quarta-feira, fevereiro 26, 2014

Fetiche pelo betão e alcatrão


A Sessão Plenária de Fevereiro na Assembleia Nacional tem sido dominada pela discussão entre os partidos e o governo sobre as obras públicas no país. O MpD requereu uma interpelação ao governo sobre a gestão e execução de obras públicas de infra-estruturas 2001-2012. O relatório da Comissão de Inquérito requerido pelo PAICV e incidindo sobre um período de mais de vinte anos será debatido pelos deputados. Não há grandes novidades nos argumentos esgrimidos pelas partes. O governo e o partido que o suporta esforçam-se por demonstrar que obras são sinal inequívoco de progresso. Os partidos de oposição contrapõem que os resultados dos enormes investimentos, que já vão em mais de um bilhão de dólares, ficam aquém do anunciado e que o impacto dos mesmos no crescimento económico e na criação do emprego está muito abaixo do satisfatório.

Obras públicas é a grande tentação dos governos. Construir estradas, portos, aeroportos, escolas, hospitais, passa a ideia de um governo com visão, com vitalidade e com capacidade de execução. Os cidadãos e a sociedade são facilmente apanhados no ambiente criado por grandes expectativas e por um futuro prenhe de possibilidades. As várias fases dos projectos, desde do seu anúncio ao país, passando pela engenharia financeira, lançamento de primeira pedra, visitas regulares de governantes até à inauguração com “pompa e circunstância” ajudam a criar no público toda uma aura de transformação e de mudança radical para uma vida melhor. A facilidade como vários desses empreendimentos posteriormente se tornam elefantes brancos, deixa perceber que algo não correu bem. A infraestrutura criada ou não favoreceu alguma vantagem comparativa já existente, ou não permitiu, como desejado, a exploração de recursos naturais, ou não baixou os custos de factores como energia e água, ou não facilitou o acesso a mercados expressivos ou ainda em muito pouco contribuiu para a melhoria da competitividade dos agentes económicos à sua volta. De qualquer forma, as esperanças postas na sua edificação acabam por não se realizar plenamente. Falhas repetidas nesse sentido porém não impedem alguns governos de insistir nas mesmas práticas.

Há quem pense que construir infraestruturas é mais fácil do que criar ambiente institucional adequado para a iniciativa individual e empresarial. Que fazer obras não tem a complicação de lutar contra os interesses instalados em vários pontos nevrálgicos do país que contrariam reformas dirigidas para a maior eficiência e produtividade na administração pública, nas câmaras municipais, na gestão dos portos e aeroportos, nos transportes aéreos e marítimos, na produção de energia e água e nas telecomunicações. Que edificar escolas e liceus não tem as dificuldades e a complexidade das acções necessárias para implementar uma política de qualidade e excelência no ensino. E que inaugurar centros de formação profissional não exige tanto como conceber e executar cursos adequados às necessidades do mercado e afinados para dar maior empregabilidade aos jovens. Os governos insistem nestes métodos porque os ganhos de curto prazo, em grande parte de natureza política e eleitoral, compensam largamente o risco de, a médio e longo prazo, o empreendimento vir a ficar aquém das expectativas e não garantir o retorno necessário para pagar o investimento realizado.

Um Deputado do PAICV afirmou no Parlamento que na inauguração de estradas a alegria dos condutores e das pessoas do povo não as deixava que se preocupassem minimamente com o dinheiro metido nas obras. Brandiu esse argumento contra qualquer eventual objecção da oposição quanto ao processo de financiamento, opções na execução e custo final. Os ganhos políticos de alimentação do fetiche pelo betão e o asfalto são aparentemente tão grandes que cegam perante as duras consequências que políticas semelhantes tiveram recentemente em países como Portugal. Para os portugueses e para a economia portuguesa o reajustamento, na sequência de governos que abusaram do asfalto e do betão para mostrar resultados e paralelamente não fizeram as reformas estruturais que se impunham, tem sido altamente doloroso.

A euforia com as obras em Cabo Verde continua. Como foi dito no Parlamento, hoje todos parecem fiscalizadores de obras: uns a criticar, outros a reivindicar mais e outros ansiosos por inaugurar. O fetiche tomou conta de todos. O exemplo de outros países que depois da euforia passaram por tempos difíceis não quebra o encantamento. Nem tão pouco o facto do bilhão de euros investido em infraestruturas não ter baixado o desemprego, não ter fortalecido o sector empresarial e não ter sido factor de atracção de capital directo estrangeiro. A mágica do momento nem permite que se veja a dívida pública acumulada e os défices públicos que conjuntamente diminuem as opções de futuro para quem quer investir, empreender e de qualquer outra forma contribuir para a prosperidade do país. Espera-se que o reajuste inevitável, que provavelmente se seguirá, não seja dolorosa e que o país encontre os caminhos certos para uma maior produtividade, crescimento e mais emprego.


Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 26 de Fevereiro de 2014

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