Em tal
ambiente a degradação da vida pública é inevitável e quando atinge um certo
limiar praticamente só o poder judicial a par com uma imprensa livre ficam em
posição de a conter. No Brasil é o que se passa com as investigações de
corrupção nos vários estratos da classe política e que já levou muita gente à
prisão. Nos últimos dias culminou com o processo dramático da prisão do
ex-presidente da república Lula da Silva.
O problema é que tanto nestes como noutros
casos – por exemplo, na Itália com a operação Mãos Limpas de Antonio di Prieto
e em menor escala em países como Portugal e Espanha, mas também em França,
Israel e alguns outros países sul-americanos – pelo facto dos alvos serem
políticos e a condenação ter consequências políticas diz-se que há sinais de
judicialização da política e rapidamente surgem acusações de politização da
justiça. Tais suspeições sobre as instituições do poder judicial podem ter o
efeito de alastrar a crise para os últimos baluartes do sistema democrático,
deixando abertas possibilidades que a história já demonstrou desembocarem
directamente em ditaduras. No Brasil é um facto que o ambiente de desconfiança
gerado pelas investigações de corrupção e agravado com o processo de
destituição da presidente Dilma Rousseff já provocou uma crise de grandes
proporções de tal forma que ninguém garante que a realização de eleições em
Outubro será suficiente para legitimar o governo, restaurar a confiança nas
instituições e abrir o caminho para as reformas urgentes no sistema político.
Mas parece que, não obstante dúvidas quanto à forma de agir de alguns elementos
da magistratura e do poder judicial, mantem-se um capital de confiança que a
submissão de Lula à ordem de prisão veio confirmar. Evitou a convulsão geral
que podia levar ao seu descrédito. Com o Estado de Direito confirmado nos seus
elementos essenciais haverá menos dificuldade em iniciar o processo de
relegitimação das instituições, diminuir a extrema polarização e reduzir o
espaço de manobra para populistas e forças anti sistema remanescentes dos
tempos da ditadura militar.
A importância de nas democracias tudo se
fazer para manter credível o poder judicial é relembrada pelos actos
sistemáticos dos pretendentes ao poder autocrático e ditatorial. Todos visam
nos seus esforços desacreditá-lo. Ao
fazê-lo, retiram às pessoas o instrumento fundamental para ver dirimidos
os conflitos, para administrar a justiça e proteger direitos fundamentais em
particular contra abusos e actos discricionários e arbitrários perpetrados pelo
próprio estado. Não é por acaso que na América de Trump inaugurou-se uma
pressão sem precedentes sobre juízes, procuradores e polícias. Ou que na
Turquia de Erdogan muitos juízes foram presos e a independência dos tribunais
está ameaçada na Polónia e na Hungria. De facto, se o império da lei não é
assegurado, facilmente qualquer regime inicialmente democrático poderá entrar
numa deriva em direcção a um regime iliberal que não respeita direitos
fundamentais e que tudo fará para não ser arredado do poder. Manter intacto,
competente e independente o poder judicial é essencial para afirmação da democracia
e garantir a estabilidade. Esse objectivo porém não pode ser somente dos
políticos, mas também da sociedade, dos médias e das diversas organizações da
sociedade. Deverá vir ainda dos magistrados, da sua dedicação, esforço e
conhecimento em manter o prestígio da profissão, a confiança das pessoas na
justiça e a expectativa que não obstante todo o respeito pelas garantias de
defesa, a justiça será feita em tempo útil.
O estado avançado da globalização que se vive
actualmente coloca desafios extraordinários aos países e suas populações.
Enfrentam nalguns casos perdas sem precedentes de postos de trabalho, têm
dificuldades em manter a competitividade no mercado internacional e estão
ansiosos em relação ao futuro porque não há certeza que a prazo vai-se
conseguir manter a capacidade, conhecimento e know-how globais para continuar a
aproveitar as oportunidades que vão surgindo no plano global. Insatisfação,
incertezas e ressentimento podem constituir uma mistura complicada que as
pessoas na sua ânsia de fazer ouvir a sua voz, de chamar quem governa à
responsabilidade efectiva na gestão dos recursos públicos e de clamar pelo
cumprimento das promessas feitas podem correr o risco de atirar para fora a
proverbial “água com o bebê” e apoiar oportunistas e autocratas
sacrificando no processo o construído durante décadas de democracia e
desenvolvimento.
Cabo
Verde, inserido como está na economia mundial e sob pressão de fazer o
desenvolvimento acontecer, reproduz em boa medida as insatisfações com o
sistema político que se notam noutras paragens. Também aqui as instituições
democráticas estão sob tensão e num processo de descredibilização progressiva.
Contrariamente ao que se vê em outras paragens, aqui o poder judicial não tem o
crédito desejável para o qualificar como um baluarte do Estado de Direito que a
tudo resistisse. As deficiências do sector da justiça, a percepção de
impunidade acompanhada de sentimento de insegurança e a dificuldade da própria
classe dos magistrados em se auto-regular numa perspectiva de mais eficácia,
maior competência e mais celeridade colocam os juizes numa posição altamente
vulnerável. Os ataques que têm recebido de diferentes quadrantes demonstram a
sua fragilidade que também em certo sentido é fragilidade da própria democracia
e do Estado de Direito. Ora, não é aceitável que tal fragilidade persista
principalmente nestes tempos em que a democracia, como dizem certos autores,
encontra-se em “recessão”.
Na revisão constitucional de 2010 foram
transferidos competências e meios para as magistraturas e esperava-se mais
comprometimento, mais competência e menos morosidade na administração da justiça.
A situação que se constata hoje no sector da justiça, em certa medida sitiada
com acusações, que não são resolvidas num sentido ou noutro, vindas de
polícias, advogados e cidadãos comuns não é salutar para ninguém. Há que
colocar a justiça e em particular as magistraturas numa base mais sólida, menos
corporativista, mais comprometida com as necessidades da sociedade e mais
ciente do seu papel histórico único de contribuir para a construção,
consolidação e salvaguarda do Estado de Direito em Cabo Verde.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 854 de 11 de Abril de 2018.
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