quarta-feira, fevereiro 19, 2014
Glorificação do partido único
A guerra das datas continua. O líder parlamentar Felisberto Vieira quer que o dia 19 de Fevereiro de “abertura política” do então partido único PAICV seja comemorado a par com o 5 de Julho, dia da independência nacional, e o 13 de Janeiro dia da Liberdade e Democracia. Em conferência de imprensa na terça-feira, dia 18 de Fevereiro, anunciou que o seu partido vai celebrar com várias actividades a data em que se criou “espaço para instauração do regime multipartidário” e convidou todos os cabo-verdianos a assinalarem a efeméride como um dos “momentos marcantes da libertação de Cabo Verde”.
É evidente que o brandir do 19 de Fevereiro como data de celebração nacional visa despojar a sociedade cabo-verdiana do seu protagonismo na queda do regime do partido único e apresentar a liberdade e a democracia conquistadas pelo povo como dádiva de ditadores. A história, porém, não regista agradecimentos pelos que, ao fazer fuga em frente, no intuito de se manterem no poder, soltam forças sociais e políticas que os faz cair do pedestal e prosseguem restaurando direitos fundamentais dos cidadãos e devolvendo o poder soberano ao povo. Vinte anos passados, e já em democracia, não deixa de ser preocupante e inquietante ver o partido do governo insistir na glorificação das manobras de um partido único que na época procurava assegurar a sua sobrevivência num ambiente internacional crescentemente hostil a regimes totalitários e autoritários.
De facto, neste ano de 2014 não se celebram as tentativas feitas pelo Ceausescus, Honeckers e Jaruzelskis para conservar o poder. Nem mesmo Gorbachev é relembrado. Comemoram-se sim os quarenta anos da Revolução das Flores em Portugal. A importância da efeméride está no facto de que o golpe de estado militar do 25 de Abril desencadeou o que o cientista político americano Samuel Huntington chamou da Terceira Vaga da Democracia. Nos vinte anos seguintes muitos regimes autoritários e totalitários seriam substituídos por democracias. Até o inimaginável aconteceria: o derrube do império soviético e do domínio comunista na Europa de Leste.
Cabo Verde como parte do império português sentiu as lufadas de ar fresco trazidas pelo 25 de Abril mas a grande vaga da democracia acabou por passar ao lado. A liberdade respirada no pós-golpe em 1974 rapidamente reduziu-se à medida que o PAIGC autoproclamado único representante do povo da Guiné e Cabo Verde confinava os adversários e posicionava-se para receber sozinho o poder das mãos das autoridades portuguesas. A partir da independência a 5 de Julho de 1975, Liberdade e Pluralismo político foram efectivamente suspensos por um regime ditatorial chamado de partido único até que a vaga de democracia já na sua segunda fase simbolizada pelo derrube do Muro de Berlim em 1989, tornou insustentáveis esses regimes. Nos fins dos anos 80 e inícios dos anos noventa o mundo pôde observar fascinado à queda dos dominós dos regimes e partidos de inspiração leninista em todos os continentes.
Passados todos estes anos, o normal seria que reinasse consenso sobre os princípios e valores liberais e democráticos consagrados na Constituição da República. Certamente que não deveria haver qualquer espaço para elogio de actos do partido único e seus dirigentes que na lógica das coisas só serviam para o perpetuar no poder e manter a sua supremacia sobre os cabo-verdianos enquanto força dirigente da sociedade e do Estado. Insistir no resgate das suas acções e políticas não pode deixar de ter um efeito desestabilizador no país. Vindo de quem está a governar e exerce influência preponderante sobre o Estado, sobre os meios de comunicação social públicos e o sistema educativo do país, acaba por ter um efeito constrangedor no abraçar pleno dos valores da liberdade e da democracia e por brigar com a existência de uma academia livre, designadamente no domínio das ciências políticas e sociais. Neste particular, relembra os efeitos nocivos que nos Estados Unidos certas crenças religiosas e teorias acientíficas sustentadas por alguns grupos políticos têm sobre os indivíduos, a sociedade e o sistema de ensino.
Lá como cá, o ambiente político que se cria com tais fugas à realidade dos factos não é o de consenso como pretende o líder parlamentar ao apelar que se tome como datas nacionais actos de pura sobrevivência do então partido único. Realmente o que se reproduz é um ambiente de crispação e intolerância, de lutas ideológicas sobre temas anacrónicos e guerrilha política permanente. Em Cabo Verde, é só ver o ridículo que é o ataque selvagem sistematicamente feito ao processo de construção das instituições democráticas nos anos noventa enquanto se procuram razões para glorificar as políticas do partido único.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 19 de Fevereiro de 2014 Humberto Cardoso
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