sexta-feira, junho 09, 2017

Dever de reparação do Estado

Várias convenções internacionais entre as quais a Resolução das Nações Unidas 60/147 de 2005 estabelecem o direito das vítimas de atropelos graves dos direitos perpetrados pelo Estado a uma reparação condigna. É um direito que o Estado de Cabo Verde ainda não reconheceu às dezenas de pessoas que durante os quinze anos do regime de partido único foram sujeitas pelas autoridades a abusos, sevícias e torturas. Em Cabo Verde quem goza de uma espécie de direito de reparação  são os reconhecidos por lei como “combatentes” e “ex-presos políticos”. Para estes a lei em vigor desde de Março 2014 enumera regalias e honras de Estado e estipula um subsídio vitalício no valor de setenta e cinco mil escudos.
Mais de vinte cinco anos após a instituição da democracia, continua-se à espera que o Estado assuma as suas responsabilidades pelo sofrimento físico, psicológico e moral infligido àqueles que simplesmente quiseram exercer os direitos fundamentais que universalmente se consideram  invioláveis e inalienáveis. Por causa disso, vive-se no país uma contradição profunda. Deixa-se cair no esquecimento as vítimas de atropelo sistemático de direitos do homem enquanto se glorificam os dirigentes do regime baseado na ideologia da luta de libertação que instituiu a opressão no país. Prova disso é que hoje o marco dos quarenta anos após as prisões e torturas em S.Vicente pode ser ignorado pelas instituições do Estado e pela comunicação social estatal mas há umas duas semanas atrás recebeu-se com pompa e circunstância em todas as instância da república e com cobertura mediática plena a iniciativa de um simpósio dedicado a Aristides Pereira, o presidente da república durante o regime de partido único. A questão que se coloca é: com tais omissões e preferências, onde fica o Estado de Direito democrático que proclama que tem no seu cerne o respeito pela dignidade da pessoa humana quando há reverência oficial por protagonistas e símbolos dos tempos da ditadura?
A realidade do que se passou em Cabo Verde não deve ser escondida. As marcas persistem ainda nas pessoas e familiares que em várias ocasiões, designadamente em S. Vicente e Santo Antão em 1977, na Brava em 1979, na cidade da Praia em 1980 e outra vez em Santo Antão em 1981 e S.Vicente em 1987, por razões políticas foram objecto da sanha das autoridades. Os relatos dos acontecimentos vivenciados podem ser encontrados em jornais e revistas da época assim como as reacções dos dirigentes de então. Também existem documentos oficiais - e estão disponíveis a  qualquer pessoa - que trazem as leis e as directivas governamentais que desde da independência até a sua revogação em Maio e Setembro de 1990 deram cobertura à brutalidade das autoridades quando violentamente punham peias à liberdade de expressão, de reunião e de manifestação, negavam o direito de propriedade e condicionavam a circulação livre para o exterior. Ignorar isso e não dar aos mais novos a possibilidade de as conhecer e por essa via saber qual o real valor da liberdade e da democracia é um mau serviço que se presta ao Estado de Direito democrático.
A experiência recente de derivas iliberais demonstra que se não houver um consenso firme quanto aos princípios e valores pelos quais a democracia se rege e uma vontade colectiva de seguir com rigor os procedimentos que regulam o jogo político em ambiente de pluralismo, as instituições democráticas rapidamente perdem credibilidade e eficácia. E, na esteira desse enfraquecimento, criam-se condições para a ascensão de líderes autocráticos, para o ressurgimento de políticas populistas irresponsáveis e para o acerbar de paixões designadamente nacionalistas e xenófobas e de intolerância em relação ao outro. Não é pois de se tomar a democracia e a liberdade por algo certo e inalterável como quando após a queda do Muro de Berlim se anunciou o fim da história e tudo parecia fazer crer que o processo democrático tinha-se praticamente tornado irreversível e que a democracia tinha ficado sem uma alternativa real e viável.
A persistência em Cabo Verde de um quadro muitas vezes confuso em termos simbólicos e de valores é um factor que dificulta a consolidação da cultura democrática, contribui para a excessiva polarização da luta política e alimenta hostilidades em relação ao regime democrático,  impedindo que consensos necessários para o desenvolvimento sejam construídos e mantidos. Crucial para se ultrapassar a confusão de valores é a assunção do Estado das suas responsabilidades para com as vítimas dos seus atropelos durante o regime de partido único e da necessidade de reparar dentro das possibilidades existentes o mal que foi feito. Fazendo isso os valores da liberdade, da democracia e do respeito pela dignidade humana serão vistos como os fundamentais a orientar o funcionamento  do Estado de Cabo Verde, como bem comanda a Constituição da República, não se sobrepondo a eles nenhuns outros. Uma outra era de concórdia poderá ser possível no país porque baseada na verdade, na justiça e no profundo amor à liberdade.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 810 de7 de Junho de 2017.

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