Expresso das ilhas, edição 656 de 25 de Junho de
2014
Editorial
No dia 27 de Junho comemoram-se os 800
anos da língua portuguesa. O marco histórico de referência nestas celebrações é
o testamento do Rei D. Afonso II, o primeiro documento oficial escrito em
português. Hoje a língua portuguesa tem centenas de milhões de falantes em
todos os continentes, suporta uma literatura vasta e rica e é tida, a par com o
inglês, o francês e o espanhol como uma das línguas do mundo. Cabo Verde,
juntamente com Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal,
São Tomé e Príncipe e Timor-Leste, integra a Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa (CPLP) que tem na agenda a promoção do português no seu espaço
nacional e a sua adopção, em instâncias internacionais, designadamente na ONU,
como língua de trabalho. O uso da língua portuguesa nas ex-colónias sofreu uma
franca expansão na sequência da sua adopção como língua oficial e com os
esforços redobrados na escolarização da população. O rápido desenvolvimento da
comunicação social, em especial a rádio e a televisão, tem sido instrumental em
envolver as pessoas fora do circuito escolar e em aproximar as crianças mais
cedo da língua. Em consequência, o português progressivamente ganha sobre as
outras línguas faladas mesmo no trato informal e familiar. O fenómeno
verifica-se em maior ou menor grau em todos os países da CPLP com uma excepção
clara, Cabo Verde. Em Cabo Verde, não obstante uma taxa de alfabetização de
quase 100 por cento e uma escolarização elevada nos níveis básico e secundário,
o uso do português restringe-se a momentos formais de interacção com os poderes
públicos, à escrita e ao ensino. Mesmo nestas “cidadelas” notam-se sinais de
retracção à medida que se torna corriqueiro o uso do crioulo no Parlamento, em
declarações de políticos na comunicação social e mesmo em comunicações de
carácter oficial de dirigentes da administração pública na rádio e televisão.
No sistema educativo, o governo não se tem poupado a esforços para introduzir o
crioulo como língua de ensino, apesar da oposição de muitos e da controvérsia que
vem acompanhando o processo de adopção do ALUPEC como alfabeto oficial para a
escrita da língua cabo-verdiana. Os meios utilizados parecem algo enviesados,
porquanto não têm respaldo na Constituição que ainda consagra o português como
língua oficial. E curiosamente em 2010, em sede de revisão constitucional
ninguém propôs alterações que poderiam dar suporte ao rumo actualmente
adoptado. A percepção generalizada é que o uso do próprio português enquanto
língua oficial tem sofrido extraordinariamente com todos esses
desenvolvimen-tos. Agravam isso outros factores. Por exemplo, na rádio e na
televisão ouve- -se um português pontuado por pronúncias e sotaques diversos.
As crianças vêm das escolas imitando a pronúncia de professores a quem no curso
de formação não se exigiu que aprendessem a forma correcta ou “standard” de
pronunciar o português. O resultado é que as pessoas enquanto cidadãs, utentes
de serviços públicos, trabalhadores e prestadores de serviços internacionais
não deixarão de ficar afectadas negativamente pelas dificuldades progressivas
em se exprimirem na língua portuguesa. Os desafios particulares que a língua
portuguesa encontra em Cabo Verde deveriam merecer das autoridades uma atenção
especial. A realidade histórica é que há muito que o crioulo substituiu o
português como língua materna. Diferentemente de outras partes do mundo, com
génese similar após a expansão europeia do século XV, em Cabo Verde nem mesmo
as classes sociais altas e letradas conseguiram subtrair-se à atracção do
crioulo popular. O sentido de pertença à nação cabo-verdiana deve ter
acompanhado a apropriação generalizada da língua em todas as suas variantes nas
ilhas. No pós- independência o português continuou como língua oficial, mas a
apropriação do crioulo, que já então estava completa, foi vista na época em
círculos próximos do poder estabelecido como parte do esforço de reafricanização
dos espíritos. O elemento ideológico antagonístico entre as duas línguas
que então foi introduzido provavelmente criou um problema que persiste até hoje
e que testemunhos diversos afirmam que está a piorar. O português continua como
língua oficial, mas nota-se que é cada vez mais difícil adquirir a competência
adequada no seu uso. O crioulo mesmo que fôr declarado língua oficial dificilmente
a curto e médio prazo poderá substituir o português na plenitude das suas
funções oficiais. O conflito ideológico subjacente não deixa que se faça um
esforço concertado para levar o português o mais cedo possível às crianças, por
exemplo, no pré-escolar. Paralelamente, reconhecendo as dificuldades com o
português que as crianças chegam à escola, pretende-se iniciar a escolarização
com o crioulo e adiar para mais tarde a iniciação ao português. As
consequências desta abordagem são evidentes. Quando em todo o mundo se procura
propiciar as crianças a possibilidade de aprender as principais línguas o mais
cedo possível, em Cabo Verde a tendência é oposta. Refugia-se num paroquialismo
cada vez mais estreito que ameaça a cidadania, promove a desigualdade social e
retira competitividade ao país e ao trabalhador cabo-verdiano. Com isso
arrisca-se a seguir um caminho que vai no sentido inverso de todos os outros
países da CPLP isolando o país dentro da comunidade e diminuindo as
possibilidades de aproveitar as oportunidades que a facilidade de comunicação e
cultura podem facultar. É evidente que não é uma opção inteligente. Em
particular, mostra-se de todo apropriado que nesta data memorável dos 800 anos
de uma língua com história e com alcance mundial e que também é repositória de
tudo o que fomos sejamos capazes de a transformar num instrumental fundamental
para a nossa afirmação, proveito e desenvolvimento nesta nova era da
globalização.
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