da economia com melhor gestão do sector empresarial do Estado e diminuição dos custos de contexto. Ninguém devia procurar tirar dividendos políticos, ajudando a projectar a imagem de um país em estado caótico, o que não é verdade apesar dos problemas, alguns deles complicados. Pelo contrário, o esforço e o discurso político partidário devia estar focado em encontrar vias para aumentar o potencial da economia e crescer mais e também pronto para dialogar sobre as reformas necessárias e firmar os acordos de regime que forem necessários.

Não é com o país em permanente sobressalto a dar vazão a frustrações e ressentimentos que se vai poder ter a tranquilidade nas escolas e melhorar o sistema de ensino. Ou que se vai focar a atenção da sociedade nos avanços científicos e tecnológicos e apoiar o uso inovador do conhecimento e das novas ferramentas. Ou ainda que se vai espicaçar a curiosidade de jovens e crianças e estimular o pensamento crítico e incentivar a criatividade para que o país tenha uma cultura moderna de procura permanente de vias para continuar a prosperar. Com tal atitude de negativismo só se está a acenar as pessoas com a perspectiva de menos rendimentos e mais pobreza quando se desvia o foco do crescimento económico para a redistribuição na perspectiva de Robin dos Bosques a tirar dos ricos para aumentar na panela dos pobres.

A verdade é que Cabo Verde já viu esse filme e sabe qual é o desfecho: leva à estagnação, a mais pobreza e à tirania. O país soltou-se desse destino quando pôde construir as instituições de um Estado de Direito e recuperar a segurança, a liberdade e a confiança e, ao mesmo tempo, pôde investir sem peias no conhecimento, estimular a iniciativa e facilitar o empreendedorismo. Não é de se repetir os erros do passado particularmente quando, com tanta enfase nos prémios Nobel, se afirma o que é preciso fazer para construir e sustentar a prosperidade das nações. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1247 de 22 de Outubro de 2025.

O 13 de Outubro reforça a união para o país vencer

 

O 13 de Outubro é mais uma data que ficará inscrito na memória dos cabo-verdianos. Depois de uma sucessão brilhante de actuação da selecção nacional de futebol, a começar pela derrota infligida à equipa dos Camarões, seguida da extraordinária recuperação no jogo frente à Líbia que garantiu o empate e finalmente da retumbante vitória sobre Eswatini, consegui-se o inimaginável para um pequeno país insular: a participação no Campeonato Mundial de Futebol de 2026. A alegria dos cabo-verdianos não podia ser maior, as demonstrações da euforia que tomou conta de toda a gente verificaram-se em todos os pontos do país e nas comunidades no exterior.

Foi um momento extraordinário em que através do simbolismo da bandeira nacional, nas camisolas, nas mãos de adultos e crianças e nos carros em circulação, a Nação se reviu, toda ela, unida e com a sua autoestima reforçada. Passou a sentir com mais certeza de que, mesmo com parcos recursos e vulnerabilidades múltiplas e a exemplo da sua selecção de futebol, está ao seu alcance construir um futuro de sucesso e prosperidade. São momentos desses que relembram ao país a importância fulcral de se sentir parte de uma comunidade nacional capaz de potenciar a diversidade de experiência das suas gentes nas ilhas e na emigração e de mobilizar a enorme força afectiva que as liga aos “dez grãozinhos de terra espalhados no meio do mar”. Essa lembrança, pela intensidade dos sentimentos de pertença à comunidade que a suscitou, vem no tempo certo.

Na conjuntura actual de grandes incertezas, um factor de crise geral são as forças centrífugas, constituídas por extremismos diversos altamente polarizantes e individualismos exacerbados potenciados pelas redes sociais, dirigidas para a desunião das comunidades nacionais. Sem forças centrípetas a pressionar em sentido contrário para assegurar o centro e manter o equilíbrio, poderá verificar-se a instabilidade na sociedade, a perda de foco individual e a desesperança geral. No dia 13 de Outubro, Cabo Verde demonstrou que os ingredientes estão todos lá para mobilizar as forças que ajudam a reequilibrar o país, que permitem a continuação da busca pelo bem comum e renovam a satisfação de “ter nascido cabo-verdiano” cantada pelo poeta.

Nos últimos anos vem-se assistindo nas democracias à polarização que impede o diálogo baseada numa realidade partilhada, ancorada nos factos e que busca a verdade em aproximações sucessivas. Sem diálogo, os extremos retroalimentam-se, descredibilizam as instituições e desacreditam a democracia. E sem política democrática a sociedade fica impossibilitada de identificar, equacionar e encontrar soluções para os problemas.

O mais estranho em tudo isso é a disponibilidade, em vários momentos, dos partidos tradicionais e do centro, de titulares dos órgãos de soberania e de sectores da sociedade como as universidades e os média em contribuir sem cuidado para a fragilização da ordem sociopolítica existente. Uns fazem isso por entretenimento ou à procura de audiência, outros por promoção pessoal e outros ainda apostando no processo caótico posto em movimento pelas suas próprias acções. Acrescenta-se a isso a tendência para os actores políticos exacerbarem nas suas performances, ultrapassando a fronteira das suas competências, e com isso explorar o culto dos “enfants terribles” ou de líderes extravagantes que cativam pelo entretenimento e pela impunidade de que parecem beneficiar.

Um sintoma do que vem acontecendo em países democráticos é um certo desorientamento da sociedade civil face aos desafios do presente e futuro que em Cabo Verde no último fim-de-semana transpareceu nas manifestações em algumas ilhas. Com algumas centenas de pessoas percebe-se a relutância em participar para não ser rotulado em termos partidários. Também se sente a dificuldade em pôr em devida perspectiva os problemas que sucessivamente parecem afectar sectores-chave e a pouca esperança depositada nos partidos existentes, não obstante ver-se a solução num terceiro partido para romper com o bipartidarismo.

Realmente o país, apesar da sua estabilidade e democracia, tem problemas, uns derivados da falta de eficiência na utilização de recursos e outros gerados pelo próprio crescimento económico de mais de 5% em média, sem que visões plurais do que poderá ser a sua melhor via para florescer no actual mundo de incertezas sejam articuladas. E a proximidade das eleições legislativas não é tranquilizador. A alternativa ao partido no poder, com o lastro do desgaste de 10 anos de governação, é a oposição recentemente capturada pela política populista que cinco anos depois ainda não convenceu na gestão municipal da capital. Um cenário dessa natureza deveria levar os principais actores políticos a contribuírem para aprofundar a união nacional e aumentar a confiança, com adesão efectiva às regras do jogo democrático, disponibilidade para encontrar soluções compromissórias e abertura para incentivar o debate mais aberto, livre e crítico. Infelizmente não é o que acontece.

Parece mais forte continuar a fazer o mais do mesmo. Um exemplo é depois de o governo ter retirado um manual escolar sobre o crioulo, após receber um parecer do Ministério Público para se proceder à “supressão da norma ortográfica constante do manual por não ter sido objecto de aprovação por diploma da Assembleia Nacional”, o ministério ter programado para o Dia Nacional da Cultura uma formação sobre as bases de escrita do crioulo através do ALUPEC. Ora, o ALUPEC também não foi aprovado pelo parlamento, mas sim por um decreto-lei do governo em 2009. Conhecendo as fortes controvérsias à volta da escrita do crioulo cujo último episódio levou ao parecer da PGR, ignorar regras e procedimentos não é a via para ultrapassar questões fracturantes da unidade nacional.

No mesmo sentido vai o presidente da república, num discurso recente na Universidade de Santiago, ao considerá-las “polémicas” que devem “ser ultrapassadas com consenso científico”. Aliás, proclama logo a seguir que “a comunidade científica é unânime em reconhecer que o ensino da Língua Cabo-verdiana (…) facilita a aprendizagem do português e de outras línguas”. Unanimidade, porém, não é algo que se espera das comunidades científicas nem em campos bem consolidados como o da física quântica ou das vacinas quanto mais da linguística e das ciências cognitivas. E, de facto, não se promove pensamento crítico, debate aberto e espírito inovador nas universidades com definição de linhas de orientação para pesquisa futura e criação de um “movimento” para escrever a história, a partir de uma posição de autoridade em modo de partilha de convicções.

Também não se garante a unidade do Estado quando, como aconteceu no dia 9 de Outubro, o parlamento resolveu autoflagelar-se com a questão da eleição dos órgãos externos sabendo que resultam do processo político negocial entre os partidos cujos votos somam uma maioria qualificada. Atirar culpas uns aos outros faz parte do jogo político e por isso e pelos seus compromissos ou bloqueios são responsáveis perante os eleitores. O que não devem fazer é criar vazios ou zonas cinzentas na autoridade do Estado ao considerar caducos ou sem validade os cargos porque o PR os assim quis rotular, não seguindo o princípio constitucional de prorrogação do mandato dos cargos público até à substituição dos titulares. É bom lembrar que, nas democracias com sufrágio directo e periódico, são os mandatos eleitorais do presidente da república, dos deputados e dos eleitos municipais que não podem ser prolongados ou encurtados, salvo nos casos constitucionalmente admitidos.

Nem as Forças Armadas, sector sempre sensível nas democracias, ficaram intocadas. Não é à toa que a Lei de Defesa Nacional ( Lei 62/IV/92) ao definir a função do comandante supremo das forças armadas, estabelece que o PR deve assegurar fidelidade das FA à Constituição e às instituições do Estado e aconselhar, em privado, o governo acerca da política de defesa e das FA. Pela primeira vez questiona-se se “nomear, sob proposta do governo” o chefe de estado maior, como estabelece a Constituição, significa realmente escolher e nomear. Há quem se indague se a indicação não deveria vir do interior da corporação. Tais burburinhos não contribuem para a estabilidade da democracia que tem na sua base a subordinação das forças militares ao poder civil. A declaração do PR, na radio nacional, para se evitar a suposta governamentalização das FA prima pelo descuido por eventual ressonância com resquícios de cultura corporativa dos tempos em que a instituição, como braço armado do partido, estava acima do Estado, algo que o PR não pode ignorar.

A democracia, sendo um sistema político na base de regras e procedimentos, tem a vantagem de permitir prosperar em liberdade e de abrir portas para a todos procurarem a felicidade. Essa é uma verdade que a vitória celebrada no 13 de Outubro deve ajudar a consolidar. De facto, para um país como Cabo Verde realizar o feito de ir para o mundial de futebol só foi possível porque todo o sistema de qualificação se rege por normas conhecidas e que por isso há confiança de que com esforço e foco o sucesso está ao alcance de todos. Manter a confiança na democracia, assegurando o cumprimento do jogo democrático, é a via, não obstante os sobressaltos, para o sucesso que todos desejam e merecem.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1246 de 15 de Outubro de 2025.

sexta-feira, outubro 17, 2025

Fortalecer a sociedade e ajustar o país aos desafios actuais

 

Actualmente ninguém tem dúvida que os ventos da história não estão a soprar a favor do progresso geral como até recentemente se acreditava. Desde a segunda guerra mundial e da ordem económica liberal, que foi então criada, e particularmente depois da guerra fria e da derrocada da utopia comunista, instalou-se um optimismo em relação ao futuro da humanidade que agora dá sinais de soçobrar. Suportado sobre os princípios da dignidade humana e do respeito pelos direitos fundamentais e pelo primado da lei, as portas pareciam ter sido abertas para o crescimento económico e prosperidade geral que a globalização e o multilateralismo colocariam ao alcance de todos. Infelizmente, o mundo mudou, a ordem existente cede a olhos vistos face à emergência de um mundo multipolar marcado por conflitos geopolíticos e relações transacionais, criando na sua esteira incertezas várias que já não permitem que se espere sempre “mais e melhor”.

Para o sociólogo alemão Andreas Reckwitz os tempos de hoje trouxeram de volta a sensação de perda. Para trás vão ficando expectativas de elevação dos padrões de vida e de expansão da autorrealização. No seu livro “O fim das ilusões” escreve o autor que com as incertezas não há garantia que as perdas sejam episódios transitórios e que até podem ser irreversíveis. E é essa percepção que torna um número crescente de pessoas nas democracias sensíveis ao populismo que quer regressar aos tempos áureos do passado ou que apela ao resgate do poder das mãos da elite. Adverte, entretanto, que o populismo canaliza a raiva sobre o que desapareceu, mas fornece apenas ilusões de recuperação.

Perante o panorama mundial a desenhar-se cujos contornos a vários níveis ainda não se pode fixar, sabe-se, porém, que irá alterar cadeias de valor e de abastecimento mundial com impacto em particular nos países mais frágeis. Também irá diminuir a importância das organizações multilaterais limitando o acesso a investimentos cruciais para o desenvolvimento e cristalizar novas relações de dependência e subordinação à volta dos eixos do mundo multipolar emergente. Provavelmente solavancos políticos e socio-económicos far-se-ão sentir em vários países à medida que vão-se adaptando às novas circunstâncias.

Muitos ainda ficarão vulneráveis às alterações climáticas cuja mitigação dos seus efeitos irá sofrer com a falta de coordenação global e de engajamento das maiores potências mundiais. Um outro factor disruptivo de grande alcance será o impacto da inteligência artificial (IA) na economia. Pelos enormes investimentos dirigidos para o sector e pelo comportamento das bolsas de valores em todo o mundo vê-se que expectativa é de aumentos rápidos de produtividade para quem dominar a tecnologia. Algo que certamente irá agravar ainda mais a desigualdade dentro dos Estados e entre os Estados. Também, ao levar eventualmente a mais desemprego e a menos rendimento poderá aprofundar o sentimento nas pessoas que o contrato social da democracia de justa distribuição da riqueza nacional não está a ser cumprido. O aumento das desigualdades não deixará de aumentar a pressão migratória global nem de, no interior dos países, afectar negativamente as minorias, em particular as imigradas.

Para Andreas Reckwitz, os desafios da nova situação vão exigir três Rs: Resiliência, Reavaliação e Redistribuição. Pela resiliência quer-se fortalecer as sociedades (saúde, segurança, instituições da democracia liberal, para que sejam menos vulneráveis a eventos negativos. Pela reavalização quer-se procurar, com espírito inovador, conhecimento e iniciativa, transformar em possibilidade de fazer diferente ou em vantagem o que se perdeu, ou se foi forçado a deixar para trás, por causa de mudanças tecnológicas, climáticas ou mesmo de costumes. Pela redistribuição quer-se mostrar a preocupação em garantir que ninguém ou grupo social fique mais prejudicado quando há perdas, nem que deixe de beneficiar dos ganhos obtidos com o melhor desempenho nas novas circunstâncias.

O problema é como encarar esses desafios quando ainda se vive com a mentalidade de um mundo criado há oitenta anos, mas que está a tornar-se irreconhecível à medida que os dias passam. Os partidos tradicionais querem continuar a fazer o mais do mesmo extrapolando nas promessas de “mais e melhor” sem a devida atenção pelas dificuldades crescentes em as cumprir. As pessoas querem tudo e agora num mundo de conectividade até pouco tempo inimaginável, em que as expectativas aumentaram extraordinariamente, não parece haver limite para o que é reivindicado. As forças políticas emergentes de carácter populista, alimentando-se das frustrações, desilusões e ressentimento que o choque das promessas e das expectativas com a realidade, focam-se na descredibilização das instituições, nos ataques aos políticos e à política e no bloqueio do diálogo democrático.

Na política actualmente transformada em entretenimento, com insultos gratuitos aos adversários políticos, com bullying, com actos extravagantes e com acusações de corrupção, há cada vez menos diálogo e mais actos performativos dos políticos. O impulso maior para isso vem da política populista, mas conta também com muita ajuda dos partidos tradicionais e seus políticos e ainda de outros políticos considerados apartidários ou independentes. No espectáculo que é montado, todos querem ser protagonistas e aparecer. Fala-se muito na necessidade de diálogo, mas muito pouco em cumprir as regras do jogo democrático. A cacofonia que se cria no espaço público não contribui para se perceber que há uma ordem democrática e que não há vazio na autoridade do Estado. Gratuitamente mina-se a confiança e se reforça a atracção do populismo que se revê no culto do chefe.

Há, pois, que ultrapassar a actual situação para que o país possa debruçar sobre os problemas complexos que se colocam no mundo e adaptar-se com os três R de Reickwitz: resiliência, reavaliação e redistribuição para enfrentar os desafios de vária natureza que certamente encontrará à frente. A vitalidade do regime democrático que provém do exercício da liberdade num quadro legal igualmente respeitado e aceite por todos já provou que estará à altura. Afinal, foi com a democracia que o desenvolvimento realmente despontou. Não é de se cair em tentações populistas autocráticas.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1245 de 08 de Outubro de 2025. 

sexta-feira, outubro 10, 2025

Considerar cargos caducados desrespeita a responsabilidade republicana dos seus titulares

 

A última sessão legislativa da actual legislatura inicia-se hoje 1 de Outubro sem que se vislumbre no horizonte próximo a resolução da situação dos órgãos externos ao parlamento. Eleitos em Abril de 2015 já ultrapassaram em mais de quatro anos os órgãos com mandatos de seis anos (Comissão Nacional de Eleições, Comissão de Protecção de Dados e a Autoridade Reguladora para a Comunicação Social) e em um ano o Tribunal Constitucional no seu mandato de nove anos. O presidente da república numa comunicação recente ao país referiu-se à situação dizendo que uma das das consequências mais graves da falta de diálogo é a caducidade generalizada dos mandatos dos órgãos externos ao Parlamento. Da frase do PR, fica-se com a impressão que na origem do problema estaria a falta de diálogo e que o resultado dele persistir seria a caducidade, ou perda de validade dos mandatos.

Há aí duas questões que podem imediatamente colocar-se: primeiro, para a eleição dos órgãos externos à Assembleia Nacional são imprescindíveis votos dos dois maiores partidos para perfazer os dois terços dos votos exigidos pela Constituição. Nestas circunstâncias, a atitude das partes pode ser dialogar até chegar a acordo, tendo em vista o bem maior de dotar o país de órgãos constitucionais importantes para a regulação do jogo democrático, ou obstaculizar para conseguir ganhos políticos partidários de curto prazo, mesmo à custa do desprestígio do parlamento e dos deputados e do descrédito da democracia. Um olhar retrospectivo das eleições dos órgãos externos pode facilmente verificar que neste século até 2016 chegava-se a acordo para as realizar, como aconteceu em 2001, 2008, 2011, 2014 e 2015.

A partir daí parece que os problemas se amontoaram, apontando para a obstaculização do processo. Só em 2020, três anos depois do fim do mandato, se conseguiu eleger um novo Provedor da Justiça. Em 2023, quase 8 anos depois, foram eleitos novos membros para os conselhos superiores dos órgãos do poder judicial. A particularidade de, no caso dos conselhos, os partidos proporem dois membros cada um e, no caso do provedor, de a personalidade vir, por acordo tácito, de sectores próximos da oposição, terá propiciado, mesmo com grande atraso, as eleições. Para os outros órgãos isso tem sido praticamente impossível. Tudo indica que não se trata simplesmente de falta de diálogo, mas de algo mais que não prevaleceu nos 15 anos de governo do PAICV, mas que depois de 2016 tende a estabelecer-se como prática reiterada. E é evidente que, quando há a percepção de que as instituições não funcionam, a culpa recai fundamentalmente sobre quem está a governar, e não sobre quem escolhe ser força de bloqueio num acto que só pode ser realizado a “duas mãos”.

Uma segunda questão é a da caducidade dos mandatos, uma expressão que aparentemente o PR prefere para se referir ao termo ou ao expirar dos mandatos. Podem ter significado similar, mas num caso a enfase está na validade do mandato e no outro salienta a natureza temporária do mandato. Para o constitucionalista português Vital Moreira “por uma questão de responsabilidade republicana, quem aceita um cargo público de duração temporária, deve estar preparado para continuar no exercício de funções para além do termo do mandato, enquanto não for substituído”. Acrescenta ainda que “a prorogatio (prorrogação) de cargos públicos constitui um princípio constitucional geral e não apenas uma obrigação legal pontual, quando expressamente estabelecida”. Insistir que estão caducados os mandatos de cargos públicos que chegaram ao termo, mas ainda não foram substituídos os titulares, claramente não contribui para o normal funcionamento das instituições.

Curiosamente, considerando os insistentes apelos do PR, a problemática dos mandatos “caducados” não se coloca somente para os cargos eleitos pelo parlamento. Também abrange os cargos que resultam da nomeação do presidente da república sob proposta do governo como são os do tribunal de contas, do procurador-geral da república, do chefe de estado maior das forças armadas e os cargos de embaixador. A diferença aqui é que não se trata de interacção política entre dois partidos políticos com visões alternativas da governação e que submeteram ao escrutínio do povo, obrigando-se o ganhador e os vencidos nas eleições a chegar a acordo em certas matérias específicas. Trata-se de dois órgãos de soberania em que de um lado está o PR, que não governa, mas representa interna e externamente a república e vela pelo normal funcionamento das instituições, e do outro, fica o governo, que tem constitucionalmente a direcção da política interna e externa do país e não é responsável politicamente perante o presidente da república.

Com este entendimento não se pode esperar que o processo de nomeação seja enviesado a favor do PR, como pretendem alguns, e seja ele a escolher e a nomear quando, por imposição constitucional, deve nomear mas sob proposta do governo. De facto, se falhas futuramente vierem a ser apontadas aos nomeados para esses cargos no exercício das suas competências, não é responsabilizado o PR, mas sim o governo que, a qualquer momento pode ser questionado no parlamento e confrontado pelos órgãos de comunicação social e pelos cidadãos. Por isso, introduzir viés no processo de nomeação em contramão com o princípio da separação dos poderes só pode levar a tensões desnecessárias, beliscando o sentido da unidade da nação e do Estado, essencial para o normal funcionamento das instituições.

Agrava-se a situação não ultrapassando os bloqueios e ao mesmo tempo insistir em discursos públicos que os cargos actuais estão caducados enquanto o procurador-geral da república refere-se aos órgãos já com mandatos expirados para os quais seria bom que houvesse consenso. A verdade é que em quase 35 anos de democracia nunca se viu situação semelhante mesmo quando os primeiros-ministros e os presidentes da república originariamente vinham de quadrantes políticos diferentes. Provavelmente a variação na interpretação dos poderes presidenciais e na firmeza das opções políticas do governo de alguma forma equilibravam-se. Não é como aparentemente estará a acontecer agora com algum deslizar para os extremos com excesso de protagonismo de uma parte e falta de firmeza institucional de outra parte.

Fugindo ao expectável em matéria de separação dos poderes só pode resultar no que se constata hoje em que cargos ficam por ser nomeados com prejuízo evidente para o país e para a credibilidade do sistema democrático. Complica ainda mais o quadro actual o facto de que é ao governo que se atribuí toda a responsabilidade. Às tantas, com as eleições legislativas e presidenciais no próximo ano e o futuro do país em jogo, não é de estranhar que, apesar dos apelos insistentes para se ultrapassar a situação, não haja quem queira ganhar com a projecção da imagem de um país a deslizar para o caos.

Serenidade de todos é preciso e mais do que falar em diálogo e consensos o foco deve estar em cumprir e fazer cumprir as regras do jogo e seguir à risca os procedimentos democráticos. Sem essa aderência ao que é essencial, o discurso político rapidamente degenera por si mesmo, marcado pelo cinismo e a hipocrisia.

No processo, como se vem assistindo em vários países a uma velocidade estonteante, descredibiliza-se a democracia e abre-se o caminho ao populismo que promove medidas iliberais de supressão de direitos em nome do esforço para restaurar a ordem e distribuir rendimentos. Não é certamente o futuro que se quer. Impõe-se por isso ultrapassar este impasse, controlando egos, aprofundando o sentido de pertença e combatendo o estado permanente de insatisfação, com solidariedade para com os outros. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1244 de 01 de Outubro de 2025.

sexta-feira, outubro 03, 2025

Fazer valer os 33 anos da Constituição

 

Hoje, 25 de Setembro, completam-se 33 anos da Constituição. Trata-se de uma data primeira desta II República que ainda está longe de ser celebrada como devia pela comunidade política nacional. Na generalidade das democracias, o Dia da Constituição é comemorado e em vários países como Espanha, Noruega, Polónia e Lituânia é mesmo feriado nacional. E compreende-se que assim seja, considerando que a entrada em vigor da Constituição democrática marca o início de um regime que garante o direito de consentimento dos cidadãos na escolha dos governantes, os direitos fundamentais dos indivíduos, a separação dos poderes, a subordinação do Estado às leis e a independência dos tribunais. Um dia, pois, para reviver a alegria de ter deixado para trás regimes autoritários e totalitários de má memória e também para reflectir como conservar os valores preciosos da liberdade e da democracia.

Neste ano de 2025, em que globalmente há a percepção de que as democracias estão em crise e sujeitas a uma erosão muito forte das suas instituições, devia ser o momento para valorizar os princípios e valores da Constituição e não os enfraquecer com idolatria política e ideologias iliberais. Também devia servir para exigir dos titulares dos órgãos de soberania que exercessem na plenitude das suas competências e respeitassem a separação dos poderes e que concomitantemente assumissem as respectivas responsabilidades. De evitar seria culparem-se uns aos outros, procurando beneficiar-se eleitoralmente da instabilidade gerada ou induzida por esse tipo de tacitismo político. O jogo democrático só garante estabilidade e eficácia governativa se as suas regras e procedimentos forem aceites e respeitados por todos.

Apelos para a diminuição da crispação política e para não se regredir para um ambiente de violência política só têm sentido se forem acompanhados do esforço sincero, a vários níveis, para o reforço do edifício democrático. Contrariamente ao que alguns podem sugerir, não é a existência de partidos e de confrontos político-partidários que gera violência política na sociedade. A história mostra que regimes sem partidos ou de partido único é que são criados violentamente, eliminando ou exilando, à partida, os tidos como inimigos, e que sobrevivem com violência arbitrária, intimidando toda a gente. Por isso que a melhor via para combater a violência, a arbitrariedade e a discricionariedade é a adopção do constitucionalismo democrático que obriga o Estado a respeitar a lei e os direitos dos cidadãos, que impõe a separação dos poderes para ninguém se arvorar em ditador e que institui tribunais independentes para administrar a justiça.

Em sentido contrário, se se quer criar um ambiente de instabilidade, de caos e de violência o caminho a seguir é o de fragilizar as instituições, não respeitando as regras do jogo democrático, de minar a confiança cultivando a desesperança com denúncias incessantes, às vezes estapafúrdias, e de promover o extremismo com a polarização fracturante. As omnipresentes redes sociais prestam-se extraordinariamente a este processo pela amplificação da opinião e do ego dos utilizadores, pela tribalização a que ficam sujeitos devido à manipulação algorítmica das plataformas e pela possibilidade de, em grupo e online, se poder envergonhar, discriminar e cancelar pessoas e grupos.

A crise do constitucionalismo democrático que se verifica actualmente com maior visibilidade e dramatismo nos Estados Unidos, mas com fortes sinais na generalidade das democracias tem na sua base essa fragilização institucional, o enfraquecimento do tecido social e a tendência narcisista do individualismo exacerbado. É verdade que várias situações complicadas contribuíram para o crescimento da desesperança em vários sectores da população nas últimas décadas. Mas é a acção deliberada de certas forças políticas que provoca essa crise ao canalizar as frustrações, o ressentimento, o medo e a desesperança contra o edifício democrático.

Nas democracias sempre existiram forças com preferências por vias não liberais, mas não constituíam ameaças pela sua dimensão e coesão interna. O quadro mudou completamente na actual conjuntura: os apelos de sectores antisistémicos favoráveis a regimes iliberais e a ditaduras de elites tornaram-se frequentes, e as tentativas de pôr em causa a separação de poderes com a concentração do poder no executivo, a subordinação do legislativo e a descredibilização do poder judicial ganharam expressão com o exemplo de Trump na América. Felizmente que do Brasil veio a grande demonstração da democracia a pôr os travões a quem intenta contra ela, julgando e condenando o ex-presidente Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado.

Em Cabo Verde também a democracia corre riscos. O facto de não se celebrar condignamente o aniversário da Constituição é sinal de como o país, os seus órgãos de soberania, as suas instituições, as suas escolas, universidades e a sua comunicação social, se retraem na promoção da cultura constitucional. O contraste é enorme quando comparado com o entusiasmo e os recursos públicos dedicados às celebrações da “luta de libertação” e dos feitos e das personalidades do regime de partido único e às manifestações de idolatria de Cabral.

Inevitavelmente, essa tensão permanente com os princípios e valores da Constituição acaba por ter um efeito erosivo na própria democracia. A relação entre os partidos e a possibilidade de chegar a acordos são prejudicadas por atritos que deviam ser desnecessários se houvesse total consenso sobre a natureza do regime político estabelecido pela Constituição. A persistência nas instituições e na cultura política do país de tensão visível entre os dois regimes não deixa de ser uma porta entreaberta para tentações políticas iliberais. O apego “tribal” a posicionamentos ideológicos do passado assim alimentado pode servir para, designadamente, promover políticas limitativas de direitos, normalizar posturas políticas de colisão com o princípio da separação dos poderes e desafiar a lei para provar impunidade.

Já não tão distante das eleições legislativas é evidente para qualquer observador o esforço vindo de vários quadrantes para projectar a imagem de Cabo Verde como um país à beira do caos. É um facto que o país lida com problemas sérios, em particular no domínio dos transportes inter-ilhas e que a situação da energia na capital tem trazido transtornos significativos para a população. Mas como o próprio presidente da república reconhece, Cabo Verde não enfrenta nenhuma crise político-institucional. Essa constatação devia ser o ponto de partida para todos se calibrarem nos pronunciamentos e na acção política. A sinceridade nos apelos para a diminuição da violência política pode ser avaliada por aí.

Os problemas do país são complexos e no mundo da actualidade estão-se a operar mudanças estruturais que trazem incertezas e novos desafios. A última coisa que Cabo Verde precisa é saltar no desconhecido dos resultados eleitorais sem uma ponderação serena e madura das opções políticas dos diferentes partidos. Para assegurar que o futuro de Cabo Verde seja construído na Liberdade e na Democracia é fundamental impedir eventuais derivas autocráticas que ponham em causa os 33 anos de constitucionalismo democrático. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1243 de 24 de Setembro de 2025.

quinta-feira, setembro 25, 2025

Melhorar a qualidade do ensino, a prioridade das prioridades

 

Nesta segunda semana do mês de Setembro arrancou o ano lectivo de 2025/2026 com pronunciamentos muito focados na qualidade do ensino. O ministro da educação anunciou para o ano de 2026 o exercício PISA para avaliar como os alunos cabo-verdianos se comparam com os dos países desenvolvidos nas áreas de leitura, matemática e ciências. Com a mesma preocupação com a qualidade acrescentou que se vai avançar com o barómetro nacional das escolas para avaliar o desempenho das escolas nos diferentes concelhos e relembrou que a educação “constitui igualmente um compromisso colectivo”. Por sua vez, o presidente da república veio chamar à atenção para os desafios dos tempos modernos que impõem uma” arrojada aposta na sofisticação, na excelência e na eficiência”, de todo o sistema educativo.

Para um país com as características de Cabo Verde em termos territoriais, de população e de localização, a aposta forte na qualificação do seu capital humano a partir do momento em que se tornou independente devia ter sido a prioridade das prioridades. O facto de só neste ano se estar a criar condições para se avaliar a qualidade do ensino em termos comparados, internacionalmente e nos diferentes pontos do país, diz o quanto foi posta em segundo plano em relação aos outros objectivos, designadamente de massificação do ensino. Depois do que aconteceu com o ensino básico e secundário em que se descurou a qualidade, a mais recente demonstração dessa opção é o que se assistiu no ensino universitário. Em menos de dez anos já contava com cerca de uma dezena de universidades. É evidente que com tal proliferação de estabelecimentos num país de 550 mil habitantes não se vai ter a “sofisticação e a excelência” que desde de há muito os tempos modernos estavam a pedir.

O ministro da educação ao apelar para um compromisso colectivo com uma educação de qualidade está a mostrar a importância do envolvimento de todos ( sociedade, famílias, professores e alunos), para além da responsabilidade do Estado na disponibilização de meios como escolas, manuais e professores, em torná-la uma realidade. De facto, sem uma sociedade comprometida com o conhecimento e com a busca da verdade e empenhada no desenvolvimento da ciência e tecnologia não há investimento em meios físicos e humanos que resulte em qualidade do ensino.

Professores e alunos não vão interessar-se suficientemente se o ambiente é adverso à procura de excelência nos domínios do conhecimento e não é meritocrático porque as carreiras submetem-se a outros critérios que não os de excelência. A própria escola não consegue propiciar um ensino eficaz se a profissão de professor não goza de suficiente reconhecimento social e não transmite a autoridade que permite captar a atenção e o interesse do aluno e manter ordeira uma sala de aula. No fim do dia, as famílias acabam por se resignar com os diplomas que os filhos trazem na expectativa que o acesso ao emprego siga outras lógicas.

Por outro lado, o país no seu todo pode até vir destacar-se em número de alfabetizados, de pessoas com ensino básico e secundário completo e de licenciados e doutorados, mas terá insuficiências em termos de pensamento crítico não estando firmemente comprometido com o conhecimento e com a verdade. Pior ainda, se o livre pensamento for tolhido por narrativas ideológicas, tendencialmente exclusivas e conflituantes com os princípios constitucionais, impostas por órgãos estatais. E a verdade é que com deficiente capacidade de análise objectiva e de questionamento e fundamentação das ideias fica difícil promover na sociedade a criatividade e a inovação e uma cidadania crítica e participativa.

É interessante notar nas biografias de muitos professores no novo livro da doutora Adriana Carvalho sobre 31 personalidades da educação do século XX a extraordinária dedicação ao ensino, o respeito e a amizade dos alunos e o reconhecimento de que gozavam junto das pessoas. Mesmo pobre, analfabeta ou pouco escolarizada, a sociedade mostrava valorizar o conhecimento e os seus agentes. Em tal ambiente vários professores desdobraram-se em intervenções diversas de carácter cultural, literária, jornalística e a favor de causas cívicas, em particular nos anos anteriores à independência. Mesmo no quadro político autocrático do Estado Novo de Salazar pareciam agir como livres pensadores, criando revistas, escrevendo poesia, contos e romances, publicando artigos e participando em saraus e outros eventos culturais.

Quebrou-se esse comprometimento com o conhecimento quando com a independência e a ditadura do partido único se associou a ideologia à educação. Ao condicionar a iniciativa privada e ao fechar o país ao investimento directo estrangeiro e ao turismo, o regime mostrou que a massificação do ensino não tinha como principal objectivo o desenvolvimento do capital humano, na perspectiva do aproveitamento das oportunidades que o mundo oferecia. A prioridade era a construção do “homem novo” como suporte do regime num quadro do pensamento único e da unicidade do poder. A expansão para o ensino secundário só viria a verificar-se nos anos noventa, a acompanhar a abertura económica e a dinamização da indústria e dos serviços e com impacto directo na produtividade e competitividade do país.

Infelizmente, não obstante os avanços verificados na educação nos anos posteriores, a qualidade do ensino continuou a não ser a prioridade principal. Aparentemente a sociedade democrática do pós-13 de Janeiro não recuperou o comprometimento com o conhecimento de outrora nem adoptou completamente os critérios meritocráticos de valorização da excelência. Em consequência, não se resgatou a figura do professor, continuaram as tentativas de os instrumentalizar politicamente e das escolas, dos liceus e posteriormente das universidades não se se sentiu o impacto cultural, intelectual, cívico e político que seria de esperar numa democracia jovem e vibrante. Muito menos se assistiu à corrida para o top dos rankings na qualidade do ensino verificada em países como a Estónia, um pequeno país que só no início dos anos noventa se libertou dos comunistas.

Nos últimos anos vem-se assistindo a mais uma incursão ideológica nas escolas através da introdução do crioulo como língua do sistema de ensino. Mais uma vez, ao invés de se focar a atenção da sociedade no objectivo prioritário da melhoria da qualidade de ensino optou-se pela introdução de guerras culturais e identitárias. Para além das divisões provocadas, retomando os epítetos de lusotropicalistas ou macaronésios para os críticos do ALUPEC, criou-se um ambiente de hostilidade contra a língua portuguesa que só podia ser prejudicial para os alunos em geral, considerando que é a língua oficial do sistema de ensino. Para os promotores e activistas parecia não interessar os estragos que podiam causar.

Quando o governo cedeu às investidas e abriu experimentalmente um curso da língua cabo-verdiana com um manual dedicado, não se resistiu à tentação de apresentar um facto consumado de uma língua cabo-verdiana padronizada que talvez com pequenos ajustes poderia ser adoptada para todo o sistema de ensino. Revelou-se um passo longe demais que tornou anteriores correligionários em inimigos declarados da chamada língua pandialectal, agora considerada um subterfúgio contra a variedade linguística de Santiago. A pedido, o Ministério Público emitiu um parecer, que provavelmente terá relembrado que é do parlamento a competência para estabelecer a ortografia de línguas oficiais, e na sequência, ontem, dia 16 de Setembro, o ministério de educação suspendeu o manual e a disciplina de língua cabo-verdiana.

Infelizmente, não vai ser desta que toda a atenção vai se focar na melhoria da qualidade do ensino sem as distrações ideológicas de costume. O presidente da república na sua comunicação no início do ano lectivo já veio dizer que a língua cabo-verdiana é a “ferramenta que já mostrou ser tão necessária para o sucesso das outras disciplinas” e que o seu ensino é de “supra relevância para o sistema educativo e para o futuro do país”. Caso para concluir uma vez mais que, para certas causas, a luta continua, sem olhar os estragos feitos à vista de todos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1242 de 17 de Setembro de 2025.

quinta-feira, setembro 18, 2025

Riscos aumentam para a democracia

 

A 15 de Setembro celebra-se o Dia Internacional da Democracia, 28 anos depois da União Interparlamentar (UIP) ter adoptado a Declaração Universal da Democracia e 18 anos depois da efeméride internacional ter sido instituída pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Neste ano de 2025 a comemoração da data reveste-se de especial importância porque a democracia está claramente sitiada e, eventualmente, a bater a retirada.Vai longe a euforia dos fins dos anos oitenta e de grande parte da década de noventa em que a vitória da democracia e o reconhecimento universal dos direitos humanos pareciam imparáveis.

Em 2025 dois eventos internacionais a assinalar o dia com temas de “Um mundo virado de cabeça para baixo: democracia e inclusão numa era de insegurança” e “Democracia em risco: como podemos reavivá-la” dão conta do estado actual da democracia. Em boa parte deste século e particularmente depois da crise financeira de 2007/2008 ficou evidente que a democracia tinha entrando numa crise múltipla. Tornaram-se notórios os sinais de uma crise de representação, de uma crise dos partidos políticos e de uma crise de confiança nas instituições. Sinais de fracturas profundas nas sociedades democráticas começaram a manifestar-se no discurso anti-elites, no ressentimento derivado da percepção do agravamento das desigualdades sociais e no medo incutido pela crescente imigração, aparentemente sem controlo.

A par disso, a potenciar sentimentos de desesperança, a reforçar a solidão e a alimentar a ilusão de realidades alternativas, assistiu-se a emergência das plataformas digitais e das redes sociais que criaram a possibilidade de inundar toda a gente de informação sem qualquer tipo de intermediação e de validação, ao mesmo tempo que tornava as pessoas vulneráveis a manipulações diversas. Com os algoritmos construídos pelas plataformas para suportar o negócio e disponibilizar gratuitamente o acesso às redes sociais, bolhas mediáticas podiam ser criadas e exploradas por forças políticas emergentes, abrindo o caminho ao populismo, à contestação dos partidos e da democracia liberal e à erosão de confiança nas instituições. E é precisamente o que a partir da segunda década deste século tem vindo a acontecer, em simultâneo com a implosão dos partidos do centro democrático e o crescimento de forças extremistas, especialmente da extrema-direita.

Um outro desenvolvimento que tem contribuído para a erosão da democracia resulta do exacerbar do individualismo que, conjuntamente com o extremar das lutas identitárias e um processo continuo de vitimização, acaba por pôr em causa de várias formas (discriminação, cancelamento) os princípios liberais de liberdade e de igualdade. Uma outra consequência é a diluição do sentido de pertença que para além do impacto individual ao nível da saúde mental ainda pode contribuir para enfraquecer a fraternité/solidariedade essencial para a coesão do colectivo nacional. Daí é um passo para o surgimento, em reacção, do populismo nacionalista e anti-elites, por regra personificado por líderes narcisistas. Percebe-se a conexão no apelo a causas nostálgicas de passados gloriosos, no exercício autocrático de poder e na exigência de devoção que ajuda os seguidores a evitar o niilismo e os convida a ser parte de uma massa em crescendo e ganhadora.

A conjugação desses factores em vários países democráticos já levou a mudanças significativas no espectro político com a ascensão de forças mais à direita e a deslocação de políticas para posições iliberais. Nota-se a tendência para a compressão dos direitos fundamentais em particular da liberdade de expressão e de imprensa, para o enfraquecimento do princípio de separação dos poderes e para o recrudescer dos ataques ao poder judicial. Nos Estados Unidos, a mais velha das democracias e líder da ordem liberal e democrática que saiu da segunda guerra mundial, a afirmação, a uma velocidade estonteante, de uma presidência imperial desequilibrou o sistema de “checks and balance”.

A diminuição do papel do Congresso tem sido acompanhada da contestação sistemática do poder judicial nos limites de uma crise constitucional, por enquanto evitada pelo quase total alinhamento do supremo tribunal com as pretensões do presidente. Em simultâneo, procedeu-se à progressiva militarização da segurança pública, ao enfraquecimento do estado regulador, do estado administrativo e do estado social, a ataques às universidades e às instituições de saúde pública e a intimidação dos órgãos de comunicação social. Para com o presidente a relação aparentemente instituída é uma mistura de lisonja, demonstração de vassalagem e algum poder de encaixe para eventuais humilhações aplicável a todos, desde os gigantes do mundo dos negócios e das tecnologias até aos Chefes de Estado e de governo dos outros países. Não é à toa que muitos observadores consideram a deriva autocrática que a América vem protagonizando nos últimos nove meses como o acontecimento globalmente mais marcante desde a queda do comunismo e do fim do império soviético em 1989-90.

O exemplo que vem daí não deixará de ter efeito no resto do mundo e em particular nas democracias. Haverá tentativas de imitação, algumas de rejeição e outras ainda de acomodamento. A verdade é que a democracia globalmente ficará enfraquecida e já não se pode contar com uma vontade colectiva como a que deu origem à instituição do Dia Internacional da Democracia para incentivar a consolidação da democracia no mundo. E é uma grande perda para o progresso da humanidade porque, entre outras razões, como dizia o filósofo americanoReinhold Niebuhr, “a capacidade do homem para a justiça torna a democracia possível, mas a inclinação do homem para a injustiça torna a democracia necessária”.

É neste ambiente mundial de recessão, se não de regressão democrática, que Cabo Verde dentro de oito meses vai realizar eleições legislativas. Também aqui no país os efeitos da erosão democrática são claramente sentidos tanto na sociedade como nas instituições e nos partidos políticos. Conter e pelo menos não a agravar devia ser uma preocupação central dos dois partidos do arco da governação e também de toda a sociedade. Será difícil não cair na tentação de continuar a fazer o mais do mesmo e a manter-se o excesso de protagonismo dos políticos, a se servir das redes sociais para canalizar sem filtro ou contexto todas as indignações, a ter os média a amplificar as redes sociais e a ver reivindicações laborais e corporativas desembocar em greves e paralisações.

O embate eleitoral que se anuncia será dos mais complicados para o país, tanto pela actual conjuntura política internacional penosa para as democracias como pela situação em que se encontram os dois grandes partidos. O partido no governo estará a terminar dez anos de mandato com o desgaste normal de governação exacerbado por crises e choques externos e a ser responsabilizado por disfuncionalidades em sectores importantes como os transportes. E o facto de, na sequência da derrota nas autárquicas não se ter aberto a um debate interno e com a sociedade vai-lhe custar na apresentação de soluções inovadoras.

Quanto ao maior partido da oposição ainda sob o efeito da luta pela liderança interna, que configurou uma verdadeira operação de captura da organização, não há sinais de uma visão nova dos problemas do país. Para além do discurso populista que já se viu que pode ganhar eleições, mas não garante governação competente, não se vislumbra senão a conquista do poder como motivação principal. Infelizmente, para o país que precisa acelerar o seu crescimento e desenvolvimento, essas perspetivas não auguram maior dinâmica económica. Há que, no entanto, garantir democracia necessária para impedir que prevaleça a injustiça

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1241 de 10 de Setembro de 2025.

quinta-feira, setembro 11, 2025

Potenciar o sentimento profundo de pertença

 

Nos tempos actuais e nas democracias em geral, a esfera pública, a comunicação social e as redes sociais parecem estar na iminência de serem engolidas por uma onda de polarização e divisão, de serem minadas por frustrações e ressentimentos e de ficarem perdidas em denúncias e suspeições. Nessas circunstâncias ganha a maior importância as pontuais manifestações colectivas de solidariedade e esperança no futuro que eventualmente aconteçam. Têm o poder de contenção dos extremos e de incentivar a convergência nos objectivos comuns da colectividade. A reacção rápida e engajada da Nação e das suas comunidades emigradas à catástrofe de 11 de Agosto que abalou S.Vicente foi um sinal claro de que em Cabo Verde está bem vivo esse sentido do colectivo nacional na sua expressão de fraternidade e de crença no seu futuro.

Pode-se considerar isso como um indicador forte da resiliência face às adversidades. De facto, recentemente durante a pandemia da Covid-19 esse sentido de pertença tinha-se revelado com toda a sua pujança e outra vez face a um desastre maior voltou a manifestar-se de forma inequívoca. É de notar que aparentemente a pandemia, ao ser uma oportunidade para mostrar solidariedade, acabou por reforçar os laços entre o país e as suas comunidades no estrangeiro, avaliando pelo aumento progressivo das remessas dos emigrantes nos anos seguintes. Isso pode significar que o aumento do afecto e da confiança e da consciência da Nação já se apresenta como um significativo amortecedor a eventuais choques externos naturais ou outros que importa conservar e aprofundar.

Outrossim, o país pode e deve potenciá-lo para manter a sociedade mais coesa e mais motivada e focada no crescimento e no desenvolvimento particularmente quando, a exemplo de outras democracias, Cabo Verde está sujeita a forças políticas e sociais fracturantes e divisivas. Na falta de um respaldo suportado no cultivo de um sentido de pertença ao colectivo nacional, corre-se o risco de, ao se enfraquecerem as instituições e a ordem democrática, se abrir caminho para soluções autoritárias e restrições graves dos direitos fundamentais. Já está a acontecer noutros países democráticos, em alguns já com um grande avanço em direcção a regimes autoritários como são os casos dos Estados Unidos e da Hungria e outros como Itália, Polónia, França, Alemanha e Portugal, com equilíbrios precários, mas com tendência para o crescimento de forças iliberais,

Aliás, as forças extremistas crescem muitas vezes em reacção ao que consideram excessivo individualismo, políticas identitárias e ameaças do multiculturalismo. O ambiente actual, dominado pelas redes sociais que amplifica a expressão individual e o posicionamento identitário e promove cosmopolitismo, também permite com recurso a algoritmos sofisticados mobilizar paixões e explorar medos e ressentimentos com base no nacionalismo. Ou seja, as plataformas digitais ajudam a promover o narcisismo ao mesmo tempo que disponibilizam os meios para a criação de bolhas de opinião onde turbas furiosas, motivadas muitas vezes por sentimentos antisistémicos e antidemocráticos, cancelam ideias, criam fake news e forjam realidades alternativas. Já há quem vislumbre um mundo em que quem domina as plataformas de facto governa e deixa para a maioria da população o entretenimento e a satisfação disponibilizada pela realidade virtual.

Em Cabo Verde também as redes sociais estão disponíveis e fenómenos que fazem lembrar o que se passa em outros países já acontecem. Já se notam manifestações de narcisismo pessoal e político com efeito nas instituições. O protagonismo pessoal tende a sobrepor-se, enfraquecendo a função e a imagem institucional. Os checks and balance do sistema político são enfraquecidos com a aceleração da menorização do papel dos órgãos colegiais (parlamento, governo, câmaras municipais) e o crescente protagonismo do presidente da república, do primeiro-ministro, dos presidentes das câmaras municipais. Bolhas de opinião são criadas com a ajuda dos algoritmos das plataformas que não poucas vezes criam uma ilusão de influência que a realidade não corrobora. Sentimentos anti-sistémicos em conflito com o pluralismo e a democracia encontram expressão e nova vida nas políticas identitárias e na criação de fake news e de realidades alternativas.

Não há em Cabo Verde questões fracturantes como a imigração, o racismo e a xenofobia e conflitos religiosos que podiam ser explorados por forças políticas, a exemplo do que se passa na Europa com a extrema-direita. Não deixam, porém, de subsistir, em novas encarnações, as velhas noções cabralistas divisivas que punham em diferentes categorias população, povo e Partido com os seus melhores filhos. Justificam os epítetos pejorativos de vendedores da terra, de anti-patriotas e de luso-tropicalistas ou macaronésios aplicados aos adversários. Estão por trás da polémica à volta do monumento à Liberdade e Democracia nos 35 anos da II República, assim como, em 2018, foram contra a proposta da câmara municipal de relocalizar a estátua de Amílcar Cabral na rotunda do Homem de Pedra.

Ao manter viva uma ideologia e uma narrativa histórica datada, alimentam-se divisões à volta do crioulo e da identidade cabo-verdiana, e dá-se conforto a sentimentos anti-sistémicos na procura de justificação da ditadura do partido único. Uma última encarnação do fenómeno desse tipo de divisionismo vê-se na postura antielitista do actual presidente do PAICV, Francisco Carvalho. Assumindo-se como líder dos “abandonados” pelas elites que governaram o país durante décadas, conseguiu capturar a liderança desse partido não obstante a feroz resistência dos seus dirigentes históricos. Posicionando-se agora como candidato a primeiro-ministro, o mais provável é que continue na mesma linha populista e antielitista que nega o impacto do crescimento económico na população e contende que os benefícios do país vão apenas para uma minoria.

O tipo de confronto político marcado por divisões bloqueadoras de tipo de diálogo entre partes em praticamente todas as matérias em disputa obriga a um tacticismo político que limita o alcance das políticas e da governação. O resultado é que em Cabo Verde provavelmente mais do que em qualquer momento anterior nos últimos meses tem-se a impressão de se estar a viver em permanente sobressalto. Há acontecimentos que realmente causam alarme como foram as chuvas torrenciais e as enxurradas que resultaram em mortes e perdas materiais avultadas. Há outros menos usuais e de menor impacto com destaque para as greves sucessivas ou anúncios de greve e os problemas constantes nos transportes aéreos e marítimos que contribuem para alimentar um desassossego difuso na sociedade. Sem o respaldo de uma consciência colectiva solidária e confiante, o confronto político permanente, a actuação dos mídia, cada vez mais influenciada pelas redes sociais, e a conectividade permanente, garantida pelas plataformas digitais, só agravam a situação.

Urge reequilibrar o país para que esteja realmente na posição de, com diálogo aberto e democrático, encontrar solução para os seus problemas. Para isso é preciso potenciar o sentimento profundo de pertença que o cabo-verdiano canaliza como solidariedade e crença no futuro sempre que Cabo Verde enfrenta uma crise. Para mobilizar esse capital que está na base da resiliência do país há que, porém, ultrapassar definitivamente as divisões impostas pela história para voltar a ser a nação que se forjou no limite, sobrevivendo a fomes, ao isolamento e ao abandono. Uma nação que não se define como vítima de ninguém e sempre acreditou que nas ilhas ou em qualquer lugar para onde emigrou o futuro está ao alcance das suas mãos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1240 de 3 de Setembro de 2025.