quarta-feira, fevereiro 05, 2014

Na política não vale tudo


Volta e meia a questão do programa “Casa para Todos” reaparece e domina a comunicação social durantes alguns dias. Às vezes são anúncios de mais construções e de mais lançamentos de primeira pedra. Outras vezes são visitas feitas às obras por membros do governo, deputados etc. Ainda outras vezes são inaugurações de complexos de habitações nas diferentes ilhas. Recentemente grande publicidade foi dada ao processo de seleccionamento de candidatos através de lotarias televisionadas com pompa e circunstância. Nos intervalos entre esses eventos, ou na sequência dos mesmos, frequentemente o assunto entra no discurso político e emerge em acusações mútuas feitas através da comunicação social pelo governo, pela oposição e pelas câmaras municipais. O governo acusa a oposição de ser contra o programa e as câmaras de o obstaculizarem. A oposição critica a inadequação do programa para responder aos problemas habitacionais do país e às necessidades de habitação condigna dos cabo-verdianos. A realidade é que depois de três anos do “Casa para Todos” e centenas de apartamentos construídos e inaugurados poucos dos formalmente entregues já foram realmente habitadas.

O Presidente da IFH em declarações à Inforpress revelou que das 36 moradias na Boa Vista, inauguradas há mais de um ano, quatro estão ocupadas e vinte estão em processo de financiamento. Para os pré- seleccionados das restantes doze que não preencheram os requisitos mínimos para financiamento, procura-se uma solução de arrendamento. A situação na Boa Vista deve ser análoga ao que se passa em S.Vicente, na Praia e noutras ilhas. O complexo da Ribeira Julião em S.Vicente inaugurado em Dezembro de 2012 assim como também o do bairro de Tira- Chapéu seis meses depois e outros noutras ilhas ainda estão por ocupar.

Claramente que a maior das dificuldades em todo o processo de ocupação das moradias tem essencialmente a ver com o acesso ao empréstimo bancário para as adquirir. Muitos candidatos pré-seleccionados não têm crédito junto dos bancos e outros aparentemente deparam-se com a relutância dos bancos em conceder crédito a privados no ambiente actual de enfraquecimento da economia e de aumento do desemprego. De acordo com o último Relatório (Novembro de 2013) sobre a Política Monetária do Banco Central, os bancos nacionais com a compra de títulos de dívida pública têm demonstrado preferência em financiar o sector público em detrimento do sector privado. As razões para isso estariam na percepção de riscos macrofinanceiros associados que naturalmente tendem a aumentar num ambiente de persistência dos défices gémeos (orçamental e conta corrente) e da dívida pública pesada, demasiado próxima dos 100% do PIB.

Face a uma realidade tão clara quanto às dificuldades de eventuais interessados em aceder às moradias do programa “Casa para Todos” não é curial que o Governo e seus apoiantes partidários e institucionais insistam em desviar a atenção do problema e em procurar algures os culpados. As câmaras municipais são os bodes expiatórios preferidos. Durante toda a semana passada foram fustigadas no Parlamento e na comunicação social com a acusação implícita de que estariam a perturbar gravemente a entrega das casas com o atraso na regularização dos terrenos. É evidente pelas declarações acima citadas da direcção da IFH de que mesmo que a burocracia municipal funcionasse perfeitamente o empecilho maior do crédito bancário continuaria a existir. Porque então vir com as acusações às câmaras? É evidente que o objectivo é politizar. Politizando as questões, campos partidários irredutíveis formam-se imediatamente e os que não se reconhecem nem num campo nem no outro optam por não se exprimirem para não serem apanhados no fogo cruzado. O debate público nem chega realmente a iniciar-se. A democracia e o pluralismo saem prejudicados com essas tácticas inibidoras de uma participação activa dos cidadãos na discussão de questões fundamentais para o país.

Quando nas vésperas das eleições de 2011 o governo lançou-se no programa “Casa para Todos” era evidente para qualquer observador atento que algo não batia certo. O financiamento não resultava da alavancagem da poupança interna dos que poderiam vir adquirir as casas. O crédito para o programa veio do exterior somando-se à divida externa. Pior, os termos do uso das linhas de crédito favoreciam em mais de 60% a importação de materiais de construção e de outros materiais de origem portuguesa. Empresas portugueses deviam ser maioritárias nos consórcios criados para a construção das moradias e não se submetiam a quaisquer requisitos na contratação de pessoal nacional para obras. Não espanta que mais três anos depois o desemprego tenha atingido os valores mais altos de sempre, que os privados particularmente no sector da construção se debatem com dificuldades e que construções já prontas não encontrem compradores. Sem criação de riqueza suficiente no meio de um ambiente económico de crescimento anémico, as pessoas não têm meios próprios os nem se sentem confiantes para investir em casa própria. O governo deve assumir as suas responsabilidades com o imbróglio criado pelo “Casa para Todos” e deixar de culpar outros e de procurar co-responsáveis para a situação actual. Não vale tudo na política e do governo espera-se que a sua relação com a nação seja sempre norteada pela verdade, lealdade e honestidade e sentido de responsabilidade.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 5 de Fevereiro de 2014 Humberto Cardoso

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