segunda-feira, abril 09, 2018

Derivas

Assistiu-se no início desta semana a uma reunião inédita do Conselho de República. Foi a primeira deste segundo mandato do presidente Jorge Carlos Fonseca e trouxe novidades.
O conselho da república foi convidado a debruçar-se sobre a segurança no país e sobre a situação de seca. Para o efeito o PR endereçou convites ao ministro da Administração Interna e ao ministro da Agricultura, e também a especialistas em segurança e ao conselheiro de segurança do primeiro-ministro, como se pode ver no seu “post” no Facebook. Com a iniciativa, o PR rompeu com a tradição das reuniões do conselho da república viradas quase que exclusivamente para a marcação de eleições e alargou o escopo de actuação desse órgão auxiliar do presidente da república para matérias de política interna normalmente sob a alçada e direcção do governo. Também nos procedimentos inovou ao convidar directamente ministros para expor sobre temas da governação, tarefa que constitucionalmente cabe ao PM no cumprimento do seu dever de informar regular e completamente o presidente da república sobre os assuntos da política interna e externa do Governo e como membro do Conselho da República.
Na sua página do Facebook o PR disse que a reunião serviu para reforçar convicções, reavaliar políticas e medidas, mobilizar energias e vontades, acelerar procedimentos, alterar práticas e atitudes. O problema é que as recomendações para terem utilidade prática deveriam ser dirigidas ao governo, mas o conselho é órgão de consulta do PR no exercício das suas funções e não de consulta do governo. Os constitucionalistas portugueses referem-se à possibilidade em Portugal do PR, pela via de submissão de matérias diversas ao conselho do estado, de transformar esse órgão numa instituição de apreciação da vida política e da direcção política do governo e enquanto tal num “meio indirecto” de efectivar a responsabilidade do governo. Há aí essa possibilidade porque o governo é politicamente responsável perante o presidente da república e perante o parlamento. Não é o caso de Cabo Verde em que o PM só é politicamente responsável perante a Assembleia Nacional e os ministros são responsáveis perante o primeiro-ministro e no âmbito do governo perante a AN e por conseguinte os contactos directos dos ministros com o PR devem ser feitos com assentimento do PM.
O presidente português Marcelo Rebelo de Sousa inaugurou as audições no Conselho de Estado de figuras exteriores ao órgão com os convites dirigidos ao governador do Banco Central Europeu Mario Draghi na primeira reunião e recentemente ao presidente da Comissão Europeia Jean-Claude Juncker e ao director da Organização Mundial do Comércio. Para politólogos citados pela imprensa portuguesa os convites do presidente constituem actos de marketing institucional dirigidos para dar mais centralidade no debate político à Presidência da República. Mas certamente que convites dirigidos á figuras de instituições supra nacionais da União Europeia e internacionais não é mesma coisa que convidar membros do governo para discutir matéria de governação do país. Desde 2005 que no artigo 5 do regimento do conselho da república está prevista essa possibilidade que por sinal não resulta da Constituição mas não há notícia que alguma vez tenha sido aplicada nem pelos presidentes anteriores nem pelo actual presidente da república no seu primeiro mandato. E não é por acaso.
Nas democracias parlamentares a relação entre o presidente da república e o governo é muitas vezes de geometria variável. Se o governo é minoritário ou se num momento é politicamente enfraquecido a influência do PR tende a aumentar, mas se os governos gozam de uma maioria absoluta no parlamento não há grandes alterações no que se espera do PR nas suas múltiplas funções. Quando há governos maioritários, como é o caso de Cabo Verde nestes 27 anos de democracia, a norma é a estabilidade política sem grandes sobressaltos nas relações entre órgãos de soberania. Os equilíbrios existentes, porém, podem mudar se factores diversos já conhecidos de populismo e demagogia convergirem no enfraquecimento das instituições democráticas, como está a acontecer. Um sinal disso é a descredibilização do parlamento que vem de há vários anos e já alterou visivelmente a relação entre o governo e o parlamento. Nota-se na submissão deste àquele assim como nas ausências do primeiro-ministro do parlamento em momentos de fiscalização política, acto sempre criticado pelo actual partido maioritário quando era oposição parlamentar. A outra face da moeda é um relacionamento nunca visto entre o governo e a presidência da república no qual é palpável a crescente influência do PR.
Derivas na relação entre os órgãos de soberania acabam por mexer com o sistema político e afectar em particular a confiança das pessoas nas instituições. A falta de coerência e de consistência na actuação da classe política pode tornar-se norma como se viu no folhetim das alterações das taxas aduaneiras para proteger produtos locais em que a fuga à responsabilidade por eventuais prejuízos aos consumidores e à economia nacional foi generalizada. Poderá vir a verificar-se outra vez designadamente na questão da regionalização. Na proposta de lei apresentada ao parlamento já se viu que o apego à ideia de ilha/região caiu para o caso de Santiago que ficou com duas regiões ao mesmo tempo que se manteve no caso de ilhas com fraca base populacional e económica como Brava e Maio e que se obrigam ilhas efectivamente integradas como S. Vicente e S. Antão a serem regiões separadas. Em 2014 na discussão da composição do Conselho dos Assuntos Regionais o actual partido maioritário, então oposição, forçou o então governo a abandonar a proposta de fazer Santiago ser representado nesse órgão por dois elementos de Santiago Norte e dois de Santiago Sul. O MpD argumentou na altura que o total de quatro representantes de Santiago iria contrastar com o número de dois por cada ilha e estaria em contramão com o princípio que sempre vigorou na Constituição de 1992 de igualdade de representação das ilhas.
Hoje vê-se em vários sinais que o comprometimento em manter o sistema político no seu traço básico original não está garantido. Surgem forças a propor alterações no sistema do governo com reforço dos poderes presidenciais e outras a querer minimizar o parlamento e a democracia representativa. Com uma revisão da Constituição no horizonte é de evitar derivas que tragam desequilíbrios e aumentem a desconfiança das pessoas nas instituições. Há, por outro lado, que conter o impulso para o protagonismo exacerbado e, pelo contrário, preparar-se com integridade para servir, ciente de que a manutenção de um ambiente de paz e tranquilidade, funcionamento normal das instituições e o exercício competente das funções de cada um é fundamental para se ter liberdade e prosperidade.
Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 833 de 04 de Abril de 2018.

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